O establishment judaico da América não está a salvar a democracia de Israel

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Askhenazes exigem separar os seus filhos dos sefarditas nas escolas de Israel JACK GUEZ/AFP

Uma velha geração de sionistas americanos ainda acredita num Israel inocente, secular e unido pela memória do Holocausto e das guerras com os árabes. Os seus filhos já não têm essas lembranças, recusam o sentimento de vitimização e reclamam o direito de criticar uma "potência ocupante". Ao trocarem o "sionismo falhado" das organizações mainstream pelo seu "genuíno liberalismo", estes jovens deixam o caminho aberto aos ortodoxos, mais ligados à religião do que aos valores universais. Por Peter Beinart

Em 2003, vários filantropos judeus eminentes contrataram Frank Luntz, um republicano especialista em sondagens, para explicar por que os estudantes universitários judeus americanos não se insurgiam mais vigorosamente contra as críticas a Israel nos campus. Em resposta, ele acabou, sem querer, por produzir um dos mais devastadores libelos que eu jamais havia visto contra a comunidade judaica norte-americana.

Os filantropos queriam saber qual a opinião dos estudantes judeus sobre Israel. Luntz descobriu que a maioria deles não tinha sequer opinião. "Seis vezes reunimos jovens judeus em grupos para falarem sobre as suas raízes judaicas e ligação a Israel", escreveu Luntz. "Por seis vezes o tópico Israel só surgiu quando o abordámos explicitamente. Por seis vezes estes jovens judeus usaram a palavra "eles" e não "nós" para descrever a situação."

Que Luntz se tenha deparado com indiferença não foi surpreendente. Nos últimos anos, vários estudos revelaram, nas palavras de Stecen Cohen, da Hebrew Union College, e de Ari Kelman, da Universidade da Califórnia, em Davis (EUA), que "os judeus não ortodoxos mais jovens sentem-se, de um modo geral, menos ligados a Israel do que os mais velhos", com muitos a exprimirem "uma ausência quase total de sentimentos positivos". Em 2008, o senado estudantil em Brandeis, a única universidade não sectária patrocinada por judeus na América, rejeitou uma resolução comemorativa dos 60 anos do Estado judaico.

A tarefa de Luntz era perceber o que correu mal. Quando pôs à prova os pontos de vista dos estudantes sobre Israel, embateu contra algumas convicções firmes. Primeiro, "eles reservam-se o direito de questionar a posição israelita". Estes jovens judeus, explicou Luntz, "resistem a tudo o que percepcionam como "pensamento de grupo"". Eles querem uma discussão "aberta e franca" sobre Israel e os seus defeitos. Segundo, "os jovens judeus querem desesperadamente a paz". Quando Luntz lhes mostrou uma série de anúncios, um dos mais populares intitulava-se "A prova de que Israel quer a paz" e enumerava as propostas de vários governos israelitas para se retirar de territórios conquistados. Terceiro, "havia, da parte deles, empatia com o sofrimento dos palestinianos". Quando Luntz exibiu anúncios mostrando os palestinianos como violentos e odiosos, vários participantes nestes focus groups criticaram-nos como estereótipos e injustos, citando os seus próprios amigos muçulmanos.

Os estudantes, na sua maioria, eram liberais. Eles adoptaram alguns dos valores que caracterizam a cultura política judaica americana: a crença no debate aberto, o cepticismo em relação à força militar, a defesa dos direitos humanos. E, na sua inocência, não compreendiam que deveriam atribuir esses valores a Israel. Só acham atractivo um único tipo de sionismo, o que reconhece os palestinianos como merecedores de dignidade e capazes de fazer a paz. Mostraram-se ainda totalmente à vontade na condenação de um governo israelita que não partilhe estas convicções. Luntz não entendeu a ironia. O único tipo de sionismo que eles acham atraente é aquele contra o qual o establishment judaico americano tem batalhado a maior parte da sua vida.

Hoje, entre os judeus americanos, há muitos grandes sionistas, sobretudo no mundo ortodoxo, pessoas profundamente devotadas ao Estado de Israel. E há muitos e grandes liberais, sobretudo no mundo judaico secular, pessoas dedicadas aos direitos humanos para todos, incluindo os palestinianos. Mas os dois grupos distinguem-se cada vez mais. Sobretudo nas gerações mais novas, menos e menos judeus americanos liberais são sionistas; menos e menos judeus americanos sionistas são liberais. Uma das razões é o facto de as principais instituições dos judeus americanos se recusarem a promover - na realidade, o facto de recusarem activamente - um sionismo que questione o comportamento de Israel na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e em relação aos seus cidadãos árabes. Há várias décadas que o establishment judaico pede aos judeus americanos que deixem o seu liberalismo à porta do sionismo, e agora, para seu horror, descobre que muitos jovens judeus escolheram questionar o seu sionismo.

Moralmente, o sionismo americano está numa espiral descendente. Se os líderes de grupos como AIPAC [American Israel Public Affairs Committee] e Conference of Presidents of Major American Jewish Organizations não mudarem de rumo, vão acordar um dia destes e descobrir uma liderança sionista mais jovem, dominada por ortodoxos, cuja hostilidade nua e crua aos árabes e aos palestinianos os assustará até a eles próprios, e à massa de judeus americanos seculares que inclui desde apáticos a assustados. Salvar o sionismo liberal nos Estados Unidos - para que os judeus americanos possam salvar o sionismo liberal em Israel - é o maior desafio dos judeus americanos da nossa era. E começa onde os estudantes de Luntz queriam que começasse: falando francamente sobre o actual governo de Israel, não mais desviando os nossos olhos.

Desde os anos de 1990, jornalistas e académicos têm vindo a descrever uma bifurcação na sociedade israelita. Nas palavras de Yaron Ezrahi, cientista político na Universidade Hebraica [em Jerusalém], "depois de décadas do que veio a ser designado por consenso nacional, a narrativa sionista de libertação dissolveu-se em versões abertamente contrárias". Uma versão, "assente na longa memória da perseguição, do genocídio e de uma luta amarga pela sobrevivência, é pessimista, desconfiada dos que não são judeus, e acredita só no poder e na solidariedade dos judeus". Outra, "alimentada por versões secularizadas de messianismo, assim como na ideia das Luzes do progresso", articula "um sentimento profundo dos limites da força militar, e está comprometida com valores liberais-democráticos". Em todos os países há manifestações de divisões ideológicas. Mas, no Israel contemporâneo, este fosso é dos maiores do mundo.

No Israel actual, o sionismo universalista e humano não detém o poder. Pelo contrário, respira com dificuldade. Para compreender como são profundamente antiéticos os valores do Governo de Benjamin Netanyahu, vale a pena recordar o caso de Effi Eitam. Antigo ministro e herói de guerra, o carismático Eitam propôs uma limpeza étnica dos palestinianos na Cisjordânia. "Teremos de expulsar a maioria dos árabes da Cisjordânia e afastar os árabes israelitas do sistema político", declarou em 2006. Em 2008, o pequeno partido Ahi, de Eitam, fundiu-se com o Likud, de Netanyahu. E, no ano académico de 2009-2010, Eitam tem sido o emissário especial de Netanyahu para a campus engagement [mobilização universitária] no estrangeiro. Nessa qualidade, visitou no Outono passado dezenas de liceus e faculdades nos Estados Unidos, em nome do Governo israelita. O grupo que organizou a sua viagem chama-se Caravan for Democracy (Caravana para a Democracia).

O ministro israelita dos Negócios Estrangeiros, Avigdor Lieberman, partilhou em tempos as posições de Eitam. Quando era jovem, fez parte, por um breve período, do agora ilegalizado partido Kach, de Meir Kahane [um rabi assassinado nos EUA], que também advogava a expulsão dos árabes de Israel. Agora, a posição de Lieberman pode ser catalogada como de "pré-expulsão". Ele pretende revogar a cidadania dos árabes israelitas que não jurem lealdade ao Estado judaico. Tentou impedir dois partidos árabes que se opuseram à guerra de Gaza de 2008-2009 de apresentarem candidatos ao Knesset. Disse que os deputados árabes que se encontrem com representantes do Hamas devem ser executados. Quer prender todos os árabes que façam luto público no Dia da Independência de Israel, e espera negar, permanentemente, a cidadania aos árabes de outros países que se casem com árabes de Israel.

Não é preciso ser paranóico para ver a ligação entre as posições actuais e as antigas de Lieberman. Quanto menos protecção legal tiverem os árabes israelitas, e quanto mais os acusarem de traição, mais plausível é uma política de expulsão. Os defensores americanos de Lieberman notam frequentemente que, em teoria, ele apoia um Estado palestiniano. O que, habitualmente, se esquecem de referir é que, para ele, uma solução de dois Estados significa redesenhar as fronteiras de Israel para que uma larga porção de árabes israelitas seja exilada num outro país, sem o seu consentimento.

Lieberman foi chefe de gabinete de Netanyahu no primeiro mandato deste como chefe do governo. E, no que diz respeito à Cisjordânia, o próprio registo de Netanyahu é ainda mais extremista do que o seu protegido. Num livro que publicou em 1993, A Place among the Nations, Netanyahu não só rejeita a ideia de um Estado palestiniano como nega a existência de palestinianos. Na realidade, compara repetidamente a luta palestiniana por um Estado ao nazismo. Um Israel que se retire da Cisjordânia, declarou Netanyahu, seria um "Estado-gueto" com "fronteiras de Auschwitz". E o esforço "de retirar a Judeia e Samaria [a Cisjordânia] a Israel" faz lembrar a tentativa de Hitler de arrancar à Checoslováquia o "distrito dos Sudetas" de expressão alemã, em 1938. É injusto, insiste Netanyahu, pedir a Israel que entregue mais território uma vez que já lhe foram arrancadas vastas concessões. Mas que concessões? A de abandonar a reivindicação de controlar a Jordânia, que por seu direito deveria ser parte do Estado judaico.

À esquerda da coligação de Netanyahu senta-se o enfraquecido Partido Trabalhista, de Ehud Barak, mas seja qual for o seu potencial de moderador, está contrabalançado pelo que é, de certa maneira, o parceiro de coligação menos liberal de todos, o Shas, o partido ultra-ortodoxo que representa os judeus com origens no Norte de África e no Médio Oriente.

Houve um tempo em que o Shas, tal como alguns ultra-ortodoxos askhenazes [de origem europeia], eram favoráveis ao desmantelamento dos colonatos. Nos últimos anos, porém, os israelitas ultra-ortodoxos, ansiosos por encontrar casas para as suas famílias numerosas, têm vindo a mudar-se para a Cisjordânia, onde graças a subsídios governamentais a vida é muito mais barata. Não é coincidência que os seus partidos políticos se tenham tornado duros opositores de compromissos territoriais. E fizeram-no com a virulência que reflecte a profunda hostilidade do judaísmo ultra-ortodoxo para com os valores liberais. O rabi Ovadia Yosef, o imensamente poderoso líder espiritual do Shas, tem chamado aos árabes "víboras", "cobras" e "formigas".

Tendências extremistas

Ze"ev Sternhell é professor na Universidade Hebraica, historiador do fascismo e vencedor do prestigiado Prémio Israel. Ao comentar sobre Lieberman e os líderes do Shas num recente artigo de opinião no [diário israelita] Ha"raetz, escreveu: "A última vez que políticos com ideias semelhantes estiveram no poder na Europa Ocidental pós-II Guerra Mundial foi na Espanha de Franco."

Com a bênção deles, "uma campanha rude e multifacetada está a ser travada contra a ordem liberal e democrática". Sternhell sabe o que diz. Em Setembro de 2008, ficou ferido quando um colono fez deflagrar um engenho explosivo junto da sua casa.

Os governos israelitas vão e vêm, mas a coligação de Netanyahu é o produto de tendências assustadoras e de longo prazo na sociedade israelita: uma população ultra-ortodoxa que aumenta de forma dramática; um movimento de colonos que cresce cada vez mais radical e se infiltra na função pública e no exército; uma comunidade de imigrantes russos facilmente predisposta ao racismo antiárabe.

Poderão pensar que estas tendências, e a simpatia por elas expressa por alguns no Governo israelita, provocariam uma substancial inquietação pública - e até um sentimento de ultraje - entre os líderes dos judeus americanos. Estão enganados. Em Israel, vozes da esquerda, e até do centro, advertem em tom de cada vez maior urgência para as ameaças à democracia israelita. (Os ex-primeiros-ministros Ehud Olmert e Ehud Barak avisaram que Israel corre o risco de se tornar num "Estado de apartheid" se continuar a ocupar a Cisjordânia.) No entanto, nos Estados Unidos, grupos como o AIPAC e a Conference of Presidents patrulham o discurso público, repreendendo as pessoas que contradizem a sua visão de Israel como um Estado em que todos os líderes acarinham a democracia e anseiam pela paz.

O resultado é uma ironia terrível. Em teoria, as organizações judaicas americanas mainstream ainda talham uma visão liberal do sionismo. No seu website, o AIPAC celebra a fidelidade de Israel à "livre expressão e direitos das minorias". A Conference of Presidents declara que "Israel e os Estados Unidos partilham valores intelectuais, morais e políticos, incluindo democracia, liberdade, segurança e paz". Estes grupos nunca dirão, como dizem alguns na coligação de Netanyahu, que os árabes de Israel não merecem cidadania plena e que os palestinianos da Cisjordânia não merecem direitos humanos. Mas, na prática, ao defenderem virtualmente tudo o que qualquer governo israelita faz, eles tornam-se guarda-costas intelectuais dos líderes israelitas que ameaçam os valores liberais que eles professam admirar.

"Traidores que se odeiam"

A comunidade judaica americana organizada não só evita críticas públicas ao governo israelita como tenta impedir que outras façam essas críticas. Nos últimos anos, organizações de judeus americanos têm travado uma campanha para desacreditar os mais respeitados grupos internacionais de direitos humanos: Amnistia Internacional, Human Rights Watch, Christian Aid, Save the Children.

A Human Rights Watch e a Amnistia Internacional não são infalíveis. Mas quando grupos como o AIPAC e a Conference of Presidents evitam, virtualmente, todas as críticas das acções israelitas - dirigindo o seu ultraje apenas contra os vizinhos de Israel -, ficam eles próprios na posição de não poderem acusar os outros de serem tendenciosos. Mais, embora grupos de judeus americanos aleguem que estão simplesmente a defender Israel dos seus inimigos, estão na realidade a tomar partido numa luta "dentro" de Israel entre visões sionistas radicalmente diferentes. Muitos desses grupos, como o B"Teselem e o ramo israelita dos Physicians for Human Rights, têm sido tão críticos das acções de Israel no Líbano, em Gaza e na Cisjordânia como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch.

Tudo isto levanta uma questão desconfortável. Se os grupos judeus americanos alegam que os críticos de Israel [em grupos] de direitos humanos no estrangeiro são tendenciosamente anti-israelitas e anti-semitas, o que dizer dos críticos [dos grupos] de direitos humanos dentro de Israel? A insinuação é clara: ou eles se odeiam a si próprios ou serão mesmo traidores.

Liberais versus ortodoxos

No establishment judaico americano actual, a linguagem do sionismo liberal - com os seus idiomas de direitos humanos, cidadania igual e compromisso territorial - foi drenada de sentido. Permanece a língua franca, em parte, por motivos geracionais, porque muitos sionistas americanos mais velhos ainda se vêem a si próprios como uma espécie de liberais. Votam nos democratas; não se deixam mover por reivindicações bíblicas à Cisjordânia; consideram os palestinianos pessoas decentes traídas por maus líderes; e são laicos. Não querem que as organizações judaicas critiquem Israel à esquerda, mas também não querem ser agentes da direita israelita.

Estes sionistas americanos são o produto de uma determinada era. Muitos foram moldados pelos dias aterrorizantes que conduziram à Guerra dos Seis Dias, quando parecia que Israel poderia ser derrotado, e pelas consequências amargas da Guerra do Yom Kippur, quando grande parte do mundo parecia ter-se virado contra o Estado judaico. Nessa prova, Israel tornou-se, para eles, a sua identidade judaica, frequentemente em conjunção com o Holocausto, que aquelas guerras de 1967 e 1973 contribuíram para que se tornasse central na vida judaica americana. Esses judeus abraçaram o sionismo antes de o movimento dos colonos se ter transformado numa grande força da política israelita, antes da guerra do Líbano de 1982, antes da primeira Intifada [em 1987]. Eles apaixonaram-se por um Israel que era mais secular, menos dividido e menos definido pela teologia, política e cultura da ocupação. Ao desvalorizar o significado de Avigdor Lieberman, dos colonos e do Shas, os grupos judaicos americanos permitem que estes sionistas mais velhos continuem a identificar-se com esse Israel da sua juventude, mais inocente e mais coeso internamente, um Israel que hoje apenas existe nas suas memórias.

Mas estes judeus seculares não se estão a reproduzir. Os seus filhos não têm memória de exércitos árabes concentrados na fronteira de Israel, e de Israel sobreviver em parte devido a uma ajuda militar de urgência dos Estados Unidos. Pelo contrário, eles cresceram a ver Israel como uma potência ocupante e hegemónica.E, em resultado disso, têm mais consciência de como o comportamento de Israel viola os ideais liberais, e estão menos dispostos a absolver Israel porque a sua sobrevivência está em perigo. Por eles terem herdado o liberalismo dos seus pais, não podem abraçar o seu sionismo sem sentido crítico. Porque o seu liberalismo é genuíno, eles vêem como o liberalismo do establishment judaico americano é falso.

Se quiserem continuar a encorajar o seu sionismo sem sentido crítico, as organizações judaicas americanas vão ter que recarregar as suas fileiras com jovens judeus americanos que nasceram durante a ocupação da Cisjordânia mas não estão perturbados com isso. E esses jovens judeus americanos virão, desproporcionadamente, do mundo ortodoxo.

Porque se casam mais cedo, têm menos casamentos mistos e mais filhos, os judeus ortodoxos estão a tornar-se rapidamente parte significativa da população judaica americana. Segundo uma sondagem do American Jewish Committee (AJC), embora os judeus ortodoxos constituam apenas 12 por cento dos judeus americanos com mais de 60 anos, já são 34 por cento nas idades entre 18 e 24. Para as organizações sionistas, estes jovens ortodoxos são uma potencial bonança. Nas suas yeshivas [escolas talmúdicas], aprendem desde a infância a devoção a Israel. O mesmo estudo do ACJ descortinou que embora só 16 por cento dos judeus adultos não ortodoxos com menos de 40 anos se sintam "muito próximos de Israel", entre os ortodoxos essa percentagem sobe para 79. À medida que os judeus seculares se afastam das instituições sionistas da América, os ortodoxos vão chegando para preencher o seu lugar. Os ortodoxos "estão mais interessados em questões judaicas provincianas", explica Samuel Heilman, sociólogo na City University of New York. "Eles foram os últimos a permanecer na casa judaica e, por isso, são eles que apagam a luz."

Mas é este provincianismo - um profundo compromisso com as questões judaicas, a superar por vezes as questões mais universais - que dá ao sionismo judaico ortodoxo um cariz distintamente não liberal. A sondagem de 2006 do AJC concluiu que embora 60 por cento dos judeus americanos não ortodoxos com menos de 40 anos apoiem um Estado palestiniano, essa percentagem baixa para 25 entre os ortodoxos.

O sofrimento palestiniano

O judaísmo ortodoxo tem grandes virtudes, incluindo um zelo comunal e uma dedicação aos ensinamentos judaicos sem paralelo no mundo judaico americano. (Sou parcial, uma vez que a minha família frequenta uma sinagoga ortodoxa.) Mas, se a actual tendência continuar, a influência crescente dos judeus ortodoxos nas instituições comunais judaicas dos Estados Unidos vai estilhaçar até o verniz liberal-democrático que hoje cobre o sionismo americano. Em 2002, numa enorme manifestação de solidariedade com Israel no Washington Mall, em que 70 por cento dos participantes eram ortodoxos, o então vice-secretário da Defesa Paul Wolfowitz foi vaiado quando disse que "palestinianos inocentes também estão a sofrer e a morrer".

Os líderes judeus americanos deviam pensar seriamente nessa manifestação. A não ser que mudem de rumo, ela pressagia o futuro: um movimento sionista americano que nem sequer finge preocupação com a dignidade dos palestinianos e uma vasta população judaica americana que nem sequer finge preocupação com Israel. Os meus próprios filhos, tendo em conta o modo como foram educados, poderão muito bem vir a estar entre os que vaiam ou os que integram os focus groups de Luntz. Qualquer uma das possibilidades me apavora.

Em 2004, num esforço para impedir o contrabando de armas a partir do Egipto, carros de combate e escavadoras israelitas demoliram centenas de habitações no campo de refugiados de Rafah, no Sul da Faixa de Gaza. Ao olhar para a televisão, o veterano político e comentador israelita Tommy Lapid viu uma velhota palestiniana de rastos à procura dos seus medicamentos, nas ruínas da sua casa. Ele disse que ela lhe fazia lembrar a sua avó.

Para começar, Lapid olhou. Há uma epidemia de não querer olhar entre os sionistas americanos actuais. Um estudo da Cruz Vermelha sobre má nutrição na Faixa de Gaza, um projecto de lei no Knesset para permitir que bairros judaicos neguem entrada a árabes israelitas, um relatório de [um grupo] de direitos humanos israelita sobre colonos que deitam fogo a oliveiras palestinianas, mais três adolescentes palestinianos mortos a tiro - é desagradável. Racionalizar e minimizar o sofrimento palestiniano tornou-se um jogo. Num relatório mais recente sobre como encorajar o sionismo entre os jovens na América, Luntz exortou os grupos judaicos americanos a usarem a palavra "árabes e não palestinianos", uma vez que "o termo "palestinianos" evoca imagens de campos de refugiados, vítimas e opressão", enquanto ""árabe" quer dizer "riqueza", "petróleo" e "islão"".

Holocausto e vitimização

É claro que Israel - tal como os EUA - têm por vezes de tomar decisões moralmente difíceis para sua própria defesa. Mas elas só são moralmente difíceis se se permitir algum tipo de ligação humana com o outro lado. De outro modo, a segurança justificará tudo. (...) O que enfureceu os críticos sobre o comentário de Lapid foi a sua avó ter morrido em Auschwitz. Como é que ele ousou conspurcar a memória do Holocausto?

É claro que o Holocausto foi incomensuravelmente pior do que Israel jamais fez ou fará. Mas, pelo menos, Lapid usou o sofrimento judaico para o ligar ao sofrimento de outros. No mundo do AIPAC, as analogias com o Holocausto nunca acabam, e a sua mensagem é sempre igual: os judeus, por terem sido vítimas, têm licença para se preocupar apenas com eles próprios. Muitos dos fundadores de Israel acreditavam que, com um Estado, os judeus seriam justamente julgados pela maneira como tratassem os não judeus que vivessem sob o seu domínio. "Pela primeira vez, seremos a maioria a viver com uma minoria", disse o deputado do Knesset Pinchas Lavon, em 1948. "E seremos chamados a dar o exemplo e a provar como os judeus vivem com uma minoria."

Mas a mensagem do establishment judaico americano e dos seus aliados no Governo de Netanyahu é exactamente a oposta: porque os judeus são vítimas permanentes da História, sempre à beira da extinção, a responsabilidade moral é um luxo que Israel não pode ter. A sua única responsabilidade é sobreviver. Como escreve Avraham Burg, antigo presidente do Knesset, no seu extraordinário livro publicado em 2008, The Holocaust is Over: We Must Rise From Its Ashes: "A vitimização liberta-nos."

Esta obsessão com a vitimização é a razão principal porque o sionismo está a morrer entre os jovens judeus seculares da América. Não tem qualquer relação com a experiência de vida deles, ou com o que eles têm visto de Israel. Sim, Israel enfrenta ameaças do Hezbollah e do Hamas. Sim, Israel preocupa-se, compreensivelmente, com um Irão nuclear. Mas os dilemas que se enfrentam quando se tem dezenas ou centenas de armas nucleares, e quando o seu adversário, por muito desprezível que seja, possa adquirir uma, não são os dilemas do Gueto de Varsóvia. O ano de 2010 não é, como Benjamin Netanyahu alega, 1938. O drama da vitimização judaica - um drama que naturalmente sentem tantos judeus que viveram 1938, 1948 ou até 1967 - atinge muitos dos jovens judeus americanos como uma farsa.

Mas há um chamamento sionista diferente, que nunca antes foi tão desesperadamente relevante. Tem as suas raízes na Proclamação da Independência de Israel, onde se promete que o Estado judaico "será baseado nos preceitos da liberdade, justiça e paz ensinados pelos profetas hebraicos", e na carta de 1948, ao New York Times, de Albert Einstein, Hannah Arendt e outros, protestando contra a visita aos EUA do líder sionista direitista Menachem Begin, depois de milicianos do seu partido terem massacrado civis árabes na aldeia de Deir Yassin. Era um apelo a reconhecer que, num mundo em que o destino dos judeus mudou radicalmente, a melhor maneira de imortalizar a história do sofrimento dos judeus é através do uso ético do poder judaico.

Há vários meses que um grupo de estudantes israelitas se dirige, todas as sextas-feiras, para o bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, onde a família palestiniana dos Ghawis vive na rua, em frente à casa que habitou durante 35 anos e da qual foi despejada para dar lugar a colonos judeus. Embora sejam repetidamente detidos por protestarem sem permissão, e sejam insultados pela direita israelita como traidores que se odeiam a si próprios, os estudantes não deixam de aparecer, e o seu número já se eleva a milhares. E se este fosse o rosto do sionismo mostrado aos jovens judeus da América? E se os estudante nos focus groups de Luntz tivessem sabido que a sua geração enfrenta o mais monumental desafio da história judaica: salvar a democracia liberal no único Estado judaico do mundo?

O sionismo confortável tornou-se abdicação moral. Esperemos que os estudantes de Luntz, em solidariedade com os seus congéneres de Sheikh Jarrah, possam nutrir um sionismo desconfortável, um sionismo furioso com o que Israel se arrisca a ser e apaixonado com o que Israel ainda pode ser. Esperemos que eles se importem o suficiente para tentar.

Peter Beinart é professor associado de Jornalismo e Ciência Política na City University of New York, investigador sénior na New American Foundation e redactor principal de política do Daily Beast. O seu novo livro, The Icarus Syndrome: A History of American Hubris, foi publicado este mês.

Exclusivo P2/The New York Review of Books

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