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22 de Março de 2011 - 16h29

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Mudar o trabalho para salvar a política
Por Helena Lopes

O mundo do trabalho está a ser transformado num lugar onde se aprende a tolerar a injustiça e a aceitar a competição

A função política do trabalho

A forma como o trabalho é organizado afeta profundamente a nossa vida social, os nossos valores e a nossa vida comum. Para Karl Marx, transformar as instituições através de um processo revolucionário é a condição para o trabalho poder ser livre e emancipador. Pelo contrário, para John Dewey, o facto de o trabalho ser emancipador é a condição para se poder transformar as instituições. Porque para Dewey o trabalho tem uma função educativa: beneficiar de autonomia no trabalho, tomar decisões conjuntamente com outrem para atingir objetivos comuns, ajuda a desenvolver as competências cívicas e as disposições psicológicas (confiança em si e nos outros, propensão para cooperar, espírito cívico) necessárias para a ação e a participação política.

Se, como é minha convicção, é John Dewey quem tem razão, refletir sobre as características mais importantes do trabalho de hoje permite melhor compreender o mundo atual e, sobretudo, antecipar o mundo de amanhã. Todos os cientistas sociais concordarão: essas características são a individualização e a quantificação do trabalho. A maioria dos trabalhadores tem objetivos individuais quantificados para cumprir, são avaliados e classificados com base em critérios quantificados, são controlados através de sistemas informáticos e têm de entregar relatórios sobre a sua atividade individual. O trabalho humano, que exige empenho cognitivo e afetivo, está a ser traduzido em números de produtos, clientes, artigos, etc., num prodigioso empreendimento para reduzir o trabalho em abstrações analisáveis em termos financeiros.

A novidade reside, não no processo de individualização/quantificação em si, mas na generalização do seu uso, no setor público e privado, e, sobretudo, no facto de parecer ser aceite como normal e até "natural" pela maioria dos trabalhadores e dos cidadãos.

O desmoronamento do caráter coletivo do trabalho

Este processo está a ter consequências extremamente nefastas para os trabalhadores e a sociedade. A individualização/quantificação do trabalho reduz as interações pessoais e oculta o facto de o trabalho ser uma realização coletiva, em que várias pessoas contribuem para um objetivo, um bem, comum, estando agora cada trabalhador concentrado na sua "produtividade". Os processos de deliberação coletiva e os tempos de socialização reduziram-se drasticamente e foram substituídos por uma competição perversa que propaga a suspeição entre trabalhadores em detrimento da confiança. O resultado tem sido um aumento sem precedentes da intensidade do trabalho e das doenças psicosociais com ele relacionadas: insónia, depressão, sentimento de isolamento, lesões musculoesqueléticas, etc.

A redução das interações pessoais leva ao enfraquecimento da empatia, essa admirável capacidade do ser humano para sentir os sentimentos dos outros. Como brilhantemente pressentido por Adam Smith (o "pai" da ciência económica) e entretanto confirmado pelas neurociências, a empatia é o alicerce dos valores morais necessários à cooperação. E o lado político da empatia é a solidariedade e o respeito pelo bem comum. Sendo assim, organizar o mundo do trabalho, que é e será sempre um mundo de rivalidades e de dominações, de forma a esvaziá-lo das oportunidades de empatia e de cooperação significa desestruturar as solidariedades coletivas e a interajuda que sempre também caracterizaram esse mundo.

Não acredito em conspirações. Mas o facto é que a organização dos empresários de França (MEDEF) recusa fazer qualquer referência à cooperação nos seus textos oficiais, por ser supostamente desresponsabilizadora. Por isso se responsabiliza os trabalhadores individualmente por atingirem os seus objetivos, sem que haja qualquer reconhecimento pela empatia ou espírito cooperativo demonstrados. O mundo do trabalho está a ser transformado num lugar onde se aprende a tolerar a injustiça e a aceitar a competição, ou seja, um lugar de reprodução dos valores neoliberais. Promove-se assim o comportamento do Homo economicus e, portanto, uma "psicopatia cultural" em que a ausência de empatia é considerada normal em vez de anómala.

Participar nas decisões relativas à organização do trabalho

No entanto, tanto os sindicatos como as políticas públicas teoricamente progressistas - vide reformas recentes do Código Laboral em Portugal - concentram-se nas condições do emprego, ou seja, na transação do trabalho (contrato e salário), deixando de fora a questão da participação dos trabalhadores nas decisões estratégicas da empresa, decisões que incluem a gestão do emprego, a organização do trabalho e a modernização tecnológica. O contrato social estabelecido depois da Segunda Guerra Mundial caracterizou-se por aumentos do poder de compra para os trabalhadores em troca da subordinação destes à autoridade da empresa. Nessa fase de capitalismo industrial, os trabalhadores eram explorados mas a organização do trabalho assentava em coletivos de trabalho que forneciam as bases da ação coletiva. É isso que a atual fase de capitalismo financeiro está a destruir: o "governo do trabalho pelos números" descrito acima está a promover uma forma de "servidão voluntária" que é imperativo quebrar.

Para isso é necessário que a empresa seja institucionalmente reconhecida como sendo uma entidade política, formada por vários grupos com interesses diferentes; os trabalhadores têm de participar, no ideal paritariamente como em alguns países escandinavos, nos órgãos de decisão da empresa, ao nível dos conselhos de administração e/ou de direção. O princípio de livre concorrência que impera em quase todos os domínios na União Europeia tem de ser contrabalançado por um modelo europeu de governo das empresas que tenha como princípio organizativo a legitimidade democrática. No seio das empresas como na vida pública, há conflitos e necessidade de deliberação sobre valores e fins; a gestão das empresas não se reduz a decisões administrativas e técnicas, implica escolhas políticas que influenciam toda a sociedade.

Deve-se lutar por uma organização do trabalho que alimente a solidariedade e a interajuda. Estudos empíricos mostram que a autonomia e a prática concreta da cooperação e da democracia no local de trabalho contribuem para promover comportamentos cívicos e solidários fora do trabalho. Se não for assim, a individualização/quantificação do trabalho, juntamente com a erradicação da presença do outro permitida pela tecnologia digital, destruirão progressivamente a nossa capacidade de empatia, fazendo correr aos valores da nossa civilização um risco mortal.



Fim

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