A NATO deve continuar a ser uma aliança nuclear

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PEDRO MARTINHO

O Artigo 5.º, a dissuasão nuclear e o Tratado de Washington são inegociáveis. Premissas para a revisão do conceito estratégico da Aliança

Ivo Daalder foi nomeado embaixador dos EUA na NATO em Maio de 2009. Veio directamente da Brookings Institution e de uma longa carreira de investigador focada na política externa americana e nas relações transatlânticas, apenas interrompida para desempenhar as funções de director dos Assuntos Europeus no Conselho Nacional de Segurança do Presidente Clinton. Esteve em Lisboa no âmbito da preparação da cimeira da Aliança que decorre a 19 e 20 de Novembro em Lisboa e cujo tema será a revisão do conceito estratégico da Aliança.

O que é que os Estados Unidos esperam, realmente, desta revisão do conceito estratégico da NATO?

Numa palavra: uma Aliança para o século XXI. O que é que isso quer dizer? Basicamente, o reconhecimento das ameaças que hoje confrontam o território da Aliança, que são diferentes. Temos hoje uma menor preocupação em relação a grandes Exércitos a marchar em direcção às nossas fronteiras e uma maior preocupação com os ataques aos nossos sistemas electrónicos ou às infra-estruturas militares e civis. Estamos mais preocupados com o contrabando de uma arma nuclear para as mãos de um grupo terrorista, que pode explodir numa da nossas cidades, ou com o disparo de um míssil balístico sem aviso prévio. Precisamos de uma Aliança em condições de identificar estas ameaças e de construir uma defesa colectiva eficaz contra eles.

A segunda questão é o reconhecimento de que, tal como os EUA não estão em condições de enfrentar sozinhos todos os desafios do século XXI, também a NATO não o pode fazer. Isso quer dizer que precisa de parceiros, precisa de trabalhar com outras organizações, como a União Europeia e a ONU, e com outros países como a Rússia, o Japão, a Austrália, de forma a melhorar a sua capacidade de enfrentar esses desafios comuns. O futuro desta aliança será cada vez mais trabalhar com outros países e organizações .

Há 10 anos, a última revisão do conceito estratégico traduziu as circunstâncias internacionais da guerra dos Kosovo. Hoje, o mundo é completamente diferente. Isso quer dizer que o novo conceito tem de ser radicalmente diferente?

Será diferente. Dirá que temos de trabalhar de forma diferente e de estabelecer parcerias de uma forma diferente. Mas também será o mesmo. A NATO continua a ser uma aliança construída sobre o Tratado [de Washington, 1949], assente nos seus 14 parágrafos. O núcleo desse tratado mantém-se o mesmo. Há um pilar de defesa colectiva..

O Artigo 5.º.

O Artigo 5.º. Um pilar de segurança cooperativa: temos a obrigação de construir em conjunto um mundo melhor, não apenas dentro do território da NATO mas também fora dele, de forma a reduzir a possibilidade de materialização das ameaças. E ainda um "tecto" que são as capacidades comuns e o comando comum, que fazem a diferença entre a NATO e uma "coligação de vontades", fazendo dela uma verdadeira aliança militar. Este núcleo não muda, é sobre ele que a NATO existe. Tem apenas de adaptar-se a um mundo que é muito diferente. Nesta nova fase, precisamos da defesa antimíssil para garantir o Artigo 5.º, precisamos da defesa contra os ciberataques, precisamos de melhor integração das capacidade militares e civis.

As operações de NATO alargaram-se muito para além das suas fronteiras, mas permanece um debate na Europa sobre a natureza da Aliança como uma aliança global ou regional. Esta questão ficará resolvida?

Esse debate já acabou. Hoje, toda a gente reconhece que a NATO não é o "polícia do mundo", que não vai transformar-se numa aliança global com membros em todo o mundo. Mas a NATO precisa de agir num mundo que é global. Já não nos podemos dar ao luxo de dizer que apenas nos preocuparmos com a Europa e com o Atlântico Norte. Um hacker na Austrália pode perfeitamente mandar abaixo o sistema bancário da Estónia ou de qualquer outro país. Hoje, a NATO leva a cabo a maior operação militar da sua história a mais de 5 mil quilómetros da sua sede porque acreditamos que o que se passa no Afeganistão é fundamental para a segurança das pessoas que vivem em Portugal, nos EUA, na Holanda ou na Bulgária.

Dito isto, creio que já resolvemos o problema de saber se a NATO deve ser uma aliança global. A resposta é não. Mas a NATO é um actor num mundo global e tem de ser parte desse mundo

Pensa que os aliados europeus estão preparados para ir para outro Afeganistão?

Penso que os europeus responderam ao Afeganistão de uma forma que corresponde ao que esperávamos. Hoje, há mais tropas europeias no Afeganistão do que em qualquer outro momento. Os EUA aumentaram o seu contingente em Dezembro, mas a Europa também. O Afeganistão é um caso particular. Esperamos não voltar a estar na situação que nos levou lá.

Quais são os questões que não são negociáveis para os EUA? Já referiu o Artigo 5.º. A dissuasão nuclear?

O que não é negociável é o tratado e os princípios que ele consagra: o Artigo 5.º e os meios de o aplicar. Isso quer dizer que a dissuasão nuclear é uma parte fundamental da nossa estratégia, que se baseia num equilíbrio de forças nucleares e convencionais e numa capacidade de defesa antimíssil, que é central. Enquanto existirem armas nucleares, a NATO deve continuar a ser uma aliança nuclear. Mas, ao mesmo tempo, o Presidente Obama também deixou muito claro que quer um mundo sem armas nucleares e que temos de contribuir para fazer dessa visão uma realidade.

Na Alemanha, os partidos que constituem a coligação de governo prometeram uma país livre de armas nucleares. Como interpreta isto?

As decisões sobre a estrutura de forças são tomadas por consenso. Por isso, encontraremos uma forma de adoptar uma política nuclear que seja aceite pelos 28 membros. Mas acreditamos que é essencial que a NATO mantenha a sua capacidade nuclear e que a responsabilidade por manter a dissuasão nuclear deve ser partilhada da forma mais ampla possível.

A outra questão em debate na Europa é o lugar da Rússia. Há em alguns países, como a Alemanha, a percepção de que é preciso encontrar uma forma de incluir a Rússia num esquema de segurança pan-europeu.

Vemos a Rússia como um parceiro estratégico potencial importante, que deve trabalhar com a NATO para resolver questões comuns. Mas, ao mesmo tempo, reconhecemos que há diferenças fundamentais com a Rússia em algumas questões fundamentais, incluindo a Geórgia. Não podemos aceitar que a integridade territorial da Geórgia não seja reconhecida. E nunca reconheceremos a Abkházia e a Ossétia do Sul como independentes. Mas, como o Presidente Obama demonstrou, o facto de discordarmos sobre algumas coisas não nos impede de cooperar noutras. Pensamos que a NATO também deve seguir este caminho e saudamos a iniciativa do secretário-geral [Anders Fogh] Rasmussen de convocar uma reunião do Conselho NATO-Rússia ao mais alto nível para Lisboa, no dia 20 de Novembro.

A relação NATO-UE não tem funcionado convenientemente. Há o problema com a Turquia, que se transformou num obstáculo a esse relacionamento. Como pode ser ultrapassado?

Pensamos que a relação entre a NATO e a UE é fundamental e tem de ser reforçada. Quanto aos obstáculos, eles vão muito para além da Turquia. Estão dentro da própria UE. A abertura da NATO para trabalhar com a UE é muito maior do que a abertura da UE para trabalhar com a NATO. Nesse sentido, os EUA apoiam inteiramente a proposta do secretário-geral, que passa pela concordância da União em envolver países não-membros no seu processo de decisão para operações como as dos Balcãs ou do Afeganistão. A NATO faz isso e esperamos que a UE vá nesse sentido.

Acreditamos que chegou o momento de a Turquia ter a mesma relação com a Agência Europeia de Defesa que tem a Noruega ou os outros membros da NATO que não são da UE e acreditamos que é preciso assinar um acordo de segurança entre todos os membros da UE e todos os membros da NATO de forma a tornarmos a cooperação mais efectiva. São estas as questões que o secretário-geral Rasmussen pôs sobre a mesa. Esperamos que a resposta da UE seja positiva e que, quando chegarmos aqui a Lisboa, possamos garantir que as duas organizações, que têm 21 membros em comum, possam finalmente trabalhar facilmente.

Havia um compromisso para não deixar os orçamentos da defesa dos aliados cair abaixo dos 2 por cento. Na Europa esse compromisso já não está a ser cumprido em muitos países. Esta é também uma questão de solidariedade entre aliados?

A NATO é uma aliança militar. O que quer dizer que os seus membros têm de garantir as suas capacidades militares, que custam dinheiro. Todos nós estamos confrontados com a necessidade de poupar dinheiro. Mas há duas coisas que quero dizer. Primeiro, que isso não se consegue cortando as despesas da NATO, porque não se resolvem os problemas dos défices cortando num orçamento que representa 0,3 por cento dos orçamentos de defesa dos aliados. A segunda é que a alternativa à redução dos orçamentos de defesa é encontrar formas de financiarmos as nossas necessidades em conjunto. Comprar o que é preciso em conjunto.

Há um sentimento generalizado na Europa de que os EUA estão a voltar as costas ao Atlântico e a virar-se para o Pacífico, onde enfrentam os maiores desafios económicos e estratégicos. Como responde a esta sentimento?

Há 30 anos que ouço os europeus queixarem-se disso. Se fosse verdade, há muito que os EUA tinham abandonado a NATO. Os três primeiros embaixadores nomeados [por Obama] foram para o Afeganistão, Iraque e NATO. O Presidente Obama veio à Europa seis vezes no primeiro ano da sua presidência, mais vezes do que qualquer outro Presidente, e durante a maior crise económica dos últimos 70 anos. Se isto não é um forte compromisso com a Europa, então eu não sei como é possível convencer [os europeus] de que a Europa é um parceiro forte e importante para resolver os desafios que enfrentamos. Posso garantir-lhe que os EUA continuam a pensar que, num mundo que é global, a relação com a Europa é fundamental.

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