A "normalização" da mentira

Foto

Depois do esclarecimento que aqui publiquei, parecera-me nada mais ter a dizer sobre a campanha de calúnia dirigida contra mim e contra a História de Portugal de que sou co-autor com Bernardo de Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro. No entanto, a invasão de campo protagonizada por Fernando Rosas, em socorro do colunista que aqui conduz a dita campanha, força-me a pedir a palavra outra vez.

O texto de Fernando Rosas é a clássica manobra de diversão. Fernando Rosas intervém numa "polémica", como lhe chama, mas abstém-se de fazer quaisquer considerações sobre o assunto dessa "polémica". Cria uma cortina de fumo, para cobrir a fuga de alguém em apuros. É um acto generoso. Mas o altruísmo não o deve poupar a alguns comentários.

Sobre a questão principal - o uso da falsificação e da mentira no ataque que me foi dirigido - Fernando Rosas não diz uma palavra. Alude apenas ao "estilo assertivo" do caluniador. Fernando Rosas, que gosta tanto de acusar os outros de "normalizar" e de "banalizar", não parece consciente do risco que ele próprio corre de realmente normalizar e banalizar a manipulação de citações, a deturpação de factos, o processo de intenções, as acusações absurdas como meios adequados de crítica. Para Fernando Rosas, tachar alguém de fascista "cínico" e "sinistro" não é "pessoalmente insultuoso". Para mim, é.

Na substância, Fernando Rosas chuta para o lado e fala da I República. Mas acontece que eu fui acusado de negar a natureza ditatorial do Estado Novo. É isso que está em causa. Acha Fernando Rosas que isso é verdade. Admite Fernando Rosas que eu descrevi o Estado Novo como uma "ditadura com traços fascistas" (vem na p. 745 da edição da Esfera dos Livros e na p. 83 do vol. 8 da edição do Expresso)? Fernando Rosas não pode entrar numa discussão e evitar pronunciar-se sobre o que está a ser discutido. Acusa-me de ter erguido a questão até um plano "moral". Não é verdade: eu continuo ao nível dos factos. É ou não é verdade que neguei a natureza ditatorial do Estado Novo? É ou não é verdade que nunca falo da PIDE ou da censura?

Eu quero acreditar que Fernando Rosas sabe que a resposta a essas perguntas é não. Por isso, tentando corrigir os tiros trapalhões da guarda avançada desta campanha, foge para trás, para a I República. Em vez de dizer que eu neguei a ditadura de Salazar, prefere alegar ter eu dito que a I República era muito mais repressiva, de forma a "banalizar" o Estado Novo. Fernando Rosas deturpa. Na História de Portugal, eu refiro, porque é um facto, apurado aliás por outro historiador (devidamente citado nas notas), que terá havido mais vítimas mortais de repressão de rua durante as várias situações políticas, muito diversas entre si, a que nós chamamos impropriamente "I República", do que durante o Estado Novo. A razão para isso, como é óbvio, está no facto de o Estado Novo ser muito mais repressivo e, portanto, mais preventivo (ao proibir manifestações e greves, estava desde logo a eximir-se aos confrontos de que resultavam mortes na rua...). Percebeu agora, Fernando Rosas?

Muitos dos governos entre 1910 e 1926 foram violentos ou permitiram violências, não garantiram os direitos dos cidadãos, e em geral restringiram a participação política da população. Expliquei essa situação pelo modo como uma facção do Partido Republicano, animada por uma cultura sectária e em conflito com os outros republicanos, tentou tomar o poder e mantê-lo nos anos a seguir a 1910. Pelo seu lado, Fernando Rosas, que me acusa de dizer mal da república, diz ele próprio, no artigo de ontem, que a "I República" foi "não-democrática", "perseguidora", etc. E eu pergunto: porque é que Fernando Rosas pode dizer isso, sem correr o risco de, por contraste, "branquear" o Estado Novo?

Este é ponto fundamental e encerra a chave de toda a questão: no fundo, não está em causa o que eu digo. O que está em causa é o facto de ser eu a dizê-lo. Rosas diz que a I República foi "não-democrática" e "perseguidora"? Tudo bem. Mas imaginem que era eu a dizê-lo. Ah, o escândalo! O que Fernando Rosas sugere, de facto, é que há coisas que só alguém com as credenciais partidárias de Fernando Rosas pode dizer sem que isso justifique de imediato uma suspeita política. É isso que eu rejeito: a História não tem donos, Fernando Rosas.

Fernando Rosas sabe do que falo. Ele não foi sempre juiz. Já foi réu. Também Fernando Rosas, em tempos, foi acusado de "branquear" o salazarismo. Por quem? Por Álvaro Cunhal, em 1999 (ver A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril, Edições Avante, pp. 38-45). Na caça às bruxas, por mais ortodoxo que alguém seja, há sempre alguém ainda mais ortodoxo. Fernando Rosas continua a ter paciência para essa velha rábula. Eu, não.

Finalmente, Fernando Rosas, permita-me que lhe peça apenas um favor: quando me criticar, tente criticar-me por causa daquilo que eu escrevi e penso, não por causa daquilo que lhe dava jeito que eu escrevesse ou pensasse.

P.S.: Estive sempre disponível, com os meus co-autores, para participar em debates sobre o nosso livro, como fizemos em Maio de 2010 na Biblioteca Nacional. Mas não reagirei a mais calúnias ou ataques oportunistas no quadro deste caso de difamação.

Sugerir correcção