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22 de Março de 2011 - 16h29

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Entrevista
"Países não estão a conseguir lidar com os desastres por si próprios"
Por Liliana Valente

Christos Stylianides O comissário europeu para a Ajuda Humanitária e Gestão de Crises admite que o Mecanismo Europeu de Protecção Civil "atingiu o limite" e que é preciso encontrar novas formas de solidariedade entre Estados

O comissário europeu para a Ajuda Humanitária e Gestão de Crises, Christos Stylianides, foi a Lisboa discutir o que será no futuro a ajuda europeia aos Estados-membros quando enfrentarem desastres naturais. A Europa vai comprar meios próprios para emprestar aos países que precisem de fazer frente a "desastres simultâneos de grandeza excepcional". Um "fenómeno novo" fruto das alterações climáticas, acredita. Christos Stylianides não tem data para pôr este novo mecanismo em marcha, mas conta com o apoio do Governo de António Costa, com quem esteve reunido.

A Comissão Europeia apresentou o programa rescEU, mas o debate no Parlamento Europeu ainda está a decorrer. Crê que o rescEU estará operacional já este Verão?

O tempo é um factor primordial. Estamos a fazer todos os possíveis para que o rescEU seja uma realidade o mais depressa possível. Todos reconhecemos que o próximo desastre natural está ao virar da esquina, e tanto o Parlamento como o Conselho compreendem a urgência.

Desde Novembro passado, quando a minha proposta foi adoptada por unanimidade pelo Colégio dos Comissários, que tenho vindo a apresentar e a discutir o rescEU com os Estados-membros e, claro, com o Parlamento Europeu. Estive há poucos dias em Lisboa, onde me reuni com o primeiro-ministro António Costa e com o ministro Eduardo Cabrita, e tivemos uma conversa muito produtiva. Partilhamos a convicção de que é urgente tomar medidas, e estamos de acordo quanto à implementação do rescEU. E aproveito a oportunidade para agradecer ao Governo e ao povo português pelo seu apoio ao rescEU.

Sinto-me muito encorajado pelas reuniões que tenho tido com os Estados-membros e com o Parlamento Europeu, e acredito que através da cooperação será possível pôr o rescEU em marcha, e assim dar resposta às expectativas dos nossos cidadãos.

Enquanto isso não acontece, continuamos a preparar-nos para conseguirmos responder ao próximo desastre. Para tal, estamos a alargar o mecanismo de contribuições voluntárias para a protecção civil europeia. Posso, aliás, adiantar que Portugal ofereceu a este mecanismo voluntário duas equipas de bombeiros, uma das quais apoiada por veículos, uma equipa de defesa nuclear, radiológica, biológica e química (NRBQ), e uma equipa de busca e salvamento com capacidade NRBQ. Isto só mostra o compromisso português para o fortalecimento do nosso sistema colectivo de protecção civil.

Como irá funcionar o rescEU?

O rescEU baseia-se no nosso sistema actual. Nesse sentido, o que propomos é uma evolução, não uma revolução. Quero que isso fique claro para que não haja mal-entendidos. O rescEU não irá substituir as competências nacionais, mas antes complementá-las. É uma "rede de segurança" para as situações excepcionais.

Actualmente, o nosso sistema baseia-se nas contribuições voluntárias dos nossos Estados--membros. Devido às alterações climáticas, os desastres têm vindo a multiplicar-se e a intensificar- -se. Muitas vezes enfrentamos ao mesmo tempo múltiplas crises em vários países, o que faz com que Estados-membros não possam prestar assistência a outros Estados-membros em situação crítica, por estarem a lidar com as suas próprias emergências. Por isso, precisávamos de uma solução eficiente para mitigar este problema.

O rescEU é a nossa solução. Irá estabelecer, a nível europeu, um número limitado de competências operacionais bem definidas, tal como aviões de combate aos incêndios ou hospitais de campanha. O facto de ser "a nível europeu" não significa que estes recursos serão centralizados, muito pelo contrário. Tais recursos irão ser disponibilizados nas zonas de maior risco, e a sua utilização estará dependente de um pedido por parte de um dos Estados-membros. É esse o sentido do rescEU enquanto "rede de segurança". Ao mesmo tempo, estamos a providenciar maiores apoios financeiros às operações em curso e a assegurar uma economia de escala.

O rescEU dá prioridade ao combate aos incêndios em detrimento da prevenção, o que tem sido apontado como o maior erro da situação portuguesa. Não estará a União Europeia a cometer o mesmo erro?

De modo algum. O rescEU não se resume a um mecanismo de resposta, envolve também a prevenção e a preparação. É esse, aliás, o segundo pilar da nossa proposta. E para mim essa é uma questão-chave, porque acredito firmemente que a solidariedade só pode existir com responsabilidade.

Através do rescEU, estamos a pedir aos Estados-membros que façam da prevenção e da preparação uma prioridade, especialmente aqueles que enfrentam frequentes desastres naturais. Todos os Estados-membros devem desenvolver mecanismos consistentes de avaliação e controlo dos riscos, bem como fortalecer as suas competências de prevenção e preparação para as catástrofes. E nós estamos cá para encorajar e apoiar essas medidas.

Aproveito mais uma vez a oportunidade para felicitar o Governo português pela realização de mudanças estruturais no sistema de defesa contra incêndios do país. É um passo importante na direcção certa, e espero que sejam tomadas medidas adicionais.

O rescEU insere-se também na promoção de uma cultura de prevenção nos nossos Estados- -membros. Iremos fazê-lo através do estabelecimento de uma Rede de Conhecimento da Protecção Civil da União, de modo a podermos oferecer oportunidades de partilha de conhecimentos e competências, bem como a realização de mais exercícios conjuntos.

Ao mesmo tempo, queremos garantir que, no futuro, os fundos estruturais tenham uma aplicação mais eficiente na prevenção. Para que isso aconteça, a pesquisa e a inovação são fundamentais. Quero agradecer ao meu querido amigo Carlos Moedas pelo seu forte apoio nesta questão. Estamos ambos muito empenhados neste esforço.

Acha que estabelecer o rescEU em Bruxelas é a melhor escolha? Não seria mais eficaz se estivesse distribuído por vários países?

Já o afirmei antes, mas volto a repetir: o rescEU não é um sistema centralizado imposto por Bruxelas. Sou um firme defensor da descentralização. Aliás, só assim o rescEU poderá ter sucesso. Bruxelas não irá controlar os recursos disponibilizados para o combate a um fogo florestal ou a uma grande tempestade: isso será responsabilidade do Estado--membro afectado. Bruxelas irá apenas decidir que recurso accionar e onde. Reitero: a responsabilidade primária na resposta aos desastres naturais irá estar nas mãos dos Estados- -membros.

Como comissário europeu para a Ajuda Humanitária e a Gestão de Crises, acha que a União Europeia respondeu satisfatoriamente às necessidades dos que sofreram com os incêndios?

Subscrevo inteiramente as palavras do presidente Juncker na ressaca dos mortíferos incêndios do Verão passado em Portugal: a União Europeia deve oferecer "mais do que condolências. A Europa é um continente solidário e devemos estar mais bem preparados do que antes. E sermos mais rápidos a ajudar os Estados-membros na linha da frente". A criação do rescEU é uma medida concreta para a implementação dos nossos compromissos.

Não seria mais eficaz ter um mecanismo europeu que desse resposta às consequências das catástrofes, que ajudasse as pessoas afectadas a reconstruírem as suas vidas?

O meu objectivo principal, a minha prioridade enquanto comissário para a Gestão de Crises, é ajudar os Estados-membros a implementarem sistemas eficazes que possam ajudar a prevenir a destruição de meios de subsistência e a perda de vidas. Acima de tudo, o nosso propósito colectivo é proteger os cidadãos dos desastres naturais. Sermos capazes de responder rápida e eficazmente em momentos de crise. Conseguirmos demonstrar de forma tangível e concreta a solidariedade europeia que todos esperamos. Porque a Europa não é só palavras, papéis e burocracia.

O rescEU é um sistema de solidariedade palpável. A solidariedade europeia é o alicerce da nossa família, é nela que assenta a protecção do nosso lar comum. É essa a minha resposta aos nossos cidadãos. Com o rescEU, seremos capazes de aliviar os seus medos de serem abandonados. Nenhum Estado-membro deve estar entregue à sua sorte quando os recursos nacionais não são capazes de fazer frente às catástrofes naturais.

Não há dúvida que a reconstrução das vidas dos cidadãos afectados por um desastre natural tem um enorme impacto económico e psicológico. É por isso que a Comissão Europeia tem instrumentos como o Fundo de Solidariedade, os fundos estruturais e outros, de modo a ajudar à reconstrução das comunidades. E, ao longo dos anos, também Portugal tem beneficiado desses diferentes mecanismos.

Considera que a forma como Portugal e Espanha lidaram com os recentes desastres naturais se pode tornar num caso de estudo? Que lições pode a União Europeia tirar do que se passou?

Os eventos trágicos que ocorreram em Portugal no Verão passado foram o catalisador que levou à nossa proposta para a reforma e o fortalecimento do nosso sistema colectivo de protecção civil, através do rescEU.

Desde 2014, o Mecanismo Europeu de Protecção Civil foi activado 92 vezes, na Europa e no resto do mundo. Só no ano passado, foi activado 32 vezes. Estes números mostram que os países afectados não estão a conseguir lidar com os desastres por si próprios. E, muitas vezes, até o próprio mecanismo ficou sobrecarregado. É esta a dura realidade.

Sinto-me orgulhoso do que conseguimos alcançar com o sistema actual. Mas, como já afirmei antes, atingiu o seu limite. É imperativo que nos adaptemos à realidade dos dias de hoje. Foi essa a principal e dolorosa lição que retirei do que aconteceu em Portugal, em Espanha, em França, na Grécia. E também do que aconteceu na Alemanha, na Polónia, na Suécia e na Irlanda.

Com novas realidades como as alterações climáticas, o despovoamento ou a seca a afectarem muitos países europeus, não deveria a União Europeia liderar um esforço para a implementação de estratégias de longo prazo, medidas que possam ajudar a encontrar soluções que não dependam dos ciclos eleitorais e das forças políticas?

As alterações climáticas são reais e já estão a fazer-se sentir. Não são fake news. É por isso que estou completamente em desacordo com a maneira como Donald Trump nega as alterações climáticas.

Sou completamente da opinião de que as alterações climáticas nos obrigam a melhorarmos a nossa capacidade de resposta aos desastres naturais, porque vamos assistir a um aumento dos fenómenos climatéricos extremos: ondas de calor, tempestades, secas, deslizamentos de terra, inundações fluviais. Todos os locais da Europa serão afectados: de norte a sul, de este a oeste.

Consequentemente, temos de nos adaptar a esta nova realidade e apostarmos na prevenção, na preparação e na resposta. Temos de ser suficientemente inteligentes para desenharmos uma resposta colectiva de longo prazo a esta nova realidade. Uma resposta que não se baseie na conveniência política, mas no pragmatismo e no nosso dever de proteger os cidadãos. E é precisamente isso que a Comissão Europeia está a fazer com a proposta para a criação do rescEU.

Na sua intervenção no Parlamento em 2014, disse que "precisamos de continuar a proteger os cidadãos europeus". Quatro anos depois, sente que a União Europeia fez o suficiente?

O Mecanismo de Protecção Civil já fez muito por nós. Deu resposta a incêndios florestais, a terramotos, a inundações e a epidemias como o ébola. Mas atingiu o seu limite devido à ocorrência de desastres simultâneos de grandeza excepcional. E isso é um fenómeno novo.

A nossa proposta para o rescEU demonstra claramente que, quatro anos depois, o meu compromisso pode ser cumprido. Com esta proposta estamos a tomar medidas concretas para servirmos os nossos cidadãos. O nosso objectivo é cumprir as suas expectativas de "uma Europa que protege". Esta iniciativa é um sinal tangível de que a Europa ajuda os seus cidadãos.



Fim

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