"Em casa até tenho uma televisão boa, mas não posso comer a televisão!"

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Entre os novos clientes dos bancos alimentares há quem tenha montado um negócio e falido. Há quem tenha tido trabalho, comprado uma casa, carro, férias uma vez por ano. Até que perdeu o emprego e ficou com as dívidas. E há vizinhos que dão o alerta, porque estes novos clientes têm vergonha: "Há fome naquela casa." Que classe média é esta que está a precisar de recorrer ao banco alimentar?

Ele tinha um cargo de chefia numa empresa. Ela era secretária da direcção. Construíram uma vida "com uma certa qualidade", tinham amigos com os mesmos interesses e gostos num meio pequeno onde "toda a gente se conhece". Até que a empresa fechou. Da primeira vez que foi pedir ajuda ao Centro Social de Palmela - uma organização não governamental que distribui alimentos a famílias pobres - ele levou o BMW. Foi há poucos meses. Há dias, voltou ao centro, para levar para casa mais um cabaz com alimentos. Chegou a pé. E partiu a pé. Do carro nem sinal.

A história é contada por Guilherme Bettencourt, director deste centro social. Sem grandes pormenores. O casal que perdeu o BMW não se quer expor, nem quer nada com jornalistas. Está sem emprego, já é suficientemente "olhado de lado pelos amigos que sabem da situação".

"Há dias, ele esteve aqui a consultar a Internet, a ver ofertas de emprego para licenciados." Se não há dinheiro para comer, não há para navegar na Web em casa. "Não são pessoas que fiquem paradas. Devem emigrar", acredita Bettencourt.

Os alertas têm-se sucedido. Responsáveis por diversas instituições particulares de solidariedade social não se cansam de dizer que são cada vez mais as pessoas da classe média que pedem ajuda. Mas que classe média é esta afinal que vai ao banco alimentar? Que qualificações tem? Que rendimentos? Por que razão parece tão frágil?

Nas últimas semanas, o PÚBLICO contactou mais de uma dezena de instituições. Quase todas fazem saber que estes "novos clientes" estão a aumentar - só em 2010 o Programa Comunitário de Ajuda Alimentar a Carenciados abrangeu, em Portugal, 424 mil pessoas, mais 22 mil do que em 2009. E a Federação dos Bancos Alimentares Contra a Fome chega a 314 mil pessoas - mais 42 mil do que há um ano.

Pedimos a estas organizações que nos ajudassem a chegar a esta "classe média envergonhada" de que tanto se fala. Muitas famílias, como o casal do BMW, recusaram dar o seu testemunho. Mas muitas outras acederam: o operário que abriu um pequeno negócio, que comprou casa, carro e pagou os estudos superiores às filhas e está cheio de dívidas; o enfermeiro de um hospital público que em Janeiro percebeu que apesar de ter arranjado um terceiro emprego, numa clínica privada, já não conseguia pagar 6600 euros mensais em prestações a instituições de crédito, porque somados os salários que recebia não tinha mais do que 5300; o técnico que arranjava computadores e deixou de ter clientes...

Não vou ao cinema

Isabel Jonet, economista e presidente da Federação dos Bancos Alimentares Contra a Fome, defende que mais do que a profissão ou escolaridade é o nível de rendimentos que define a "classe média" de um país como Portugal. E, nesse sentido, do diplomado ao comerciante, as histórias que o PÚBLICO conta nestas páginas são um retrato da classe média com que as instituições sociais estão a ter que lidar. "São pessoas que conseguiam ter uma vida equilibrada e até ter acesso a diferentes bens de consumo (como televisão, DVD, Internet e tv cabo) para si e para os filhos." Até que deram com elas a ter de inventar desculpas para não ir com os amigos ao cinema.

"Começam a dizer: "Hoje não posso ir porque me dói a cabeça", mas não é nada disso. Não vão é admitir que não têm dinheiro."

São pessoas que "não sabem sequer preencher os papéis para uma bolsa de estudo para os filhos" porque nunca precisaram, diz Ana Martins, directora do departamento de acção social da Assistência Médica Internacional (AMI). "E que aparecem com fome, porque não têm nada no frigorífico." Por estes dias, diz, não falta quem esteja a ir aos centros da AMI informar-se, precisamente, sobre o que deve fazer para que, no próximo ano lectivo, os filhos já tenham bolsa.

Telefonam, continua Jonet, e dizem assim: ""Tenho dois filhos. Se ficar sem emprego, assim, no geral, hipoteticamente, o que é que é preciso para receber apoio alimentar?" E nós já estamos a ver que estão mesmo sem emprego. Por vezes explicam-nos: "Se vierem a minha casa vão ver: até tenho uma televisão boa, mas não posso comer a televisão!""

"Há fome naquela casa"

Meteram na cabeça - e as campanhas dos bancos e das superfícies comerciais ajudaram -, "que podiam pedir um crédito para a casa, que podiam pagar os móveis a prestações, as férias uma vez por ano, os electrodomésticos topo de gama", diz Maria Gaivão, responsável pela Casa Grande da Galiza, no Estoril. Mas uma doença, um divórcio, uma situação de desemprego - "frequentemente várias coisas ao mesmo tempo", como se um azar nunca viesse só - fá-las aparecer "enterradas em dívidas". "Muitas vezes é um vizinho que se apercebe e que nos diz: "Há fome naquela casa.""

Chegar ao ponto em que é preciso assumir que já não é possível suportar os padrões de consumo que serviam de ligação a um grupo é "muito difícil", lembra Isabel Jonet. Pedir comida ainda mais. "Estamos a falar de pessoas que usavam o abono de família para pagar a natação das crianças. Porque achavam importante manter actividades que dão algum status social."

Estamos também a falar, nalguns casos, de pessoas com cursos superiores. "Apesar de terem uma licenciatura, não encontram trabalho na sua área e trabalham em profissões não qualificadas (como call centers). Outros, ficaram desempregados."

O fenómeno não é novo, lembra Isabel Baptista, investigadora do Centro de Estudos para a Intervenção Social. "Quem trabalha nesta área começou a ouvir falar dele no final de 2008, princípio de 2009." Mas o aumento das situações de desemprego (há mais de 630 mil desempregados) e o sobreendividamento têm-no tornado mais visível. E quem está nas instituições lida com casos cada vez mais surpreendentes. Para Isabel Monteiro, da Cáritas de Setúbal, é fácil recordar alguns, recentes: a "professora que entrou em depressão" depois de um período de desemprego; o funcionário das finanças - ou melhor, os pais do funcionário das finanças que foram pedir ajuda por ele. "Porque o que está a acontecer é que muitos pais estão a gastar as poupanças de uma vida a pagar as dívidas dos filhos..."

Que classe média?

Muitos cientistas sociais não gostam do termo "classe média". "É algo que começa de novo a ser discutido na Europa, por causa do contexto da crise", diz Elisio Estanque, catedrático da Universidade de Coimbra, investigador do Centro de Estudos Sociais.

Quem fala dela no discurso público e político, tem na cabeça, sobretudo, os rendimentos. E, nesse sentido, diz Isabel Baptista, até poderia dizer-se que alguém com rendimento acima dos 700, ou mil euros, já pertence à classe média porque está acima da linha de pobreza, que é de pouco mais do que 400 euros por mês. Mas a questão é bem mais complexa.

Uma classe também se define pelo capital escolar de quem a integra, pela profissão, pelo capital social e relacional ("se eu conhecer muitas pessoas importantes, mesmo que tenha um capital escolar baixo, isso é um recurso", exemplifica Estanque). Mas, na verdade, não há uma definição clara de como é que tudo isto se conjuga para catalogar grupos de pessoas. Por isso, diferentes cientistas chegam a conclusões distintas sobre o peso da classe média no país (25 por cento, como apurou Estanque em 1997? Ou metade da população, como defenderam outros autores, poucos anos depois? Tudo depende dos critérios).

Há uns anos, no âmbito de um inquérito internacional (o International Social Survey, 2000), quando se perguntou aos portugueses a que classe achavam que pertenciam, 47,9 por cento situaram-se em três categorias: classe média-baixa, classe média-média e classe média-alta. Mas todos classe média.

Para muitos, será uma ilusão. Por estar um degrau acima dos seus pais, houve uma parte da população que "adoptou padrões de consumo que a aproximava de uma nova condição, que comprou plasmas", que se fascinou pelos centros comerciais, continua Estanque.

Não chega a ser uma classe, mas "um conjunto de situações de pessoas" pouco consistente, que se caracteriza por ser frágil e cada vez "mais instável". E o que se está a verificar é que "muitos segmentos" desse grupo "estão em processo acelerado de empobrecimento compulsivo".

Na verdade, em Portugal, a classe média "nunca chegou a ser forte no sentido de ter um real poder de compra, no sentido de ter um background capaz de resguardar a família num período de crise". E é por isso que, "perante o actual período de dificuldades, a sua resistência é menor".

Ave-maria para ajudar

No hall de entrada do Centro Social Paroquial da Póvoa de Santo Adrião há dezenas de sacos azuis e verdes dispostos em fila. Cada saco tem agrafado um papel branco com um nome: Martins, Salomé, Veiga... e uns números: 2+2 ou 1+3. O primeiro representa o número de adultos em cada família, o segundo, a seguir ao "+", o número de crianças. É em função desta conta de somar que se define o que é posto em cada saco. A distribuição é feita às segundas-feiras. No passeio, à porta, as pessoas inscritas esperam que alguém os chame, depois arrastam o saco - casais, mães e filhos, pais e filhos. O cenário não é muito diferente do que se vive em diferentes instituições do país, uma vez por semana ou duas vezes por mês.

"Ninguém se sujeita a estar aqui à porta à espera de um saco de comida se não tiver fome", admite António Silva, um subintendente da PSP aposentado, hoje responsável pelo Fundo de Apoio às Famílias Carenciadas, que funciona no centro paroquial. Em Agosto do ano passado eram apoiados 150 agregados; hoje são 203.

É numa pequena sala, ao lado do armazém onde se arrumam os alimentos, na sua maioria provenientes do Banco Alimentar Contra a Fome, que uma equipa de voluntários se reúne para analisar cada novo caso. "No início da reunião há sempre uma oração e no final uma ave-maria. Regemo-nos por valores cristãos. Mas na hora de apoiar as pessoas, não fazemos distinção", diz António Silva. Muitos chegam ali encaminhados pela própria Segurança Social.

Ajuda também se esgota

José António Pereirinha, presidente do Centro de Investigação sobre Economia Portuguesa, em Lisboa, não tem dúvidas de que uma das razões que levam uma parte da população (classe média ou não, ele prefere não usar a designação) a ressentir-se mais, perante uma situação de desemprego, são os custos com a habitação. "Instalou-se a ideia de que se ficava com maior poder económico comprando casa, o que é um erro, porque as pessoas vão pagar os juros, vão ficar agarradas a uma região e recusar empregos que poderiam aceitar noutra região, e não vão conseguir vendê-la. É uma má decisão económica."

Isabel Baptista não está optimista. O desemprego tem aumentado e com ele o número de desempregados sem subsídio - que já é de 54 por cento. "À medida que o prazo dos subsídios de desemprego se for esgotando, sem que as pessoas consigam arranjar trabalho, a situação vai agravar-se."

No terreno também se olha o futuro com apreensão: ainda há muitos pais a ajudarem os filhos, irmãos "a ajudarem-se uns aos outros", diz Ana Martins. Mas as poupanças e as reformas têm um limite. "A rede de suporte familiar vai deixando de funcionar."

No ano passado, a AMI registou o maior aumento de utentes em situação de pobreza em 17 anos de existência (24 por cento). Este ano ainda não se fizeram contas: "Mas não tenho dúvidas de que os números são superiores aos do ano passado."

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