O Inverno do nosso descontentamento (I)

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Nada na realidade que vivemos permite as tiradas propagandísticas do PM sobre "olhar de frente o futuro com esperança"

Começou um ano que, quase todos no-lo dizem, pode vir a revelar-se terrível nas nossas vidas. É o 4.º ano daquela que poderá ficar para a História como a Grande Crise de 2008 e que partilha muitos aspetos com a Grande Depressão iniciada em 1929. No caso específico de Portugal, a crise não remonta há apenas 4 anos atrás: ela tem dez anos de recessão ou estagnação económica que tornou a primeira década do novo milénio numa década perdida na história portuguesa.

No momento em que nos pedem aceitação resignada e sacrifício, em que Passos Coelho, na sua mensagem de Natal, nos descreve como sendo "corajosos" e que o nosso "esforço vai valer a pena", o que vale mesmo a pena é reapropriarmo-nos da realidade e perceber o que nos está a acontecer. O que é que, em tão pouco tempo, nos está a fazer regredir décadas e décadas no nosso percurso coletivo. A perder direitos, bem-estar, vidas. Partamos da análise daquilo a que tem sido chamada a crise da economia europeia, sem sequer nos perguntarmos sobre as suas origens, sobre quem foi/é responsável pela emergência desta economia de casino favorecida pela financeirização de todos os setores económicos. O papel desempenhado em 1929 pela hipercentralidade do capitalismo norte-americano, projetando em todo o mundo consequências trágicas da crise financeira dos EUA, é hoje o papel da hiperglobalização do capital, resultado da liberalização desenfreada dos mercados através das políticas da OMC, do FMI, do Banco Mundial ou do próprio BCE. Os mesmos passos da catástrofe dos anos 1929-36 estão presentes, um por um, nos nossos dias:

1. A crise financeira produz falências em série e uma estratégia laboral, partilhada por patrões e Estado, no sentido de um generalizado embaretecimento dos custos do trabalho, que resulta tanto dos cortes nos salários e em todos os subsídios sociais, como dos despedimentos, do aumento dos horários e dos dias de trabalho. Por outras palavras, o que patrões e Estado procuram é fazer com que sejam os trabalhadores a pagar as perdas do capital.

2. O medo, depois de ter passado a dominar a vida de desempregados, jovens à procura do primeiro emprego e idosos que dependem de pensões muito baixas, apodera-se da enorme maioria dos trabalhadores ativos, por sua vez afogados em dívidas à banca. No plano estritamente económico, desencadeia-se um comportamento generalizado de renúncia ao consumo, frequentemente dos bens mais básicos. É fácil perceber as consequências: a produção nacional tem cada vez menos mercado interno e, resignando-se à crise dentro de portas, procura-se fazer dinheiro fora de portas (em tudo coerente com o "emigrem!" que Passos Coelho lançou aos jovens deste país...). O problema está em que, comportando-se todos os mercados europeus da mesma forma, as trocas comerciais dentro do espaço europeu (e elas são largamente maioritárias no conjunto do comércio externo destes países) sofrem uma redução grave, o que ajuda a explicar as dificuldades do setor exportador, no qual todos os governos procuram, em vão, a varinha mágica da recuperação económica.

3. À contração radical do poder de compra e do consumo acrescenta-se o colapso do investimento, isto é, daquilo sem o qual não se promove a saída para tudo isto: não investem os privados porque não dispõem de crédito na banca, ou porque, dispondo de capital, pura e simplesmente o lançam na única das aventuras que lhes parece interessante, a da especulação bolsista e do branqueamento em off-shores; não investe o Estado, tomado por neoliberais convencidos da maldade intrínseca da intervenção deste na economia e contrariando todas as lições de 1929, a de que deve contrariar a tendência geral para o desinvestimento, estimulando a retoma económica.

4. O Estado não só não investe, como faz pior: desinveste, vendendo ao desbarato empresas que prestam serviços públicos, os quais, entrando na esfera do mercado puro, transformam a satisfação das necessidades básicas (saúde, educação, transportes, energia, comunicações...) em despesas incomportáveis para orçamentos familiares já de si severamente reduzidos. As consequências na vida da enorme maioria das pessoas são evidentes: ao medo de perder um emprego, ao desespero de não encontrar um novo, à humilhação de se ver descrito como precocemente velho, culturalmente inadequado, laboralmente inútil, a degradação dos direitos sociais vem acrescentar uma profunda ansiedade relativamente ao futuro, uma descrença na viabilidade dos sistemas de proteção social, uma desconfiança generalizada no Estado, nos políticos (como se estes se confundissem com aquele), na democracia, em todos quantos nos rodeiam... É o terrorismo social de que falam, com razão, Carvalho da Silva e Jerónimo de Sousa.

5. A vacuidade das declarações de boas intenções dos dirigentes das grandes economias mundiais, prometendo coordenação de políticas de superação da crise, e a retórica social-caritativa presente em discursos como o último de Cavaco Silva ("apoio social aos mais vulneráveis e desprotegidos e às vítimas da crise") são em tudo semelhantes à inoperância dos governos e na gestão inicial da crise de 1929, que, ao 4.º ano de crise, justamente, abriu caminho a personagens como Hitler ou deu asas ao expansionismo de Mussolini e do Império japonês.

Esta sucessão de etapas não augura senão a catástrofe social. Nada na realidade que vivemos permite as tiradas propagandísticas do PM sobre as "razões para olhar de frente o futuro com esperança". É urgente sairmos da resignação, até mesmo para nos reconciliarmos com a vida. Perceber que há outras saídas para uma crise que não fomos nós, a enorme maioria dos europeus, a provocar. É o que procurarei propor na minha próxima crónica. Professor universitário. A pedido do autor, este texto segue as normas do acordo ortográfico.

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