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22 de Março de 2011 - 16h29

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Trabalho
Portugal entre os países que não garantem os direitos dos trabalhadores "uberizados"
Por Samuel Silva

Estudo pedido pela Comissão Europeia diz que só a Alemanha garante representação sindical, negociação colectiva, salários mínimos e definição de preços-base. Portugal não cumpre os últimos dois e tem negociação colectiva só na área do artesanato

Entregadores de comida, motoristas de TVDE e outros prestadores de serviços que são formalmente trabalhadores por conta própria não têm, em Portugal, assegurados todos os direitos laborais que a União Europeia considera necessários para a sua protecção. Acontece o mesmo com a maioria dos Estados-membros, revela um estudo encomendado por Bruxelas, que foi divulgado esta semana. Só a Alemanha cumpre todos os critérios.

O relatório "A regulamentação do salário mínimo e outras formas de pagamento para os trabalhadores por conta própria" foi publicado pela Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho (Eurofund). São analisados quatro direitos laborais dos trabalhadores "independentes": a possibilidade de representação sindical, a existência de direito de negociação colectiva, salários mínimos legais e preços mínimos acordados colectivamente.

Aquele organismo europeu conclui que 14 países (em 27 Estados-membros) garantem "direitos alargados de representação e direitos de negociação colectiva" aos trabalhadores independentes. Portugal encontra-se neste grupo. No entanto, só a Alemanha cumpre todos os critérios. E apenas a Bélgica e a Itália se aproximam de ter também uma avaliação 100% positiva. Não o conseguem, porém, por não terem regulamentado o direito de negociação colectiva para os trabalhadores por conta própria.

No caso de Portugal, diz o relatório da Eurofound, apesar de a lei estabelecer um salário mínimo nacional, não há garantia de que o mesmo é aplicável a estes trabalhadores. O mais habitual é que essa remuneração mínima só seja cumprida com "grupos específicos de trabalhadores independentes", "principalmente as profissões jurídicas ou médicas".

Também não existem acordos colectivos para definir as preços-base destes trabalhadores. Apenas a Polónia permite sem restrições a negociação colectiva para "independentes", enquanto países como Portugal e a Alemanha o permitem "em casos excepcionais". No caso português, apenas está prevista para o regime de trabalho no domicílio, uma lei de 1991 que foi revista em 2019, e que abrange sobretudo trabalhadores do artesanato.

"A tabela de preços não é minimamente conhecida dos motoristas, quanto mais negociada", confirma Paulo Machado, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores de Transportes Rodoviários e Urbanos de Portugal (Strup). Em algumas plataformas, o software usado "não permite sequer conhecer o valor do serviço antes de o motorista o aceitar".

Representação sindical

O trabalho que este sindicato tem feito na representação dos motoristas de TVDE (Transporte em Veículo Descaracterizado a partir de Plataforma Electrónica) e entregadores das plataformas digitais é sublinhado no próprio relatório da Eurofound como um exemplo da forma como os sindicatos tradicionais têm conseguido representar quem formalmente trabalha por contra própria.

A Constituição portuguesa prevê que todos os trabalhadores têm a liberdade de criar e filiar-se em sindicatos, mas a legislação não é explícita sobre o direito de os trabalhadores por contra própria tomarem essa opção, aponta também a Eurofound. A representação sindical dos "independentes" é permitida em 16 países da União, enquanto três (a Estónia, a Roménia e Eslováquia) proíbem-na expressamente.

A representação dos "trabalhadores uberizados" por sindicatos tradicionais "ainda é uma experiência limitada". "Por norma, só acontece em sectores específicos", explica Daniel Carapau, da associação Precários Inflexíveis, outra das entidades nacionais cujo trabalho é destacado no relatório da Eurofound.

Strup e Precários Inflexíveis têm-se batido pelo reconhecimento de que muitos dos trabalhadores que prestam serviços a plataformas de TVDE ou entregas são, na verdade, trabalhadores por contra de outrem. "A lei deve clarificar perfeitamente o que é um empresário, que pode ter vários veículos a fazer este tipo de serviços, parceiros e trabalhadores, que acabam por trabalhar na dependência de outra pessoa", defende Paulo Machado.

O dirigente do Strup aponta, desde logo, a legislação que regula os TVDE, de 2018, que "está desactualizada". "Hoje em dia, percebe-se claramente que esta é uma área de trabalho a tempo inteiro, e não apenas um complemento de rendimento, como era enunciado nesse diploma."

São necessárias "melhorias na legislação", aponta, por seu turno, Daniel Carapau, propondo o alargamento da legislação de combate aos falsos recibos verdes aprovada há quase uma década aos trabalhadores de negócios recentes, como os que se baseiam nas plataformas online.

Também "é preciso maior fiscalização, para garantir que se cumpre a legislação que já existe", sublinha ainda o dirigente dos Precários Inflexíveis. "A Autoridade das Condições de Trabalho não pode actuar apenas quando existem denúncias dos trabalhadores."

Directiva europeia

A investigação da Eurofound tem mostrado que existem vários tipos de trabalho independente, "com características e poderes muito diferentes". "Alguns trabalhadores independentes vivem vulnerabilidades e correm o risco de privação material, com baixos rendimentos e dificuldades em sobreviver"; eles "têm uma maior probabilidade de cair na pobreza e carecem de protecção social", nota o relatório na síntese de abertura.

Este estudo faz parte de um projecto-piloto sobre salários mínimos que o organismo europeu está a fazer para a Comissão Europeia, entre 2021 e 2023. O principal objectivo deste relatório é "entender como os salários mínimos podem ser fixados para trabalhos ou profissões específicos dentro de sectores que têm um alto nível de freelancers e trabalhadores empregados "ocultos".

Em Junho de 2020, a comissária europeia para a concorrência, Margrethe Vestager, reconheceu que os conceitos de trabalhador por conta de outrem e trabalhador por conta própria se têm tornado mais indistintos, sublinhando que "as regras da concorrência não existem para impedir que os trabalhadores formem um sindicato". Bruxelas já anunciou a intenção de criar uma directiva europeia que permita alargar as convenções colectivas a alguns tipos de trabalhadores independentes "que se encontrem numa situação de desequilíbrio de poder na sua relação contratual".



Fim

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