Occitânia

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Inquieta-me a maneira como jornalistas e outros interessados se têm alheado do futuro dos países islâmicos em revolução. Não me refiro ao futuro "geo-estratégico" como costuma dizer-se. Refiro-me ao futuro das pessoas. Das mulheres, para ser mais exacto. Na Tunísia, Egipto, Líbia, Síria, as mulheres têm ou tinham uma presença social incomparavelmente mais alargada do que noutros países muçulmanos. Convirá recordar o que sucedeu no Iraque onde o derrube da ditadura de Saddam Hussein representou o regresso à escravização de muitas, se não da maioria das mulheres .

Foi ao pensar nisto e na história das mulheres no Ocidente que me lembrei da Occitânia. A palavra designa uma região que abrangia o sul da França actual mas que se estendia culturalmente pela Catalunha e Aragão. Surgiu aí uma das mais refinadas civilizações que a Europa conheceu. Provém da Occitânia o "Amor Cortês" e a poesia trovadoresca, ergueram-se lá lugares tão sublimes como as abadias cistercienses de Silvacane ou Le Thoronet.

A Occitânia morreu às mãos dos barões franceses do norte e de uma interpretação intolerante do cristianismo, numa cruzada que, na primeira metade do século XIII, fez desaparecer a autonomia da região e da sua cultura ao esmagar num pavoroso banho de sangue a heresia dos Cátaros, um culto cristão divergente da doutrina papal. O horror da repressão marcou o fim da doçura de viver da civilização do sul.

Um dos aspectos dessa doçura era o estatuto de que beneficiavam as mulheres. Entre outros aspectos, a filha maior podia herdar e transmitir bens em desfavor dos seus irmãos mais novos e as mulheres podiam divorciar-se pelas mesmas razões e nas mesmas condições que os maridos. A partir do século XIII, na Occitânia como em alguns outros lugares da Europa onde se verificavam condições semelhantes, as mulheres viram-se como que repentinamente remetidas à menoridade social que veio até aos nossos dias. Alguns historiadores sugerem que esta catástrofe resultou do facto do aristotelismo ter passado a dominar um dos mais importantes centros do pensamento filosófico e jurídico da Europa, a Universidade de Paris, fazendo do desprezo pelas mulheres doutrina oficial. Teria sido também decisiva a crescente influência do direito romano que entrega aos homens o controlo da vida e propriedade familiares. O início desta inversão civilizacional foi assinalado pelo esmagamento manu militari da civilização occitana.

A condição das mulheres passou por muitos avanços e recuos em toda a parte. Teve momentos e lugares de igualdade, outros de retrocesso. Gostaríamos de acreditar que é irreversível aquilo que os movimentos de mulheres conseguiram no Ocidente durante o século XX. Gostaríamos também de pensar que todas as mulheres beneficiarão destas conquistas e dos efeitos das revoluções que ocorrem nos seus próprios países. Mas é bem possível que tudo tenha ficado muito pior para as mulheres do Egipto e da Líbia, como ficou para as do Iraque. As malhas que a liberdade tece podem ser também as grilhetas da tirania.

Historiador

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