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22 de Março de 2011 - 16h29

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Crítica de música
Um "Concerto Espiritual" pleno de vigor juvenil
Por Cristina Fernandes

O último concerto da Temporada Barroca da Orquestra Metropolitana, este ano a decorrer no Museu Nacional de Arte Antiga, teve como mote o Concert Spirituel de Paris (1725-1790), iniciativa pioneira e emblemática dos concertos públicos na capital francesa. Um privilégio concedido pela Académie Royale de Musique permitiu a realização de concertos na Salle des Tuileries durante a Quaresma e os feriados religiosos, quando a ópera e os teatros se encontravam encerrados. No concerto inaugural, em Março de 1725, foi tocado o célebre Concerto Grosso, op. 6, n.º 8, Fatto per la notte di Natale, de Corelli, composição também escolhida pela Metropolitana, que contou com a direcção da violinista Ana Pereira, juntamente com a Abertura [suite] n.º 1, TWV 55:e1, da colectânea Tafelmusik I, de Telemann, e da Sinfonia n.º 84, In Nomine Domine, de Haydn. Os programas setecentistas do Concert Spirituel incluíam, contudo, no mesmo alinhamento, música vocal e instrumental, tendo a Metropolitana limitado a sua escolha à última vertente.

No Concerto fatto per la notte di Natale, de Corelli, escrito em Roma para o cardeal Ottoboni cerca de 1690, o desempenho da Metropolitana, contando nesta ocasião com elevado número de instrumentistas bastante jovens, pôs em evidência com grande clareza a textura da "Sonata em Trio", subjacente aos alicerces da construção musical dos Concerti Grossi op. 6. Por outras palavras, para além do brilho das partes instrumentais mais agudas, a secção do baixo contínuo sobressaiu pela sonoridade encorpada e pela nitidez da articulação dos violoncelos e do contrabaixo e da realização harmónica do cravo (Flávia Castro). No concertino - pequeno grupo de solistas que dialoga com o conjunto maior (ripieno) - Ana Pereira mostrou o seu habitual carisma, o seu sentido de estilo e a sua agilidade técnica, tendo como óptima interlocutora a violoncelista Jian Hong. Uma maior leveza nalguns dos tutti seria desejável, mas em geral a interpretação soube destacar os contrastes de carácter, culminando na sedutora Pastorale ad libitum, repositório de boa parte do vocabulário das "pastorais natalícias" do Barroco, como as ondulantes melodias em ritmos de divisão ternária e a evocação dos bordões das gaitas-de-foles usadas pelos pastores.

Entre as três colecções da Tafelmusik (Música de Mesa), de Telemann, foi seleccionada a Abertura em Mi menor n.º 1 do primeiro volume. A palavra "Ouverture" usada na edição original remete para a Abertura à francesa (com o seu andamento lento inicial em solenes ritmos pontuados, seguido de um andamento rápido em escrita fugada), mas era também utilizada como sinónimo de suíte. Neste caso, páginas como a Réjouissance, um Rondó e uma belíssima Ária, combinam-se com danças (Loure, Passepied, Giga), ilustrando a hábil assimilação por Telemann do estilo francês, mas também de influências italianas. Uma interpretação plena de vivacidade contou com o imprescindível protagonismo das duas flautas solistas. Janete Santos e Nuno Inácio usaram traversos em madeira (em vez do modelo mais tardio em metal), aproximando-se assim da sonoridade da época de Telemann e contribuindo com fraseados de belo recorte rítmico.

O concerto terminou com a Sinfonia n.º 84, In Nomine Domine, de Haydn.  Apesar de ter sido escrita em 1786 para os Concerts de la Loge Olympique de Paris, foi também interpretada no Concert Spirituel. Flauta, oboés, fagotes e trompas juntam-se às cordas numa composição engenhosa no tratamento do material musical e na escrita instrumental, que exige grande destreza e precisão rítmica dos instrumentistas, e da qual emerge a veia humorística de Haydn, mas também a sua solenidade (no Largo inicial e no Andante) e traços rústicos (Minuetto). Ana Pereira, que dirigiu como concertino, e a Metropolitana corresponderam ao desafio com sucesso, com um ápice no vigoroso final (Vivace), e receberam entusiásticos aplausos do público.



Fim

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