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22 de Março de 2011 - 16h29

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Entrevista
"Com a renúncia, pretendemos evitar mais uma guerra"
Por David Andrade

Luís Cassiano Neves Presidente cessante da federação de râguebi lamenta o clima que se vive na modalidade e a prioridade dada aos interesses individuais dos clubes, mas garante que deixa um legado melhor do que aquele que recebeu

Para Luís Cassiano Neves, não havia outro caminho que não a demissão do cargo de presidente da Federação Portuguesa de Rugby (FPR), depois da revogação da decisão que implicava a despromoção de Agronomia e GD Direito ao último escalão. O agora líder cessante do organismo lamenta o clima de falta de cooperação e a incapacidade de atender ao interesse geral da modalidade que grassa no país.

Por que motivo apresentou a demissão de presidente da FPR?

A renúncia surge como reacção imediata ao desenrolar do processo que terminou com a decisão do conselho de justiça (CJ). Não é um ataque à decisão - temos de aceitar a autonomia desse órgão jurisdicional -, mas sobretudo por considerarmos ser o culminar de uma postura de facções da comunidade raguebística relativamente aos nossos valores e à necessidade de cumprimento dos regulamentos. Continuamos a defender o processo que levou à decisão da direcção da FPR, assente em factos apurados pelo conselho de disciplina (CD). Reconhecemos que os regulamentos têm deficiências graves e essa questão foi suscitada pela minha direcção em assembleias gerais (AG). Procurámos conduzir o processo de forma transparente, aproximando-o dos princípios de defesa que devem ser garantidos às equipas e aos jogadores objecto desta acção. Lamentamos que o CJ venha desfazer um processo moroso e fundamentado com princípios genéricos que não concretiza, e que no meio deste imbróglio e deficiências jurídicas, se tenha perdido a defesa dos princípios da modalidade, passando uma esponja sobre factos gravíssimos e inéditos, que não podiam ter ficado por castigar. A responsabilidade institucional também não pode morrer sozinha e a direcção sentiu a necessidade de assumir responsabilidades. Para além disto, no último ano tínhamo-nos batido por uma visão estratégica assente em decisões de natureza financeira que foram rejeitadas duas vezes em AG. Já tínhamos anunciado que considerávamos que o nosso projecto político, por não ter congregado apoios junto da comunidade, estava esgotado.

Não recorreu porquê?

A renúncia não significa qualquer falta de solidariedade para com o CD. Faço um agradecimento público ao seu presidente, Marcello D"Orey, que teve uma acção ímpar. Foi proactivo, rápido, independente. Não recorremos porque temos de entender a quem aproveitam as guerras. O último mandato antes do nosso ficou marcado pela virulência e pelo antagonismo. Ao nosso recurso, seguir-se-iam certamente outros de quem considerasse estar a ser prejudicado. Com a renúncia, pretendemos evitar mais uma guerra. Chegou a altura de dar a oportunidade a que o râguebi encontre alguém que tenha a capacidade de congregar a maioria em torno de uma ideia de construção. Depois deste momento catártico, espero que o râguebi consiga reconstruir-se.

Que imagem fica após os incidentes no jogo Agronomia-Direito e depois do volte-face no processo?

Nas duas últimas AG alertámos para o aumento dos incidentes disciplinares. Durante muito tempo evitámos polémicas e expor publicamente situações preocupantes de falta de adesão aos nossos valores. Alguns meses após a nossa tomada de posse, numa final organizada pela federação, houve uma agressão à minha pessoa por parte de um dos dirigentes dos clubes. Tinha acabado de tomar posse, mas já na altura senti que era inadmissível. Nunca me foi apresentado um pedido de desculpas formal e eu também nunca apresentei um processo disciplinar.

Porquê?

Se o fizesse, estaria a abrir mais um canal de guerra quando o râguebi precisava de pacificação. Cometi o primeiro grande erro. Em retrospectiva, vejo que só tinha duas coisas a fazer: ou apresentava a renúncia ou abria o processo disciplinar. Fiz o que muita gente queria que agora fizéssemos: varrer para debaixo do tapete. O râguebi não ganhou nada com isso.

O que houve de diferente no Agronomia-Direito que justificasse um castigo tão pesado para os clubes?

Seguramente pela primeira vez em Portugal, desde há muito tempo, questões relacionadas com agressões dentro do campo levaram à interrupção definitiva de um jogo antes de se cumprir o tempo regulamentar. Por aquilo que resultava do relatório do árbitro e das imagens que foram solicitadas aos dois clubes, houve matéria com enquadramento regulamentar como nunca houvera em Portugal. Não tenho dúvidas de que, após a interrupção do jogo, a federação fez o que lhe competia.

Uma das acusações que lhe é feita é de não ter havido um árbitro nomeado para esse jogo.

Os regulamentos são inequívocos em considerar que não havendo um árbitro nomeado, há a possibilidade de eleger um árbitro nas bancadas. O râguebi português tem um historial perante greves de árbitros, em 2014 e 2015, ainda na vigência da anterior direcção, em que as competições também prosseguiram. Na semana que antecedeu as meias-finais, falámos com o conselho de arbitragem (CA) e a Associação Nacional de Árbitros de Rugby (ANAR). Julgávamos que a situação estava controlada. Na altura estavam em falta cerca de 8.000 euros, correspondentes a 4.000 de reembolso de despesas e 4.000 euros de prémios em dívida. Para que se tenha uma noção, quando chegámos à FPR, em 2015, pagaram-se 23 mil euros aos árbitros. Na segunda-feira anterior às meias-finais, não tínhamos qualquer comunicação de indisponibilidade. Começámos a perceber que podia haver um problema na quarta-feira. O presidente do CA estava fora do país e quando procurámos alternativas já era tarde, até porque a requisição de árbitros a Espanha ou França teria de ser feita através do CA. Na quinta-feira de manhã enviámos um email aos árbitros a explicar que o reembolso das despesas em dívida seria feito. Essa transferência foi efectuada antes das meias-finais. Não conseguimos demover a classe da sua intenção, apesar de ter feito contactos com alguns árbitros que tiveram dificuldade em explicar o porquê da indisponibilidade. O que se passou é que escolheram aquela altura para tomarem uma posição política.

Contra si?

Tive sempre uma relação, do ponto de vista pessoal, boa com o CA, mas do ponto de vista da instituição não foi uma relação fácil. A verdade é que é justo reconhecer que os árbitros no último ano e meio gozaram de condições financeiras como há muito não tinham. Passaram a ter os reembolsos das suas despesas pagos no mês seguinte à apresentação das despesas. Disseram-nos que o que estava em causa não era o dinheiro, mas a valorização da classe. Após ter feito mais de dez propostas formais, cheguei à conclusão que a única questão que pretendiam discutir era a remuneração de quatro pessoas: presidente do CA, António Moita, Nuno Coelho e Álvaro Corsan. Os recursos que consumiam eram suficientes para se construir um corpo mais plural para fazer a observação, acompanhamento e avaliação dos árbitros. Estas pessoas foram responsáveis por essas áreas nos últimos anos e não conhecemos nenhum tipo de avaliação aos árbitros formal e pública. Estabelecemos desde o início como prioritário haver uma classificação qualitativa dos árbitros. Esse processo foi sempre mal recebido pelo CA. Formalizámos medidas para reestruturar o sector. Os árbitros tiveram equipamentos novos como nunca nos últimos anos. Do ponto de vista financeiro, olhando para mandatos anteriores, também nada podem dizer. O que resta é a tabela de premiação dos árbitros e a remuneração perdida por pessoas influentes.

A indisponibilidade dos árbitros para as meias-finais foi comunicada aos clubes?

Contactei os presidentes na sexta-feira e fui acompanhando as diligências que as equipas foram fazendo. O GD Direito, um dos clubes envolvidos, apresentou um recurso da decisão da FPR no TAD, em que alega que teria sido eu a escolher sozinho o árbitro e a insistir para que o jogo se realizasse. Não escondo que defendi o prosseguimento das competições, mas na véspera do jogo recebi uma mensagem do presidente do GD Direito, Luís Filipe Morais, em que me dizia o seguinte: "Nós vamos resolver e arranjar solução para as meias e para a final. A final já está resolvida. Adiar não é solução." Portanto, os dois clubes chegaram a acordo em relação à pessoa que devia apitar o jogo, com o conhecimento e aceitação da federação. Quem foi escolhido tem o curso de árbitro e já apitou diversos jogos oficiais. Sem querer rejeitar responsabilidades, não é honesto dizer que o que se passou sucedeu por causa do árbitro. Com ou sem árbitro, jamais o râguebi pode tolerar agressões gratuitas entre jogadores.

Como jurista, que análise faz do acórdão do CJ?

Tenho um enorme respeito pelo dr. José Guilherme Aguiar. Sendo uma decisão que ele também assina, quero evitar tecer comentários de natureza jurídica. Parece-me, no entanto, que algures no labirinto do processo e das regras formais perdemos de vista aquilo que se passou na tarde de 28 de Abril, e que com esta decisão o râguebi perde uma oportunidade única de demonstrar que é, de facto, uma modalidade de valores onde as regras são cumpridas. Tenho dificuldade em entender onde o CJ discorda do CD e da federação. Receio que o râguebi possa ter caído na armadilha de arranjar uma solução consensual na defesa de dois clubes. Espero que desta decisão não resulte para o futuro uma sensação de impunidade.

Como encontrou a federação financeiramente e como é que a deixa?

O nível de endividamento era na ordem dos 700 mil euros. Em face da perda de receitas em cerca de um milhão de euros, receitas que conseguimos que voltassem a subir, mantivemos o nível e pensamos que será possível terminar o ano com uma redução marginal do valor que encontrámos. Em função de um cenário catastrófico em relação às receitas, apertámos o cinto e conseguimos não agravar o endividamento. Reformulámos a forma de apresentação de contas para que fosse perceptível para todos que tipo de receitas temos e onde gastamos o dinheiro. Se no passado se pagava a treinadores nas selecções salários de 80 mil euros por ano, hoje em dia o salário mais elevado é cerca de metade desse valor. Mas o râguebi, para evoluir e se valorizar, precisa de outra capacidade. Os clubes não podem continuar a contribuir com cerca de 1,5% do valor das receitas da federação. Isso é inaudito. Não existe nenhuma outra modalidade colectiva em Portugal organizada que sobreviva com os clubes a pagarem entre 150 e 400 euros por ano para inscreverem as suas equipas e com os jogadores a inscreverem-se sem pagarem um cêntimo à federação. Em Espanha um clube de primeira divisão paga 15.500 euros para jogar, na segunda pagam seis mil.

Que balanço faz do mandato?

Foram quase três anos extremamente duros. Existiu uma contestação quase permanente. Mas do ponto de vista financeiro, quem esteja por dentro dos problemas da federação dificilmente deixará de elogiar a forma como esta direcção empreendeu reformas importantes. Do ponto de vista desportivo, com cortes significativos, conseguimos crescer em actividade. Demos a atenção ao râguebi feminino que já era merecida. Ainda não é a desejável, mas deixámos pistas para que se possa afirmar na vertente de XV no futuro. Continuámos com uma riqueza de resultados no râguebi juvenil que seria difícil de prever com a quantidade de cortes que houve. Lançámos um software que permitirá registar como atletas federados todos os que estão envolvidos no desporto escolar, no râguebi das prisões e solidário, no touch rugby. Preparámo-nos para alargar a base. O râguebi precisa de ganhar relevância demográfica. Fazendo um balanço, reconheço que no início cometemos erros que nos custaram caro. Havia uma expectativa de corte com o passado recente que não foi imediatamente efectivada. Fomos muito colados a polémicas. O râguebi português vive do diz-que-disse, de blogues, de mentiras que se transformam em verdades. Reconheço que nunca tive a disposição ou o feitio para aparecer diariamente e fazer-me ouvir. Creio que deixo o râguebi mais preparado para encarar o futuro, mas não saio com uma sensação de sucesso.

Coloca a hipótese de se recandidatar?

Por uma questão de coerência, gostaria. Mas estou impedido de o fazer pelos estatutos. Chegou a altura de dar lugar a quem possa fazer melhor e de eu tirar todas as lições destes quase três anos.

Que lições serão essas?

Em termos de râguebi, se soubesse o que sei hoje, seria mais interventivo e comunicativo. O râguebi hoje é gerido em função do interesse individual de cada clube. Enquanto as pessoas não perceberem que isso é assim, o râguebi não vai evoluir. Todos devem meter a mão na consciência. Enquanto se defender apenas os interesses circunstanciais das equipas, o râguebi não terá uma solução. Os valores do râguebi têm que passar a ser defendidos por todos. Estes últimos episódios demonstram que continua a ser mais importante defender os interesses de cada um do que da modalidade.



Fim

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