O Japão já não quer luxo, quer"jishuku"

Os japoneses são os maiores compradores de bens de luxo do mundo, algo bem visível nas ruas de Tóquio. Mas, depois do sismo de 11 de Março, a voragem pelas grandes marcas europeias foi substituída pela contenção. A paixão pelos monogramas é da classe média e é uma janela para a cultura japonesa actual.

Nas ruas de Tóquio, a publicidade fala literalmente com o transeunte, há quem nos chame à porta das lojas e no seu interior lançam-se cantilenas de saudação e convencimento. É a omnipresença do consumo, das lojas, dos vídeos nas fachadas dos edifícios. São as marcas, locais e mundiais, de luxo e de classe média, os gadgets e os bonecos arredondados, infantis. E eles, japoneses e japonesas, nas ruas, a oscilar entre o visual laboral, impecavelmente costurado, e o individual, meticulosamente construído - com malas Louis Vuitton, saias de boneca de porcelana, bonecos de peluche ou telemóveis topo de gama a condizer. Mas depois do sismo de 11 de Março, do tsunami e do alarme nuclear, algo disto se perdeu.

Um dos ícones da cidade e da cultura nipónica moderna, as Harajuku Girls, mostram-se no bairro homónimo, carregado de lojas, néones e gente, gente por todo o lado. Todos querem comprar, ver e ser vistos. As Girls posam, especialmente ao domingo, para as máquinas dos turistas, dos bloggers de moda e dos guias de viagens. São bonecas de porcelana, lolitas góticas, explosões de perucas e saiotes de tule fluorescente. Descendo do cruzamento de Harajuku, estamos em Omotesando - uma das artérias mais caras e luxuosas de Tóquio, carregada de lojas e shoppings de marcas reluzentes. Podíamos estar em Paris, pontuada pelas fachadas Dior, Vuitton, Tod"s. Mas a arquitectura é arrojada, no playground de engenharia que é Tóquio, e os Campos Elísios estão a milhas.

As adolescentes entram nas lojas. Endinheiradas ou não. Os menos jovens também. Não namoram as montras. Entram e compram. Símbolos de status, ligações ao Ocidente, partilhas com as estrelas e celebridades que admiram num ecrã ou numa página de revista lustrosa. A sua Vuitton monogramada já cá canta, a it bag Dior do momento também, os saltos Louboutin enfatizam o arquear das pernas asiáticas, a gabardine Burberry deixa antever o forro icónico quando é batida pelo vento de Outono.

Eles e elas não são só ricos. Há mais de 30 anos que os consumidores da classe média abdicam das férias ou das saídas à noite onerosas para poderem comprar peças de grandes marcas. "A juventude vive até muito mais tarde em casa dos pais, o dinheiro é todo canalizado para a compra de bens de luxo. Culturalmente, há quem seja capaz de cortar em tudo, até na alimentação, para poder ter uma carteira Vuitton", explica Sara dos Santos, directora do departamento de luxo da agência de comunicação XN Brand Dynamics e mestre em Gestão de Indústrias do Luxo e Profissões de Arte. "Há marcas de luxo que fazem produtos especial e exclusivamente para o mercado japonês, tudo o que seja monogramado e em que a marca esteja bem visível tem tudo a ver com aquele mercado, com o reconhecimento de status através dos bens de luxo." O mercado de luxo japonês valia, em 2009, entre 10,6 mil e 14 mil milhões de euros. A consultora McKinsey chamava-lhe "o único mercado de massas de luxo".

Da solteira parasita às marcas

Diz a mesma McKinsey que desde a década de 1970 se criou a ideia entre os japoneses de que os produtos europeus eram de maior qualidade e durabilidade. Depois, "possuir produtos caros e feitos na Europa tornou-se num emblema de sucesso económico e aceitação social", diz o relatório Luxury Goods in Japan, de Maio de 2009. O boom de consumo foi nos anos 1980, continuou nos 90s e o retrato-robô do consumidor de luxo é simples: mulher, mais de 35 anos. E depois há aquelas a quem a consultora se refere como "solteiras parasitas", as mulheres com idades entre os 20 e os 35 anos que trabalham mas vivem com os pais e que gastam o seu rendimento, como dizia Sara dos Santos, em bens supérfluos - em carteiras.

Elas, cuja individualidade e afirmação pessoal passou a integrar o uso de símbolos exteriores de estatuto, fazem parte de uma bolha de consumo do luxo que, segundo a McKinsey, vigorou entre 2004 e 2007, insuflada pelos novos-ricos da sociedade nipónica - banqueiros, correctores, agentes imobiliários. Que vão às compras às dezenas de lojas de marcas de alta gama inauguradas na última década no Japão, ao invés dos grandes armazéns multimarcas, em que a experiência de participação no universo de uma marca é mais diluído.

O documento Luxury Goods in Japan tem um subtítulo: Momentary sigh or long sayonara? Nele já se analisava um facto incontornável: apesar de toda esta paixão por logótipos e estatuto, o Japão já era, em 2009, um dos mercados mais afectados pela crise financeira mundial. O estado de espírito dos japoneses mudava e os estudos da McKinsey e do Nikkei Institute of Industry e Regional Economy mostram um desinteresse crescente do japonês médio pelos produtos de luxo, combinado com o desejo de mais poupança e promoções. E depois veio um sismo, um tsunami, mais de 25 mil mortos e o drama na central nuclear de Fukushima, ainda em curso.

Ginza à meia luz

Tudo isto, portanto, este fulgor Fendi japonês, é tão 2010. Em Abril desse ano, a portuguesa Paula Ribeiro, que trabalha em Marketing na Enoport United Wines, esteve no Japão. A sua experiência de Tóquio foi marcada pelo consumo. "Lembro-me do grito de admiração que dei no primeiro dia em Tóquio. Fui visitar Harajuku e não conseguia andar e muito menos aproximar-me das lojas. Era impossível. Tudo lotado. As pessoas pareciam loucas e hipnotizadas", recorda à Pública. "Numa outra zona, Ginza, a nossa Avenida da Liberdade, mas em grande escala, a rua era mais calma mas igualmente a apelar ao consumo, embora de uma forma mais discreta. Lojas de marca Dior, Burberry, Cartier, Vuitton... e cheias de pessoas. Nota-se que as pessoas gostam de ostentar. Sente-se o poder de compra."

Três semanas depois do destruidor sismo de magnitude 9 na escala de Richter, o cenário é bem diferente no bairro de Ginza, a morada oficial do luxo em Tóquio. A electricidade está ainda a ser racionada e por isso a iluminação de rua é baixa. As compras são menos importantes, claro, perante um drama nacional. Agora, aliás, e como é próprio num país que mede o grau de inclinação da vénia em função do respeito e deferimento que se sente pelo interlocutor, o código de conduta actual é outro. Não é o status em função do status, a aparência. Naturalmente, diríamos, uma nação cumpre agora o seu jishuku - a autocontenção. Os anúncios de rua não gritam ou falam mais baixo. Há luto.

"Jishuku tornou-se na forma de as pessoas em Tóquio expressarem solidariedade numa altura de crise. Jishuku é a forma mais fácil de sentirmos que estamos a fazer algo", frisa Kensuke Suzuki, professor de sociologia na Universidade Kwansei Gakuin. Jishuku é o que fará com que um habitante com quem Paula Ribeiro se cruzou não volte tão cedo a levar o seu cão Ralph Lauren à rua. "O cão tinha um fato - blazer e calças - Ralph Lauren e em conversa questionei o dono sobre isso. Ele respondeu que todos vestem os animais, que é fashion e dá estatuto."

Paula Ribeiro identificou ali um campo fértil para a sua profissão. "É uma questão de estatuto e de poder. As marcas aproveitam e fazem um trabalho fantástico ao nível do marketing. Lá, é muito difícil resistir ao consumo... o ambiente está todo trabalhado para esse sentido." Em 2010, ainda assim, a recessão mundial tinha já contribuído para o abrandamento do consumo de luxo no Japão, deixando o gigante asiático que se segue, a China, a crescer ferozmente nesse campo - é lá que abre hoje o maior número de lojas de marcas ocidentais de luxo e de alta gama.

Mas o tsunami exponenciou esta reacção dos japoneses. A palavra de ordem, como frisava o New York Times, é agora "contenção". Já não há espaço para o estímulo pelo estímulo. A ideia é ser solidário e optimista perante a adversidade da nação. "Percebo agora quanto desperdicei", diz ao New York Times Maki Kusaka, de 23 anos, escriturária e possuidora de dez malas Gucci, entre outros produtos de luxo. O sismo "mudou a perspectiva das pessoas", diz.

Japão, meca das vendas de luxo

O maior mercado mundial de bens de luxo é o norte-americano, escreve a Reuters, seguido de perto pela China e por uma ilha com um quinhão da sua dimensão geográfica e populacional, o Japão. Um estudo do Deutsche Bank, divulgado pelo New York Times, indica mesmo que em 2010 o Japão suplantou qualquer outra região do mundo, com 24 por cento das vendas de bens de luxo feitas aos seus cidadãos, residentes ou não na ilha nipónica. A seguir, 22 por cento na Europa (todo um continente), 20 por cento para a América do Norte, 19 por cento na China.

Marcas como a francesa Hermés dependem do Japão para escoar um quinto das suas vendas, a Vuitton vende lá 9 por cento dos seus produtos, a marca de acessórios Coach, que chegou recentemente a Portugal, faz 20 por cento das suas vendas no Japão e a Tiffany & Co tem 55 lojas no país, onde se transaccionam 19 por cento das suas vendas, tornando o Japão no segundo mercado mundial da emblemática joalheira.

"Os bens de luxo dependem da confiança das pessoas", diz, a propósito da análise do mercado, a Sarasin, gestora suíça de fundos de investimento. Uma recessão (quase) mundial e o peso moral de uma catástrofe natural podem agravar a situação. "Embora nem todas as partes do país tenham sido igualmente afectadas em termos físicos, é quase certo que os acontecimentos recentes vão abrandar a disposição dos consumidores" japoneses, frisava à Reuters, poucos dias após o sismo, o analista Paul Lejuez, da Nomura Securities.

Na semana seguinte ao tremor de terra, os mercados bolsistas já se ressentiam. As acções da Burberry chegaram a cair seis pontos percentuais na bolsa de Londres, as da Louis Vuitton-Moet Hennessy três por cento na bolsa de Paris e as do grupo PPR, que detém a Gucci ou a Yves Saint Laurent, outros dois. O problema é mundial e o mercado precavia-se perante mais um mau sinal global. É que, sintomaticamente numa nação de early adopters de tecnologia e de pioneiros da comunicação global, 10 a 20 por cento dos compradores de luxo japoneses fazem as suas compras no estrangeiro ?? combinando os seus hábitos de compras internas e externas, os japoneses são mesmo os maiores compradores de luxo no mundo. A sua contenção afecta todo o mercado.

No entanto, dias depois, as acções voltaram a subir. Já houve o 11 de Setembro nos EUA, já houve o sismo de Kobe, em 1995, no Japão, e a tendência de contracção posterior do mercado durou períodos variáveis, trimestres ou semestres, para depois voltarem aos valores pré-catástrofe. Ainda assim, o Deutsche Bank reviu em baixa as suas previsões para 2011 para o sector - o crescimento das vendas de bens de luxo deve ser de 2,1 por cento, em média, longe dos 8,9 por cento que previa inicialmente no seu outlook 2011. Este sismo e as suas consequências, ao nível da saúde humana a médio prazo, na circulação de bens, nos transportes e nas indústrias primárias pode ser bem maior para a economia japonesa, uma das mais vibrantes do mundo.

Sara dos Santos avisa que é impossível prever o tempo de recuperação do Japão. Mas arrisca que "vai ser muito rápido, porque é um país de workaholics, muito independente e com uma enorme capacidade de reconstruir. Dentro de cinco anos, estima-se, o Japão vai voltar a ser o que era. E a nível económico, dentro de um ano ou dois, vai voltar, especialmente em Tóquio, que é a principal cidade de luxo".

"Ginza está totalmente vazia. As pessoas já não vêm aqui. Temos menos 50 por cento de clientes", descrevia há dias G.C. Amarit, empregado num restaurante local. As lojas não estavam a cumprir os horários normais devido às falhas de energia e às questões de segurança. Os grupos que as detêm estão a acompanhar a situação, não avançando para já quais são as suas expectativas para o mercado. "As vendas serão naturalmente afectadas", confirma Sara dos Santos, "mas depende muito do sector de actividade das marcas".

E exemplifica: uma marca de relógios, um bem identificado como sendo mais duradouro e visto como "um investimento", dificilmente será afectada por esta fase de contenção. Já uma carteira, neste momento, "é uma compra de luxo". Do lado dos fabricantes, o mesmo fenómeno. "Uma das poucas marcas que não sofreram após o 11 de Setembro foi a Hermés. Porque as carteiras [como as famosas Birkin ou Kelly] são encomendadas com três anos de antecedência."

No que toca às luzes menos brilhantes de Ginza, Harajuku ou do famoso cruzamento de Shibuya, um Verão cálido como é tipicamente o do Japão promete condicionar ainda mais o uso de energia eléctrica. Tóquio, nos próximos tempos, poderá brilhar um pouco menos.

joana.cardoso@publico.pt

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