A noite da Baixa é vítima do seu próprio sucesso

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Ao fim-de-semana, a zona dos Clérigos enche-se de jovens e o Jardim da Cordoaria é invadido pelos carros fernando veludo/nfactos

À volta dos Clérigos, a noite do Porto está mais animada do que nunca. Mas nesta Baixa que a cidade redescobriu e que transborda com a vitalidade dos que a procuram, há problemas que, se não forem debelados, podem acabar com o estado de graça. Por Aníbal Rodrigues

a A animação nocturna no eixo Cedofeita-Praça de Parada Leitão-Clérigos, na Baixa do Porto, ganhou uma dimensão que superou as mais ambiciosas expectativas. Perante tão grande concentração de pessoas, sobretudo ao fim-de-semana, a animação nesta zona é muitas vezes apontada pela câmara como uma expressão da revitalização do Porto. Mas a medalha tem um reverso, menos atraente: ruído, estacionamento selvagem, incumprimento de regras, lixo.

É um conjunto de problemas que preocupa António Fonseca, presidente da Associação de Bares da Zona Histórica do Porto (ABZHP). "Temos de ter cuidado para que o encanto não se transforme em desencanto", avisa. Recorda o caso da Ribeira, que também já foi muito procurada e que hoje está quase deserta. Para que esse desencanto não se repita naquela que é agora a zona da moda, António Fonseca vai reunir-se, nesta semana, com o vereador do Urbanismo da Câmara do Porto, Gonçalo Gonçalves, e tenciona aproveitar um encontro marcado para estes dias com o presidente da Junta de Freguesia de Vitória, António Oliveira, para tratar destes assuntos.

Durante a conversa com António Oliveira, o líder da ABZHP há-de abordar a questão do ruído, que afecta os moradores da área. Aliás, António Fonseca anuncia que "a associação está disponível" para resolver os incómodos que uma moradora da Travessa de Cedofeita foi recentemente comunicar ao executivo da Câmara do Porto.

O ruído também é o principal tormento de Ana Caetano, proprietária da Pensão Cristal, na Rua da Galeria de Paris. Conta que se viu forçada a gastar "mais de 10 mil euros em janelas duplas e vidros duplos". E calcula que sofreu "uma quebra de 25 por cento" na procura, sensivelmente a partir de Junho de 2008, quando a Galeria de Paris se tornou numa das ruas mais badaladas da noite portuense. "Há clientes com reserva que chegam ao princípio da rua e se vão embora. E temos tido clientes com reserva para quatro ou cinco noites que se vão embora depois da primeira, zangados", conta. A esmagadora maioria dos seus hóspedes é estrangeira. "Houve clientes que escreveram para o consulado e outros foram fazer queixa à polícia. O meu livro de reclamações foi estreado com uma queixa devido ao ruído." A imagem do estabelecimento de Ana Caetano na Internet também sai prejudicada devido às queixas de barulho inscritas por quem passou pela pensão.

Na Rua da Galeria de Paris e na paralela Cândido dos Reis não existem, de facto, muitos moradores. Entre estes há estudantes, a quem até agradará a movida, e alguns idosos, pouco dispostos a reclamar. Não é o caso de Conceição Campos, moradora num 5.º andar da Rua Cândido dos Reis. "Cheguei a ir a um bar, de pijama, e fiquei à espera que a polícia chegasse. A polícia veio, eles puseram a música mais baixo, mas depois foi embora e eles voltaram a pôr o som ainda mais alto", queixa-se. Conceição Campos está encurralada. Do lado da Cândido dos Reis tem a sala, mas os quartos, na traseira do apartamento, dão para a Rua da Galeria de Paris. "A minha cama treme e não é só o problema do barulho, porque o fumo que me chega ao quarto também não deixa dormir", narra, num misto de desespero e indignação. As dores de cabeça durante a jornada de trabalho não são fáceis de superar, mas o que mais magoa Conceição Campos é o efeito do ruído sobre a filha de 10 anos. "Já fui chamada à escola, porque ela adormecia. Na 3.ª classe houve uma baixa de rendimento, porque ela adormecia." Para além das repetidas queixas na polícia, Conceição Campos falou com o presidente da Câmara do Porto, Rui Rio, quando com ele se cruzou na última campanha autárquica. Diz que Rio a tratou bem, mas o problema não desapareceu. O melhor que conseguiu foi ter a ABZHP a instalar-lhe gratuitamente janelas duplas com vidros duplos. Neste momento, o apartamento de Conceição Campos está em obras, pagas pelo bolso da moradora. Uma das alterações que pretende introduzir passa pela instalação de isolamento acústico no seu quarto e no da filha.

Pouco passava da 1h00 de ontem e o Jardim da Cordoaria já estava tomado por automóveis nos diversos pontos a que os condutores conseguem ter acesso. Muitos estão estacionados em cima da relva. Nos parques de estacionamentos subterrâneos da zona há fila. Entra mais um pequeno carro no Jardim da Cordoaria, com uma nuvem de poeira atrás. Saem quatro rapazes. Dois sentam-se nas costas de um banco de jardim e os outros dois nas pontas em baixo. Um deles começa a enrolar um charro, enquanto outros dois misturam uísque com Coca-Cola. Vêem-se inúmeros jovens que trazem bebidas alcoólicas em garrafas de plástico de litro e meio que já foram de água. Não se trata ainda de um botellón (encontro de um grande número de pessoas em locais públicos para consumir bebidas alcoólicas que trazem consigo), como os que se vêem em Espanha, mas começa a aproximar-se disso.

Como na Queima das Fitas

A multidão é tão densa que se torna difícil circular a pé entre as esplanadas da Praça de Parada Leitão e os respectivos bares. O ambiente é de noite de Queima das Fitas fora de época. Há polícia a pé e uma carrinha posto móvel da PSP. A parede lateral do edifício da reitoria da Universidade do Porto que fica virada para as esplanadas serve de urinol e, à volta, é preciso cuidado, para evitar o vomitado no chão. Aqui e ali surgem jovens tão ébrios que nem conseguem andar pelos próprios meios. Outros estendem-se no chão.

De volta às ruas da Galeria de Paris e Cândido dos Reis, encontram-se vendedoras ambulantes de cachorros quentes e outras mulheres que, nas esquinas, vendem cerveja de garrafa em grandes alguidares com blocos de gelo. A maioria das pessoas consome bebidas em copos de plástico, mas também há muitos que transportam garrafas de vidro, desde as mais pequenas, de cerveja, às maiores, de vinho, champanhe ou de litro de cerveja.

Este é outro problema que preocupa António Fonseca. Vai propor ao vereador do Ambiente da Câmara do Porto, Álvaro Castello-Branco, a instalação de "minividrões" na área. Além de o vidro partido se transformar em lixo, o responsável pela ABDZHP teme que, em caso de zaragata, as garrafas "sejam usadas como arma", ou que alguém caia e se corte. "No último sábado [25 de Setembro], andaram a vandalizar viaturas de sábado para domingo, junto da Rua da Fábrica, por volta das 7h, 8h", recorda.

Na reunião com Gonçalo Gonçalves, o presidente da ABZHP pretende começar por introduzir a questão que descreve como o clima "de grande instabilidade entre os empresários" da zona dos Clérigos. E explica porquê. "Por oportunismo - aproveitando-se do movimento criado pelos bares -, os cafés, que fechavam às 20h00, pediram alargamento de horário e hoje têm licença mais prolongada do que os próprios bares. Há cafés que fecham às 3h ou 4h e bares a fechar às 2h. Isto é um tratamento desigual", protesta.

Defende que é preciso diferenciar os dois tipos de espaços, até porque, refere, é patente uma "grande indignação" entre os proprietários de bares. "A solução que propomos é fazer-se uma tipificação de estabelecimentos." "Não estamos a dizer que ninguém pode trabalhar", ressalva. E conclui: "Ou o café tem um horário mais reduzido, ou o bar fica com horário mais alargado."

No entanto, apesar de liderar uma associação de bares, António Fonseca também critica este tipo de estabelecimentos. "Há bares a fazer o seguinte: fecham as portas e vendem por uma janela para o exterior. Também queremos pôr alguma ordem nisto", vinca. O resultado é mais vidro e plásticos nas ruas e mais pessoas a satisfazerem aí as necessidades fisiológicas. "É o vandalismo na via pública", diz António Fonseca. E volta a lembrar: "Não queremos que o encanto comece a desencantar."

Esplanadas da Ribeira

A ABZHP também está atenta à situação da Ribeira do Porto. Encomendou um estudo a um gabinete de arquitectura que visa melhorar o funcionamento das esplanadas instaladas junto ao Douro. "Será uma solução integrada, mais cómoda para a autoridade, comerciantes e moradores e para evitar que estes, por vezes, para entrarem em casa, tenham de empurrar as mesas." Segundo António Fonseca, a futura proposta da associação irá contemplar "o corte do trânsito em duas ou três ruas" da zona da Ribeira. Após este estudo, o líder da ABZHP promete também apresentar uma solução análoga para as esplanadas da zona dos Clérigos.

A par destas duas propostas, António Fonseca defende que as verbas pagas pelos empresários à Câmara do Porto pelo licenciamento de esplanadas passem a ser entregues às respectivas juntas de freguesia. E reserva para mais tarde um conjunto de propostas para minorar o problema do estacionamento nocturno selvagem no Jardim da Cordoaria.

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