João Rui Guerra da Mata. Põe a mão no fogo

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O Que Arde Cura. "Pensei que seria interessante a relação entre uma coisa que está a arder e uma relação que está a terminar. E que a destruição pode ser uma reabilitação - do Chiado, da vida da personagem" JOÃO PEDRO RODRIGUES

Tem feito os objectos falarem sobre as personagens nos filmes de João Pedro Rodrigues. Agora os objectos e o filme falam dele. Por Vasco Câmara

O dia, em 1997, em que João Rui Guerra da Mata se esqueceu de ligar a câmara anunciou, momento agora visto daqui, um mundo de possibilidades. Preparava-se a rodagem de Parabéns, de João Pedro Rodrigues, Guerra da Mata dirigia os castings como ele gosta, "escaranfunchando muito, para as pessoas saírem do "modo casting" e serem elas próprias", mas esqueceu-se... Aflito quando percebeu o erro, depois de toda a gente sair colocou-se ele próprio em frente à câmara a relatar o que tinha acabado de não ser registado. Bendito lapso. Foi assim que fixou de forma muito material a sua intromissão no cinema de João Pedro Rodrigues, realizador que descobria, naquele casting que tentava safar-se do erro, o corpo para o intérprete da sua curta: as hesitações, a maneira de estar, o falar convenceram João Pedro, que demorou algum tempo a convencer João Rui a ser Francisco, o trintão que acordava no dia dos anos com a voz da namorada nas mensagens a cantar-lhe parabéns e um adolescente ao lado. Para além disso, foi João Rui que descobriu aquela cortina de casa de banho com o mapa do mundo, naquele que foi também o seu primeiro trabalho de escolha de objectos para os filmes do realizador, objectos sempre vibrantes a falarem sobre as personagens.

Verificar o que aconteceu a um trabalho de colaboração entre os dois, desde 1997 até hoje, foi uma das propostas para este encontro. Proposta que levava uma mal amanhada "tese" no bolso: a de que primeiro com o seu trabalho de direcção artística nos filmes de Rodrigues e depois com a co-realização de alguns títulos, Guerra da Mata foi escrevendo e inscrevendo a sua "biografia". Tem-se tratado de uma adequação entre uma sensibilidade mais austera, a de Rodrigues, e uma voz mais histriónica, a de Guerra da Mata. É uma "tese" à procura de possibilidades de caução e consolidação e em cima da mesa encontrava-se uma à espera de ser apanhada: O Que Arde Cura, curta-metragem com que Guerra da Mata se autonomiza de uma colaboração de anos. Interpreta este filme (exibido no Curtas terça-feira, 10, 15h) João Pedro Rodrigues, a quem O Que Arde Cura é dedicado. Quando João Rui confidencia que a personagem se chama - o nome apenas figura no argumento - Francisco, não deixamos de confirmar a liberdade poética que se liberta das geometrias...

"Eu estava insatisfeito com os castings, não estava a encontrar o corpo e a voz, estava a ser difícil criar os moods das intensidades das emoções, os picos de irritação, de tristeza, de amor, e um dia olhei para o João Pedro e perguntei-lhe: "e se fosses tu?". Inicialmente, a personagem era mais nova. Precisei de reforçar no argumento [com a escolha do actor] o cansaço de uma pessoa de 40 anos. Mas os sentimentos são universais." Foi nesse momento que se evidenciou "o jogo com Parabéns" neste huis-clos ardente de artifício(s) em que o final de uma relação chega a João Pedro Rodrigues/Francisco através do telefone, no dia 25 de Agosto de 1988, dia em que o Chiado, em Lisboa, ardeu.

"É a nossa casa mais uma vez [a casa de João Pedro e João Rui servia de cenário também a Parabéns]. E é como se Francisco fosse a mesma personagem [de Parabéns] numa outra fase da sua vida, embora Parabéns se passe nos anos 90 e O Que Arde Cura nos anos 80 e Francisco seja mais velho neste filme do que naquele. Dedico ao João Pedro, tal como ele me dedicou a mim [a longa] O Fantasma, mas este filme não é um tributo ao João Pedro nem à nossa relação", acautela João Rui. É preciso ler "biografia" de outra forma - e sim, é de uma outra forma que a lemos a seguir.

A nossa história

Pondo, então, a mão no fogo. "Gosto muito de espaços fechados, de salas, de cozinhas, de quartos, de reciar ambientes que se sintam que são vividos pelas personagens". Diz isto mas distancia-se da ideia de "decoração", porque não se trata de fazer ambiente mas de fazer os objectos falarem sobre as personagens e, se for caso disso, criarem tensão nos actores; por isso tem dificuldades com o cinema de Wonk Kar-wai, que o faz perder mais tempo, diz, a cobiçar a gravata do actor do que a mergulhar no sentimento da personagem; e por isso convoca os primeiros Almodóvar e o sentido que neles fazia "o espalhafato, o excesso, porque aquelas pessoas viviam naquelas casas e vestiam-se de acordo com a decoração daquelas casas." Recorda que "construiu" a casa inteira da personagem de Maria Bakker/Gonçalo Ferreira de Almeida em Morrer como um Homem (João Pedro Rodrigues, 2009) para os actores e a equipa "perceberem melhor a personagem" antes de destruir tudo para se filmar.

E então, O Que Arde Cura: por que não ir para estúdio e fazer algo concentracionário, uma coisa artificiosa em que as paredes se aproximam e afastam, em que as emoções da personagem estão projectadas também pelas paredes?" O Que Arde Cura é, sim, um objecto artificioso. Até dá para perguntar, perante a deflagração sucessiva de acontecimentos em redor de um corpo, se às tantas não é o mecanismo deste peep-show, em que o tronco nu de Rodrigues é como "um pedaço de carne nos quadros de Bacon", que começa a justificar o telefonema em vez de ser o telefonema a puxar pelas "explosões" - como se fosse necessário iludir a teatralidade. Mas há uma coisa muito emotiva aqui: a forma como Guerra da Mata constrói a memória dos objectos, de uma cidade, Lisboa, e de um tempo, os anos 80 dos Clash - o cartaz do concerto em Cascais em 1981 - ou dos Spandau Ballet e dos outros "novos-românticos", do Frágil e etc... Ou seja, neste filme está o espectador, que pode ter vivido essa Lisboa ou que a pode ter construído na memória. "Queria que o Chiado existisse na história. Queria introduzir coisas que aconteceram, de que me lembro por ter presenciado ou por ter visto na TV. Achei que era interessante as pessoas perceberem, agora que toda a gente sobe e desce o Chiado, como era subir e descer o Chiado. Sem revivalismos: as coisas que as pessoas fazem. Ou seja, a nossa história - houve quem visse o filme e só então se lembrasse que tinha estado "lá". Pensei que seria interessante isso e a relação entre uma coisa que está a arder e uma relação que está a terminar. E que a destruição pode ser uma reabilitação - do Chiado, da vida da personagem." (Há na memória interior do filme uma BD, que Guerra da Mata e o produtor João Figueiras conceberam, logo a seguir ao incêndio, "muito influenciada por uma estética francesa da altura e pela estética da movida espanhola, e sobre uma relação de ruptura com o incêndio em fundo").

Esta foi a Lisboa que João Rui viveu depois de uma temporada em Macau e depois de um encontro com o punk londrino. Não foi ao concerto dos Sex Pistols no 100 Club de Londres, em 1976 (está no elenco da memória da personagem de O Que Arde Cura) porque "soube que eles escarravam no público" e ele estava "preparado para tudo, até para o mosh, menos para aquilo" - a possibilidade de uma escarreta imobilizou-o. (E porque falamos de música, note-se como depois desestrutura o "filme de época" e o torna capaz de "universalidade", dando ao espectador, na única canção que se ouve na banda sonora de O Que Arde Cura, James Blake, rapaz de hoje.)

Progredindo pelos caminhos da memória de João Rui que se vem intrometendo na filmografia de João Pedro, teremos necessariamente de falar sobre a Ásia, sobre Macau, mencionando a efervescência pop de China China, de 2007 (argumento de João Rui, co-realizado com João Pedro), Alvorada Vermelha, de 2011 (co-argumento e co-realização, aquele sapato no início de um documentário a homenagear a Jane Russell do Macau de Sternberg). E teremos de esperar para ver o próximo, A Última Vez que vi Macau (2012), obra a dois. Do que ele fala sobre o filme, balançando entre a ficção e o documentário, não se consegue imaginar sequer o resultado. Certo é que começou por ser o itinerário de uma viagem à memória de João Rui, ao que foram as suas ruas e os seus cheiros entre 1971 e 1975, a época "mais feliz" a sua vida. Foi o período em que viveu com a família (o pai era militar) na ex-colónia portuguesa e se aventurava para além da bolha protectora, perdendo-se em becos e em autocarros, apanhando gafanhotos e descobrindo "cheiros maravilhosos e repugnantes", falando cantonês em casa, vendo filmes revolucionários chineses e de kung fu sem legendas. E tudo isto quando "ainda se comia cão nos restaurantes."

João Rui Guerra da Mata tem pousado na mesa, durante a conversa, England"s Dreaming, de John Savage, o ultimate book sobre o punk. O objecto fala por ele, a sua biografia está nesta mesa - se dúvidas houvesse sobre isso.

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