Para elas, prostituição é trabalho como outro qualquer

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NÉLSON GARRIDO

Ganha forma de embrião a luta pela legalização do trabalho sexual em Portugal. No Grande Porto, o projecto Porto G cruza portas até agora fechadas. Os técnicos vão aos apartamentos e falam sobre doenças sexualmente transmissíveis, mas também sobre direitos. Hoje é Dia Internacional da Prostituta

Veste duas peças de lingerie de cor preta. Senta-se numa poltrona castanha, de frente para uma mesa de centro, de frente para seis telemóveis. Um telemóvel treme, treme. "Hoje a casa está a funcionar só com duas meninas." O homem, do outro lado, faz perguntas. "Morenas, meigas", responde-lhe ela. "Vinte e três e 26 anos", torna a responder. "Peitos médios."

Deixou os filhos na escola e correu para o modesto apartamento de cores baças. Atende das 10h às 21h. Tem horas para sair, horas para entrar - como qualquer trabalhadora por conta de outrem. Às vezes, ausenta-se - como qualquer trabalhadora com uma criança de dez e outra de 13.

Bruna era ajudante de cozinha num restaurante. Tinha um extra: fazia as unhas de algumas meninas que passavam o dia a vender massagens e sexo. Há uns quatro anos, o restaurante fechou e ela acumulou contas de luz e renda; falou com as amigas: em três dias, juntou os 500 euros que devia.

No início, doeu-lhe, doeu-lhe tanto: "Chorei com os primeiros clientes. Até aí só tinha tido um homem, o pai dos meus filhos. Sentia nojo da saliva deles no meu peito." Depois, percebeu que podia separar amor e sexo e impor algumas regras: nada de beijos, por exemplo.

No outro lado do sofá, uma psicóloga e um enfermeiro, dois elementos do Porto G, projecto da Agência Piaget para o Desenvolvimento (APDES), que vai ao encontro de prostitutas de apartamento e dos seus clientes. Num saco branco, trazem lubrificantes e preservativos: 32 masculinos, cinco femininos (para clientes que resistem ao uso do preservativo ou têm dificuldades de erecção); cinco extrafortes (para sexo anal), três de sabores (para sexo oral masculino), duas carteiras de bandas de látex (para o sexo oral feminino).

Pensaram que seria uma corrida de obstáculos chegar a quem se prostitui longe da vista de quem passa. Afinal, ao fim de um ano e meio, já nem conseguem responder a tantos pedidos. Não falam só de sexo seguro, também de direitos - por exemplo, do direito de acesso ao Serviço Nacional de Saúde, apesar da situação irregular no território. E encaminham para consultas de ginecologia, nutrição, saúde oral, psicologia, psiquiatria e infecciologia.

"Eles vêm pela voz"

O telefone torna a tocar. Bruna torna a detalhar o serviço: "Vinte euros oral e vaginal; completo é 40." Os preços não têm só a ver com a idade ou com a escolaridade ou com a beleza das trabalhadoras, têm também a ver com o apartamento. Neste modesto andar, o cliente sai a tresandar a sexo.

A uns quilómetros, num apartamento com ar condicionado, Catarina, sentada numa cama, de frente para um televisor, de frente para 12 telemóveis. Um telemóvel treme, treme. E ela anuncia, com o seu sotaque um nadinha alentejano: "É 40 euros meia hora; 50 euros uma hora. Muito discreto, muito sossegado. Até às 20h."

Há toalhas dobradas na casa de banho. Desdobra-se uma a cada cliente, que ali pode tomar um duche quente, morno ou frio. A mulher alta e muito magra atende telefonemas para ela e para as duas raparigas que agora se contorcem nos quartos, cada qual a quem antes telefonou. "Eles vêm pela voz. Se a mulher que está à frente não é inteligente, a casa não trabalha."

Gosta de falar. Gosta de falar de tudo. A televisão fala-lhe na crise que encarde o país e ela engata: "A prostituição pode ajudar a encher os cofres do Estado. Isto é um trabalho como outro qualquer! Ando nisto há dez anos. Comecei por ser colaboradora. Depois, aluguei o meu apartamento. Já apanhei sustos. Para haver mais segurança, o Estado devia ser conhecedor das casas que há."

Ainda há uma semana Bruna apanhou um valente susto: "Abri a porta. Vi que era um usuário de drogas, deixei entrar - a gente não discrimina. Nunca pensei! Um homem só! Pôs uma faca nas minhas costas. Eu perguntei: "O que é que você quer?" Ele respondeu: "Tudo!" Eu pensei que ele queria uma relação grátis e falei: "Tudo bem, meu lindo, vamos tirar as roupinhas." Ele queria era o dinheiro e os telemóveis, mas aproveitou. Quando abriu os braços para tirar as roupas, eu dei um salto, abri a porta, falei: "Assalto!" Soltei o Rex, o pastor alemão."

Com e sem documentos

O movimento pró-legalização é, em Portugal, apenas um embrião. Este ano, pela primeira vez nas comemorações do 1 de Maio, apareceram alguns activistas: "Prostituição é trabalho sexual. Trabalho sexual é trabalho!" Anderson, prostituto, travesti, mediador do Porto G, leu o manifesto no Porto.

O rapaz está a chegar de Aveiro. A maior parte circula. Alguns ficam 15 dias num sítio, 15 dias noutro. Podem dar 50 por cento do ganho ao proprietário ou pagar um valor fixo para usar o sítio - 10 euros por cliente, por exemplo -, mas nesse caso pagam o anúncio num jornal ou na Internet.

"Quem está sempre a mudar de praça vive mais isolado, tem mais dificuldade em criar relações", nota a coordenadora do Porto G, Alina Santos. E esse isolamento aprofunda-se entre os estrangeiros indocumentados. Alguns evitam até transportes públicos colectivos (andam sempre de táxi). E esses alguns são tantos: têm nacionalidade brasileira 81 por cento dos trabalhadores do sexo contactados pelo projecto; mais de metade indocumentados.

Anderson está irregular. Bruna não. Bruna casou-se há dois meses com um português. Uma perninha num restaurante permitia-lhe renovar o visto. Trabalhava das 7h às 14h. Duas raparigas atendiam toda a manhã no apartamento que ela alugara na Boavista. E ela juntava-se a elas à tarde. "Disseram à polícia que tinha ilegais. Estávamos todas legais. Elas eram casadas e eu tinha o trabalho no restaurante. Mas fechei." É a terceira vez que está neste apartamento: "Esta foi uma das primeiras casas em que trabalhei. É uma mulher compreensiva. Sabe que tenho filhos e que a qualquer altura posso ter de sair. Nalgumas casas, não se pode sair."

Horas a fazer renda

O marido pede-lhe para deixar este trabalho e ela promete-lhe que sim. Neste momento, ela é capaz de prometer-lhe o planeta inteiro. "Vou sair em Agosto, vou fazer unha, mas não sei se é definitivo. Isso acaba por virar um vício. O dinheiro entra rápido na tua mão todos os dias. Ele não sabe quanto é que eu ganho. Não imagina! Eu tiro um bom dinheiro. Juntei dinheiro para comprar uma casa no Brasil - muita brasileira vem só para juntar algum dinheiro para comprar uma casa, abrir um negócio. Mando 300 euros para a minha mãe todos os meses. Agora, quero juntar dinheiro para ir com os meus filhos ver a minha mãe e os meus irmãos."

Nem só a vida pessoal se alterou. Antes, nem se imaginava a ganhar menos de 80 euros por dia. Agora, passa horas a fazer renda. "A dona da casa coloca três meninas para chamar mais a atenção, mas ficamos muito tempo paradas. Entram 10-12 homens. Nos melhores dias, entram 15."

Claro que novidade trabalha melhor e Bruna já não é novidade: nos tempos áureos chegou a aviar 21 homens num dia - "No final, já não aguentava, já só fazia oral. Hoje, o máximo que se consegue é 13-14 clientes. Tem dias que faço um-dois, tem dias que faço cinco-seis."

É uma profissão de desgaste rápido. Catarina conta 44 anos e diz: "Tenho mais sete para trabalhar nisto. Quando uma mulher atinge os 50, já não lubrifica bem. Quando entrei, tinha 36 e fazia mais do que muitas meninas de 18. A Margarida anda nisto há dois meses e, no máximo, faz oito num dia. Eu cheguei a fazer 25 homens a 50 contos - 50 contos era bastante dinheiro."

Margarida não se vê agora. Calçou umas meias negras de liga e vestiu uma peça de lingerie preta e vermelha e entrou num quatro com um cliente. Agora, neste apartamento, só se vê Catarina. Catarina vai até à janela para fumar um cigarro e diz: "Ela tira 2500 euros limpos. Não gasta no anúncio, na água, na luz, no gás, no papel. Eu forneço tudo. Até a alimentação. Ela ganha mais que eu. Tenho de pagar muitas contas aqui. Tiro três mil euros."

60 euros por anúncio

O primeiro dinheiro é sempre para pagar o anúncio. E isso revolta esta patroa de longos cabelos lisos, negros: "O Jornal de Notícias e o Correio da Manhã são os maiores parasitas das prostitutas. O JN, no Porto, cobra 60 euros por dois dias e oferece o terceiro. Só texto! Com fotografia e moldura, pode levar até 150. Em Lisboa, cobra dez euros por dia ou 40 por cinco dias mais um."

Não brinca em serviço. Já foi reclamar. Explicaram-lhe que tem a ver com liderança. O Correio da Manhã, líder no Sul, também cobra mais em Lisboa do que no Porto. No Porto, apesar dos preços, nada bate o JN: 73 por cento dos trabalhadores do sexo contactados pelo Porto G divulga os seus serviços no JN e 7 por cento no JN e na Net.

O telefone torna a tocar no apartamento amplo. "Lábios carnudos, 45 quilos", diz ela colocando a voz. "Faço tudo menos anal; oral natural até ao fim", torna a dizer. "Aqui são todas depiladas; rapo por baixo, por cima deixo", prossegue. "Meia hora 40 euros. Mas é uma meia hora alargada."

Os males da economia afectam o negócio. Anderson, o mediador, acha natural: "Cortam nas roupas caras, nos perfumes caros, na putaria." Mas não foi só a procura que quebrou. Foi também a oferta que explodiu. As trabalhadoras do sexo parecem multiplicar-se a cada dia que passa. Muitas têm filhos para sustentar, como Bruna ou Catarina. Muitas até são casadas, como Bruna é ou Catarina já foi.

Catarina pede à técnica de serviço social do Porto G que não se esqueça de lhe marcar dentista. E insiste: "Até no tempo de Cristo já existia esta profissão. Não percebo porque não se aceita isto. A maior parte dos clientes é casada e a mulher não lhe dá sexo suficiente. Queria descontar. Ter direito a um seguro de saúde, a uma reforma. Há aí uma mulher de 50 e tal anos que faz sexo oral, na rua, a dez euros. É humilhante! Não tem dinheiro nem para comer! Estou a pedir que me descontem uma parte do que eu ganho! Gostava de ir à Assembleia da República explicar aos políticos as vantagens e as desvantagens da legalização."

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