A prioridade das prioridades

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É difícil escrever sobre a "geração" dos 30-35 anos, quando se chegou, ou se está a chegar, aos 70. Mas confesso que a canção dos Deolinda me intrigou como intrigou José Manuel Fernandes (PUB., 4/2). Para quem ainda não saiba, os Deolinda falam da falta de emprego, ou pelo menos de um emprego decente, e de "um mundo tão parvo, onde para ser escravo é preciso estudar". José Manuel Fernandes acha que os mais velhos espoliaram os mais novos desta "geração sem remuneração". Fora que analiticamente o conceito de "geração" me parece turvo, não acredito na tese e fiquei muito admirado por na conversa toda não aparecer a palavra ensino uma única vez, quando os Deolinda se lamentam precisamente da inutilidade ou do contra-senso de "estudar".

Claro que a gente de 30-35 anos não arranja emprego e claro também que, em parte, a "corrida suicida ao consumo" desencadeada pelo "euro" é responsável por isso. Mas talvez seja bom notar que já havia sinais da "geração sem remuneração" por volta de 1990 e que essa "geração", como representada por exemplo, pelos Deolinda, saiu da Universidade - o vocabulário que usa e as queixas que faz não enganam ninguém. Não se trata aqui daqueles que se perderam pelo caminho ou que não passaram do 12.º ano. De quem se trata é das dezenas de milhares de licenciados, de "mestrados" e até doutorados sem trabalho, que vêem hoje correr a vida, no mais puro desespero e na mais patética impotência. De quem é a culpa deste desastre? Do défice e da dívida? Da estagnação económica? Duvido.

Desde Cavaco (Roberto Carneiro) a Guterres (Marçal Grilo) que o ensino foi, como se dizia, "a prioridades das prioridades". O Governo e o Presidente da República não se calavam. O "capital humano" era o nosso grande capital e bastava "investir na escola" para desenvolver Portugal e o tornar feliz. E, de facto, Roberto Carneiro e Marçal Grilo inundaram com zelo o que eles, no seu calão, costumavam chamar "o sistema de ensino". Deixemos de parte a questão da qualidade, que põe outros problemas. Basta observar que nenhum destes génios se preocupou com uma pergunta básica: existia ou não existia mercado para os "produtos" do "sistema de ensino" e nomeadamente da Universidade? Não existia, e nem o fanático mais feroz podia imaginar que viesse a existir tão cedo. Os Deolinda são a resposta, e uma boa resposta, à "prioridade das prioridades".

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