Chamavam-lhe terrorista

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Brötzmann actuará em Lisboa com o seu quarteto Hairy Bones SCOTT GROLLER

No início da sua carreira, o saxofonista Peter Brötzmann foi considerado subversivo. Hoje, aos 70 anos, é um dos expoentes máximos do jazz de vanguarda mundial, continuando a inspirar toda uma nova geração de ouvintes e músicos. Na próxima semana, vamos tê-lo connosco no Jazz em Agosto. Rodrigo Amado

Em Junho deste ano, o saxofonista e improvisador alemão Peter Brötzmann recebeu um "Lifetime Achievement Award" do Vision Festival de Nova Iorque, o mais importante evento norte-americano dedicado ao jazz de vanguarda. Apanhado de surpresa, o saxofonista viu nessa distinção o reconhecimento de uma longa relação musical; "Penso que sou o primeiro europeu e um dos raríssimos músicos brancos a receber este título. A minha ligação aos músicos norte-americanos é muito forte e começou bastante cedo na minha carreira. Tocar, ainda novo, com alguns desses músicos, como Steve Lacy ou Don Cherry, foi muito importante para mim. Conheci o Andrew Cirylle, com quem vim a tocar mais tarde, quando ele era ainda muito novo e estava em digressão com o Cecil Taylor na Europa. Cresci a ouvir Duke Ellington, Sidney Bechet, Louis Armstrong, Coleman Hawkins, Lester Young e Bud Powell. A minha visão da música está muito ligada à tradição norte-americana do jazz."

Apesar de europeu, Brötzmann assume uma ligação à ancestral tradição dos blues, que considera universal: "Não devemos esquecer que esta música tem as suas raízes mais profundas nos EUA. Por muito que os europeus possam contribuir para ela, tentando mudar por vezes a sua direcção, para mim, que sou bastante antiquado, as verdadeiras origens mantêm-se nos blues. Eles são a essência do ser humano, um sentimento comum a todas as culturas. Todas as culturas têm os seus blues, apesar de estes soarem totalmente diferentes."

Aos 70 anos, Brötzmann chega a Portugal integrado na comitiva da edição deste ano do festival Jazz em Agosto: actua na próxima sexta-feira, com o seu quarteto Hairy Bones - Toshinori Kondo, Massimo Pupillo e Paal Nilssen-Love - no Anfiteatro Ao Ar Livre da Gulbenkian. Parte de um movimento a que poderíamos dar o nome de "fire music", o saxofonista pratica uma música descendente directa do free-jazz: um som livre, extremamente físico, que conquista a atenção de um público jovem que raramente ouve jazz, estabelecendo pontos de contacto com o seu universo através da energia pura e da espontaneidade destilada pelos músicos. "Sim. Aonde quer que vá, recebo uma reacção forte por parte dos mais novos... seja na Polónia, nos Estados Unidos, em Portugal, na Ucrânia ou na Russia. Mas aquilo a que chamamos free-jazz foi algo que aconteceu num período muito específico do século passado, entre 1960 e 1975, ligado a uma série de acontecimentos políticos que ocorreram na Europa e nos EUA. A Guerra da Coreia tinha terminado e o conflito no Vietname estava a começar. Toda a nossa geração se perguntava: como é possível isto acontecer?. Como não tinhamos respostas, tinhamos de procurá-las em nós próprios, na música, nas artes, nas viagens, de todas as formas possíveis. Quando conheci os meus amigos holandeses e ingleses - Willem Breuker, Han Bennink, Paul Rutherford ou Evan Parker -, todos partilhávamos o mesmo sentimento, todos estávamos a construir algo. Todos tentávamos, de forma ingénua, mudar o mundo, torná-lo num lugar melhor", recorda.

Tentamos perceber se as coisas seriam mais fáceis na altura: "Não tinhamos muitos amigos [risos]... Os jovens, mesmo os de esquerda, estavam mais interessados nos movimentos políticos americanos ligados ao rock ou à folk. A nossa música era considerada demasiado elitista. A mensagem não era totalmente directa, obrigava a que se ouvisse com atenção, exigia trabalho, não era como o Bob Dylan a cantar uma canção. Era como se tocássemos alguns dos nossos segredos, que depois as pessoas tinham de descodificar. As pessoas chamavam-nos terroristas e comunistas, e a música era algo pelo qual tinhamos mesmo de lutar."

Apesar do burburinho generalizado que existe à volta da possibilidade de uma nova revolução no jazz, idêntica às que aconteceram com o be-bop e o free jazz, Brötzmann não se sente "muito optimista quanto ao futuro". "Actualmente, os músicos vêm na sua quase totalidade das escolas e, quer seja na Alemanha ou nos Estados Unidos, todos aprendem as mesmas coisas. Todos aprendem as ferramentas para uma profissão, como se fossem vender algo. Fico espantado quando alguns jornalistas ainda me chamam músico de vanguarda. Tenho 70 anos. A vanguarda deveria ser jovem", lamenta. E as excepções? Uma pessoa não é o suficiente para gerar uma revolução? "Gostava que isso fosse verdade, mas uma pessoa apenas não é suficiente para fazer uma revolução. Hoje as coisas são muito diferentes mas, de certa forma, tudo é mais difícil. Em termos humanos, quero dizer. Se observarmos a direcção seguida pelas sociedades ocidentais, a desagregação de todos os sistemas, a dificuldade que os jovens têm em conseguir trabalho... estão todos demasiado ocupados a conseguir sobreviver, a conseguir que as suas pequenas vidas sejam funcionais. A solidariedade que existia nos anos 60 já não existe. Já ninguém tem tempo para pensar sobre isso. Para mim, teria de ser essa solidariedade a formar a base de uma nova revolução, de uma nova forma de encarar a vida", diz.

Corremos o risco de dormir a ouvir o jazz actual, insiste: "Em termos musicais, quase tudo o que é tocado actualmente, mesmo pelos mais jovens, é "mainstream". Com alguma sorte, continuarão a surgir músicos que, individualmente, conseguirão mudar um pouco as coisas, abrindo novas perspectivas musicais. Mas são apenas pequenos movimentos. As coisas estão bastante mornas, neste momento. Espero que em breve as mudanças comecem a acontecer com maior força, maior agressividade. Caso contrário iremos todos adormecer."

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