Évora não tem uma única sala de cinema comercialCultura

Uma capital de distrito com 9500 estudantes universitários corre para Espanha ou para shoppings a 100 quilómetros quando quer ver um filme. Desde Dezembro, exibições regulares só no cineclube, cuja sala é pequena para tanta gente. A alternativa, para quem não pode sair da cidade, são os clubes de vídeo, que vão resistindo.

a A paixão pelo cinema vem de longe em Évora. Fotografias que se mexiam, falavam e cantavam entusiasmaram a população que acorreu ao único animatógrafo do início do século XIX, no Palácio D. Manuel. Porém, esta história não acabou bem e, dois séculos depois, a cidade não tem hoje uma única sala de cinema comercial.

Porquê? A crise económica, a falta de espectadores, o acesso fácil às novidades pirateadas da Internet são as razões apontadas. Daqui a dois anos, prevê-se que haja um novo shopping na cidade, que terá cinco salas. Até lá, os cinéfilos têm de percorrer mais de 200 quilómetros para verem a "tal" película.

No final do século XIX, havia uma corrida à Feira de São João por causa dos filmes, como é relatado no livro As Feiras de Évora, de Manuel Carvalho Moniz. Percebe-se por isso o interesse que a cidade tinha pela sétima arte. O mesmo investigador conta que, em 1897, esteve, em Évora, "a primeira barraca de exposição de um animatógrafo baseado na fotografia em movimento, a que chamavam kinetógrafone".

Hoje em dia, não há oferta de cinema comercial nesta capital de distrito, Património Mundial e cidade universitária. Quem quiser, tem de ir ao Montijo, a Setúbal, a Almada ou mesmo a Badajoz, em Espanha. Até ao Montijo, são 115 quilómetros, 19,20 euros de portagem, 70 minutos de viagem de carro, se circular dentro dos limites de velocidade, e o mesmo trajecto e custo no regresso.

Um Mundo Surreal - um filme que estreou em Portugal na quinta-feira passada - "podia ser o nome dado a estes tempos que a cidade atravessa, sobretudo sendo Património Mundial", vinca Jorge Banha, o primeiro subscritor de uma petição online contra o fim do cinema comercial em Évora, que circulou em Fevereiro de 2008. O abaixo-assinado foi subscrito por 3000 pessoas e entregue na câmara municipal. "Nunca fomos ouvidos, nem uma resposta sequer recebemos", diz Banha. "Queríamos uma sala condigna, onde pudéssemos ir ao cinema uma vez por semana, por exemplo, como era meu hábito".

Jorge Banha lembra que nem todos têm possibilidades económicas para se deslocarem para fora do distrito, restando a alternativa de assistirem a filmes em Estremoz, Borba, Montemor-o-Novo e Portel, "onde as películas só chegam um mês ou mais após a estreia".

Filmes em Badajoz

José Miguel Piçarra, empresário, não quer esperar e vai ao cinema a Badajoz. "Prefiro ir ao outro lado da fronteira, que é mais perto do que Lisboa", sustenta. Frequentador das salas do centro comercial localizado à entrada da cidade espanhola, fala na modernidade dessas salas. "Pode assistir-se a cinema 3D e o público é excelente. Nota-se que quem está gosta mesmo de cinema", sublinha. A falta de legendas em português - em Espanha, todos os filmes são dobrados - não lhe faz diferença, e vê até uma vantagem: "É mais uma forma de aprender melhor castelhano."

O centro comercial Eborim, em Évora, tinha duas salas de cinema, da Lusomundo, mas o espaço encerrou para dar lugar ao novo comando da PSP. A polícia acabou depois por mudar de planos e escolher outro local e já era tarde para reabrir as salas. A autarquia e a distribuidora Lusomundo tentaram encontrar uma solução. O melhor que se conseguiu foi passar filmes no Auditório Soror Mariana, propriedade da Universidade de Évora. Faz hoje precisamente três anos.

A vereadora da Cultura, Cláudia Sousa Pereira, recorda que foram gastos mais de 18 mil euros na recuperação do auditório, e foi adquirido um projector e outros equipamentos em segunda mão à Lusomundo. Na altura, o presidente da câmara municipal, José Ernesto Oliveira (PS), garantiu que a sala tinha recebido o aval da Inspecção-Geral das Actividades Culturais, que licencia as salas de espectáculos.

Tudo parecia, de novo, a postos para que Évora voltasse a ter cinema. Porém, a alegada falta de público levou a Lusomundo a desistir do acordo. José Ernesto Oliveira explicou que a "Zon Lusomundo disse não ter condições para manter uma sala de cinema onde há uma média de cinco espectadores por sessão".

De novo sem cinema, a autarquia estabeleceu um protocolo com o Cineclube da Universidade de Évora e com o núcleo de cinema da Sociedade Joaquim António de Aguiar (SOIR), para que estes assumissem a exploração do auditório. A câmara pagaria os salários dos funcionários, "gastando cerca de 50 mil euros anuais", o aluguer dos filmes e ficaria com a receita de bilheteira.

Esta situação foi, contudo, insustentável para a câmara, que "pagava 3500 euros só do aluguer dos filmes, mensalmente", salienta a vereadora da Cultura. Não teve outra hipótese senão desistir. "Não podia continuar a suportar unilateralmente as despesas impostas pelas sessões de cinema comercial". A 1 de Dezembro de 2010, acabaram as sessões diárias.

A rotina da quarta-feira

Actualmente, a oferta cinematográfica resume-se às sessões do cineclube, todas as quartas-feiras, às 21h30, com filmes ditos alternativos, cinema português, europeu e da América do Sul. Aposta em formatos e géneros ausentes do circuito comercial. O bilhete para estudantes é de 2,50 euros e para o público em geral custa 3,50 euros.

João Paulo Macedo, director do cineclube e promotor do Festival Internacional de Curtas Metragens (FIKE), afirma que a assistência média semanal ronda os 40 a 50 espectadores. A sala tem 60 lugares. "Estamos a falar de uma média superior à média nacional de qualquer sessão comercial, que se pauta nos 42 por cento", sustenta e considera que o serviço está a ser prestado com um nível de participação muito interessante. Diz, por isso, estranhar os argumentos apontados pela Lusomundo, "que teve exclusivamente uma visão economicista da situação", e desconfia do argumento de que uma cidade como Évora não tem 400 espectadores de cinema por semana.

Na passada quarta-feira, o filme Biutiful encheu a casa do cineclube e foram muitos os que não conseguiram bilhete e que se mostravam indignados. Ana Mira, estudante universitária, insistiu, mas não havia um único lugar. "É vergonhoso haver cinema apenas uma vez por semana e mesmo assim não conseguir entrar."

As vozes de desolação fizeram-se ouvir e a direcção do cineclube decidiu agendar nova sessão. "Ultimamente, tem sido sempre assim. A sala enche e há muita gente que fica cá fora, sem bilhete. Desta vez, calhou-me a mim. Deveriam pensar em fazer duas sessões por semana, pelo menos. Para a semana, vão exibir A Rede Social e vai acontecer o mesmo, lotação esgotada", diz Luís Gonçalves, funcionário público.

Marco Santos é estudante universitário e, às quartas-feiras, todos os caminhos vão dar ao cineclube. Já não se lembra quando foi a última vez que assistiu à estreia de um filme. "É inconcebível que uma cidade que tem uma universidade - a segunda a ser fundada em Portugal -, com 9500 estudantes, não tenha uma sala de cinema", sublinha.

Teresa Lourido, funcionária de um ginásio, avança uma solução: "Deveria encontrar-se uma forma de trazer de novo o cinema para Évora, nem que, para isso, tivéssemos que pagar uma quota para uma distribuidora se instalar cá."

As luzes apagam-se, o filme vai começar e Susana Cunha é a última espectadora a entrar. Perdeu uma pequena explicação sobre o filme e o seu realizador. Tudo num clima familiar, que dá a sensação de ser um grupo de amigos que se junta. "Não sei de quem é a culpa, se da câmara, ou se das distribuidoras. Será que nenhuma tem interesse em investir numa sala em Évora?", pergunta.

A resposta da distribuidora Medeia Filmes é peremptória: "Como há um cineclube que exibe alguns dos nossos filmes, nunca pensámos nisso." Fonte desta empresa explica que, no interior de Portugal, por norma, são as autarquias que contactam as distribuidoras para avaliarem se há interesse em abrir salas. Actualmente, esta distribuidora tem 19 salas no continente, uma das quais no Alentejo, em Alter do Chão, distrito de Portalegre.

A Zon Lusomundo é responsável por 30 complexos de cinema com 217 salas, a nível nacional. A escolha das cidades resulta "da análise de caso a caso", refere fonte da empresa, não adiantando se está a negociar o regresso à cidade, no futuro Évora Shopping.

Rita Ribeiro, assessora da Imorendimento e da MadfordDevelopments, que estão a promover este novo shopping, garante que o concurso de gestão das cinco salas de cinema continua aberto. A distribuidora Castello Lopes não quis dizer se está na corrida ou não.

Clubes de vídeo sobrevivem

Quem gosta mesmo de cinema perde o gosto, e espera agora pela Primavera de 2013. Até lá, muitos servem-se dos clubes de vídeo como alternativa. Até há pouco, ainda havia oito clubes de aluguer de filmes em Évora. Actualmente, restam quatro, nos quais se registou um "ligeiro aumento" da procura.

Um dos mais antigos é de Josefina Lopes e está aberto há 14 anos. "Continuo a investir neste meu sonho, apesar dos altos e baixos. Com o encerramento das salas de cinema, notei um moderado aumento da procura", garante. O mesmo diz uma funcionária do clube de vídeo Carlos Tojo: "Houve um maior volume, mas nada de substancial."

A actual duquesa de Cadaval, Diana Álvares Pereira de Melo, é cliente regular do clube de vídeo de Josefina. "Sempre que estou em Évora, como não há cinema, tenho de alugar filmes. Venho três ou quatro vezes por semana e estou muito atenta às novidades", afirma.

A dona do clube não se queixa muito, mas reconhece que o aluguer de filmes via cabo está cada vez mais a fazer concorrência. "A diferença é que, aqui, têm um atendimento personalizado e preços mais acessíveis", sublinha.

Resistente aos tempos, a empresária tem o sonho de criar uma cinemateca que possa ser visitada por todos. "Não vendo nenhum filme, vão ficando todos", garante. O objectivo é contribuir para preservar uma série de películas que estiveram em exibição durante os tempos em que a cidade não teve cinema comercial. Uma história que daria um filme.Em cima, exibição de Biutiful, no cineclube da Universidade de Évora, na passada quarta-feira. Esta é a única maneira de ver cinema nesta capital de distrito.

À esquerda, Josefina Lopes, no seu clube de vídeo, um dos quatro que restam na cidade. Há clientes que recorrem a estas lojas para satisfazerem a vontade de ver cinema.

Na foto do meio, a sala em que são exibidos os filmes do cineclube da Universidade de Évora tem 60 lugares. Muita gente não conseguiu bilhete, na passada quarta-feira.

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