A (i)moralidade que precede o acto

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Sello Zikalala, no papel de padre, com Koketso Mojela e Excellentia Mokoena como prostituta PAUL Grootboom

Pelo palco passam prostitutas e soldados, padres e políticos, amantes e esposas. Seis actores para dez personagens. Foreplay é um retrato mordaz da hipocrisia de uma sociedade afinal sem qualquer moral. Pode ser África do Sul ou qualquer outro lugar. Hoje e amanhã no TDMII

Mpumelo Paul Grootboom tem 35 anos, cresceu no Soweto e é um caso sério do teatro sul-africano - e não só na África do Sul. A peça Foreplay, que escreveu, encenou e apresenta hoje e amanhã no Festival Alkantara, foi estreada em Outubro de 2008 no Festival Afrovibes de Haia, na Holanda, passou por Londres, Bruxelas e, na semana passada, Paris, antes de hoje chegar ao Teatro D. Maria II (TDMII) em Lisboa.

A sua peça anterior, Township Stories (2005), entusiasmou a crítica e correu mundo. Em comum, as duas têm como cenário um township de Pretória. E ambas foram pensadas e escritas para um público sul-africano, mesmo se depois (como outras escritas por Grootboom) tiveram projecção fora. Mas enquanto Township Stories retratava um quotidiano de violência, criminalidade e intimidação e a história se vivia em comunidade, Foreplay mergulha no que de menos nobre há na natureza humana, e revela-o através do jogo que é a relação entre duas pessoas - um militar e uma prostituta, uma prostituta e um político, um jovem e uma mulher adúltera do padre, ou este com uma colegial, e outros.

São dez cenas de pares em dez momentos que precedem o acto. Foreplay é isso - em inglês, a estimulação que precede a relação sexual - e tem o objectivo de falar da hipocrisia moral da sociedade quando o assunto é sexo. São os mesmos dez pares (adaptados) da peça Reigen, de Arthur Schnitzler, que inspirou Foreplay, e que chocou a Áustria do virar do século.

A ideia surgiu depois de Mpumelo Paul Grootboom ver Eyes Wide Shut de Stanley Kubrick (o filme inspira-se na peça Traumnovelle de Schnitzler) e começar a descobrir a obra do escritor e médico austríaco, muito próximo de Sigmund Freud.

"O que me interessou foi a ideia de moralidade que por vezes se quebra numa relação", disse Mpumelo Paul Grootboom numa entrevista ao P2 por telefone. "A peça trata as questões sexuais num contexto religioso. E esse é um tema problemático para um público sul-africano que considera que essas questões devem ser tratadas em privado."

As cenas são quase explícitas. E isso é intencional. "Para funcionar, a mensagem tinha de ser directa", diz Grootboom. De tão directa, chocou. Sobretudo na África do Sul, onde algumas pessoas abandonaram a sala do South African State Theatre, em Pretória, onde Grootboom é responsável pelo Desenvolvimento. AArts Review da África do Sul, revista on-line de cultura, escreve que também em Londres se falou de blasfémia, a propósito da cena em que a personagem, um jovem, diz, a concluir uma reflexão sobre o absurdo da confissão religiosa como elemento de redenção: "Deus é um perverso."

Foreplay não é um retrato da África do Sul, mas muito desta "hipocrisia na religião e na política", como diz Grootboom, é muito visível no seu país. Uma das personagens que encarnam essa falsidade, além do padre, é um ministro, veterano da luta antiapartheid e por isso convencido de que tudo lhe é devido. "Depois de tudo o que fiz por este país, pela liberdade de pessoas como tu", grita para a prostituta. E, numa evocação dos tempos do apartheid, diz: "Quantos de nós não morreram às mãos das forças de segurança. Foi um milagre que alguns, como eu, tenham sobrevivido. Eu sobrevivi para contar a história."

Foreplay não é tanto esse retrato de país, mas mais um retrato da dinâmica de duos que aqui dançam e cantam, em momentos que alternam com os da representação.

Além de hipocrisia, há manipulação e poder de uns sobre outros - acontece por exemplo quando o padre quase explora o sofrimento de uma colegial forçando-a a contar a tragédia de uma vida que ela tenta esquecer.

"Queria mostrar a sua vulnerabilidade e como as pessoas podem aproveitar-se dela", diz Mpumelo Paul Grootboom. Mas sendo vulnerável, ela também é manipuladora. O autor e encenador queria mostrar a ironia do argumento. E para a história trágica da miúda adapta a vida de uma pessoa que conhece na realidade. A peça é nesse sentido um pouco autobiográfica, concede. Mas sê-lo-á mais no sentido interior do que no de um percurso de vida.

Infância no Soweto

Grootboom cresceu com os avós no Soweto, o bairro negro mais emblemático da luta antiapartheid. Não conheceu bem a mãe, nem (de todo) o pai. O avô era professor na escola onde a avó era directora. E ambos privilegiaram mais a formação do neto do que o seu activismo político.

O que passa para as suas peças, e para esta em particular, é mais de si próprio do que desse percurso de vida. "Numa peça como esta, podemos usar muitas das coisas más sobre nós próprios: a tendência para nos aproveitarmos de alguém ou a iludirmos, tirando partido da sua vulnerabilidade."

Além de encenar, escreve e adapta peças de outros autores, como fez com Schnitzler. Em 2005, venceu o Young Artist Award pelo National Standard Bank, para jovens artistas sul-africanos, pelo talento único e excelência na disciplina escolhida. Township Stories valeu-lhe a alcunha de "Township Tarantino" lançada nos media por um agente para promover a peça. Mas não gosta, porque "não tem a ver com a qualidade, mas com a violência". E é a qualidade que o preocupa.

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