Yangst

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Ocidentalizado - Nomes cimeiros do "Novo Cinema Taiwanês", Hou Hsiao-hsien e Edward Yang cruzaram percursos mas as diferenças são notórias. Ambos nascidos em famílias "continentais" que foram para Taiwan durante a guerra civil entre nacionalistas e comunistas, Hou taiwanizou-se e Yang "ocidentalizou-se". Liao Ching-sung, que montou The Terrorizers, diz: "O seu pensamento é em estilo americano e racional. O seu bloco de notas estava cheio de inglês, nada escrito em chinês" CAROLE BELLAÏCHE/SYGMA/CORBIS

Ao seu olhar sobre uma sociedade capitalista, desenraizada, por vezes de uma frieza arrasadora, outras vezes tristemente terno, alguém apelidou de Yangst. A obra de Edward Yang vai desenrolar-se na Culturgest. O Ípsilon ouviu os testemunhos de colaboradores, camaradas e cúmplices: como o realizador Hou Hsiao-hsien, o escritor, dramaturgo e realizador Hung Hung ou o montador Liao Ching-sung.

Edward Yang (1947-2007) é um dos mais reconhecidos cineastas mundiais e um dos nomes centrais do cinema taiwanês. Não deixa, por isso, de surpreender que os seus filmes raramente sejam exibidos ou disponibilizados. Cerca de um mês depois da retrospectiva dedicada a Hou no Lisbon & Estoril Film Festival, é a vez de Yang ser lembrado em Lisboa num ciclo da Culturgest (13 e 16 de Dezembro) onde serão exibidas todas as suas longas-metragens, excepto a primeira, That Day, On the Beach (1983), e a última (e a mais conhecida), Yi Yi (2000).

Nos filmes de Yang, prematuramente desaparecido (em 2007, aos 59 anos), convivem um leque de personagens cujos relacionamentos (ou incapacidades de os manter) ele trabalha usando uma intricada estrutura narrativa. A minúcia das performances (quase sempre por não-profissionais) e dos décors reflectem o meticuloso controlo de Yang sobre o que criava. Até o acaso não está por acaso. O exemplo máximo será o gigante A Brighter Summer Day (1991), cuja cópia restaurada de 4 horas é um dos destaques do ciclo. É o único dos filmes de Yang que toma o passado histórico de Taiwan como pano de fundo mas a reflexão sobre a contemporaneidade está tão lá como nos seus retratos modernos da sociedade taiwanesa. O olhar sobre uma sociedade capitalista e desenraizada - pela própria condição de Taiwan - é por vezes de uma frieza arrasadora, outras vezes tristemente terno. As frustrações pessoais resultantes de escolhas marcadas por constrangimentos sociais (por exemplo em Yi Yi), o poder destrutivo de obsessões materialistas contemporâneas (A Confucian Confusion) ou uma visão complexa da condição feminina (por exemplo, em That Day on the Beach ou Taipei Story) são presenças habituais. Em todas está a angústia existencial que alguém apelidou de Yangst.

Central a toda a obra é a capital taiwanesa. Não será coincidência que o ciclo se chama Edward Yang - Histórias de Taipé. A metrópole é espaço e atmosfera do desencanto e alienação das personagens. The Terrorizers (1986) é, talvez, o mais puro exemplo deste cinema de Taipé. Mais do que nos filmes de Hou Hsiao-hsien, que filmou em diferentes partes de Taiwan e do mundo, nos filmes de Edward Yang Taipé é espaço de eterno momento presente, um presente claustrofóbico, ao qual é difícil escapar. Onde o passado nunca fica ali e o futuro se quer noutro lugar.

Permeando o seu cinema está o outro lugar de Yang. A América de símbolos e desejos que contamina a vida em Taiwan. Seja nos posters de Marilyn, nas canções de Elvis de Brighter ou no McDonald"s de uma cena de Yi Yi. A América é o sítio para onde alguém quer ir ou para onde alguém foi. Esta ligação aos EUA reflecte o percurso de Yang, que começou por estudar engenharia eléctrica em Taiwan mas deixou a ilha em para estudar nos EUA. Concluiu em 1974 um mestrado em engenharia eléctrica e informática na Flórida. Ainda se matriculou num curso de cinema, mas não lhe agradou a forma como era ensinado. Continuou a dedicar-se à informática, trabalhando numa empresa de microcomputadores em Seattle. Pelo caminho, descobriu o cinema de autores, como o de Werner Herzog ou de Fassbinder, que marcaria a sua visão (embora seja, de maneira geral, mais associado a Michelangelo Antonioni).

A arte, o cinema e sobretudo a noção de ficção habitam os filmes de Yang, encarados de forma irónica, perscrutante, crítica ou mesmo poética - do livro que atormenta a escritora de The Terrorizers às fotografias das nucas de Yi Yi. A criação do artista recria a sua vida e mostra aos outros o que eles não conseguem ver. O mesmo poderá ser dito do cinema de Edward Yang.

Yang e Hou

Edward Yang "via Taiwan de uma maneira diferente, de que nunca se apercebera antes de ir para fora; via o lugar onde cresceu sob um ângulo novo", diz o realizador Hou Hsiao-hsien ao Ípsilon, por email. "Eu sempre vivi em Taiwan, estudei e trabalho aqui, a forma como olho para Taiwan é diferente da dele". Hou não tem dúvidas que "muitos anos a estudar, a trabalhar e a viver nos EUA deram [a Yang] uma habilidade de observar Taiwan sob lei marcial [que vigorou de 1949 a 1987, quando se iniciou a democratização] e um regime autoritário. O que Yang alcançou é muito raro, poucas pessoas poderiam fazer o que ele fez".

Considerados os dois nomes cimeiros do "Novo Cinema Taiwanês", Hou e Yang têm percursos de vida que se cruzam mas onde as diferenças são também notórias. Ambos nasceram em 1947 no seio de famílias "continentais" que foram para Taiwan durante a guerra civil que opôs nacionalistas e comunistas. Enquanto Hou como que se taiwanizou, tornando-se um caso estudado na representação cinematográfica da formação histórico-social de uma identidade taiwanesa, Yang "ocidentalizou-se".

O montador, director de fotografia e produtor Liao Ching-sung, que montou The Terrorizers de Yang (e quase toda a filmografia de Hou), diz-nos: "O seu pensamento é em estilo americano e muito racional. O seu bloco de notas estava cheio de inglês, nada escrito em chinês".

Quanto ao escritor, dramaturgo e realizador Hung Hung (pseudónimo de Yen Hung-ya), um dos argumentistas de A Brighter Summer Day, conta nas suas memórias que, numa deslocação em rodagem a Kaohsiung (segunda maior cidade de Taiwan, no Sul), a equipa do filme entrou num bar onde estava a ser transmitido um concerto de Simon & Garfunkel e Yang terá dito: "Paul Simon nunca fez uma coisa uncool na sua vida". Isso deixou Hung a pensar que "Yang esperava o mesmo de si próprio, e essa era a razão pela qual se desafiava sem cessar, constantemente a inovar".

Hung recorda ainda como Yang incorporou práticas americanas no seu estilo de vida, como jogar basquetebol, usar bonés de basebol, comer em restaurantes de fast food e visitar locais de entretenimento como os Hard Rock Café. No entanto, "deixou bem claro que o que o influenciou não era a cultura americana mas o sentimento dos anos 1960s centrado na comunidade, pelo qual as pessoas se importavam umas com as outras". Hung Hung evoca um Yang que desconfiava dos meios de comunicação social, um "lobo solitário". "Uma noite, Yang mencionou inadvertidamente os Contos de Hoffmann, de Offenbach. Nessa noite, quando cheguei a casa, Yang ligou-me dizendo-me que encontrara a música e que gostava bastante de a ouvir sozinho. Nessa noite senti que esse lobo era realmente muito solitário".

Quando Yang, já na casa dos 30, voltou a Taiwan para a filmar nos anos 1980, o boom económico estava a atingir um pico e as malaises da vida moderna não escaparam à sua visão, a de quem olha de fora e, assim, vê melhor. Um olhar duplamente estrangeirado: de alguém que vivera parte da sua vida fora de Taiwan e sem formação académica em cinema.

Após uma estreia no cinema como argumentista de The Winter of 1905 (1981), participou na obra fundadora do "Novo Cinema Taiwanês", o filme colectivo In Our Time (1982) para o qual assinou um segmento. Seguiu-se That Day, On The Beach, protagonizado por Sylvia Chang - actriz, cantora, realizadora e produtora - e Taipei Story (1985), a mais estreita colaboração que teve com Hou Hsiao-hsien. Este assinou o argumento, produziu e participou como actor principal. Hou garante: "O argumento é basicamente dele, não me envolvi muito nessa parte". E justifica por que aceitou passar para a frente das câmaras: "Quando me pediu para interpretar o papel principal, pensei que era porque me via de uma maneira diferente, diferente de como eu me via. Para ele, eu representava uma personagem da sociedade taiwanesa".

Os caminhos de Yang e Hou já se haviam cruzado em dois filmes realizados pelo segundo. Em The Boys from Fengkuei (1983) e A Summer at Grandpa"s (1984) Yang aconselhou Hou na banda sonora. O parecer de Yang terá sido tão crucial que Hou interveio no primeiro filme depois de este já estar em exibição. "Eu tinha usado umas canções populares e o filme foi distribuído. Depois de o visionar, Edward Yang sugeriu-me que usasse antes as Quatro Estações, de Vivaldi e segui o seu conselho. Refiz a mistura e fiz uma nova cópia, tudo com o filme já em circulação. Esta experiência inspirou-me, abriu a mente para uma nova forma de admirar música num filme".

A ligação de Yang à música é perceptível nos seus casamentos. No primeiro, que durou de 1985 até ao divórcio dez anos depois, com a cantora Tsai Ching, que filmou em Taipei Story; e no segundo, que só terminou com a morte de Yang em 2007, com a pianista Peng Kaili, a que compôs a banda sonora para o seu último filme, Yi Yi. E se a música tem eco nos seus casamentos, também a dissecação da experiência conjugal é uma constante no seu cinema, particularmente notória em filmes como The Terrorizers.

Os filmes-chave

Liao Ching-sung foi o responsável pela montagem de The Terrorizers e também, no mesmo ano, de Dust in the Wind, de Hou. Este sugeriu-lhe que "editasse The Terrorizers de dia e o seu filme de noite", método que veio a ser abandonado na primeira noite porque a atmosfera de um filme estava a contaminar a do outro. The Terrorizers foi montado primeiro.

Liao diz ao Ípsilon que naquele tempo "começava cedo e só deixava a sala de montagem à meia-noite. Um dia, tive algum tempo para ir ver um filme de Satyajit Ray e, subitamente, senti o ecrã a voar para mim e a minha mente a abrir completamente". Foi uma epifania. Yang "queria que eu seguisse o seu guião de rodagem mas eu queria seguir a tensão", e segundo Liao, esta não era suficiente. Pressionado com os prazos de montagem dos filmes de Yang e Hou para serem apresentados na edição desse ano do Golden Horse Film Festival (os mais importantes prémios de cinema em Taiwan), Liao "tinha de tomar uma decisão - uma decisão bastante precisa" e decidiu-se pela tensão.

"Penso que ele [Yang] não concordou comigo nesse ponto, mas o filme tem a sua vida própria, a minha função é segui-lo guiando-me plano a plano", prossegue Liao. Há uma memória vívida da confusão desse tempo e as incertezas e culpa vêm acompanhadas de um certo orgulho pelo que dali resultou. "Às vezes pergunto-me sobre se tomei a decisão certa por ele - afinal, a montagem, para mim, é também uma via de instrospecção. Acabámos a montagem seguindo a sua própria concepção artística."

O resultado foi o ponto de viragem no reconhecimento da carreira de Yang. "Para alguns críticos ocidentais, este é o seu melhor filme", destaca Liao. "Lembro-me de que, após o visionamento da primeira cópia na companhia de Hou Hsiao-hsien, este lhe ter dito, com admiração, que se tratava de um grande filme".

As memórias de Liao não diferem das de outras figuras ligadas ao "Novo Cinema Taiwanês" e à obra de Yang, como Wu Nien-jen, o escritor, argumentista e realizador que Yang chamou para protagonizar Yi Yi. Numa entrevista incluída numa edição taiwanesa em DVD de uma cópia remasterizada do filme, Wu recorda como dizia a Yang, a brincar: "Tu és um estrangeiro, vês as coisas sob a perspectiva dos estrangeiros". Isso, enquanto Yang confessava que, ao contrário dele, não pensava em mandarim ou taiwanês mas "pensava em inglês". Wu confessou ter ficado "chocado" quando descobriu The Terrorizers, onde a visão do mundo de Yang emergia com uma claridade inédita.

Para Liao Ching-sung, Yi Yi, que viria a ser o último filme de Yang, "é uma versão terna de The Terrorizers". Na sua opinião, "independentemente de ter ou não concordado com a montagem de The Terrorizers, esse filme influenciou-o na criação de Yi Yi". O filme em que trabalhou com Yang é, de acordo com Liao, o seu favorito e, garante, não o diz por parcialidade. "Da primeira vez que acabei a montagem e vi o filme, para ser franco, não gostei muito dele. As relações entre as personagens eram, para mim, deveras desagradáveis, cada personagem não é o que podemos chamar uma "boa pessoa", cada uma com as suas próprias manhas".

O choque inicial mudou com os anos. "Vi-o de novo e percebi que é como se ele tivesse usado um bisturi para analisar o relacionamento entre as pessoas, o qual é extremamente acutilante. Gosto imenso da forma como ele faz essa análise no tempo/ritmo estável. Percebe-se a tensão, o nervosismo das suas relações sob uma atmosfera de vida normal (...), ele não te força a aceitar o te dá, é mais um sentimento, uma atmosfera que te faz sentir como se viesse da tua própria vida - dando ao espectador a capacidade de compreender o que aconteceu por si próprio".

Hung Hung, por seu lado, recorda que, nas férias do Verão antes de começar o seu quinto ano de licenciatura, foi recomendado pelo seu mentor a participar na rodagem de The Terrorizers. O que começou por o impressionar foi a escassez de meios: uma cena num hotel requereu que tivessem de esperar que o hóspede saísse para poderem usar o quarto, ao passo que os principais sets eram, na realidade, casas de familiares da equipa técnica. Foi Hung Hung quem acabou por emprestar centenas dos seus livros para decoração - e não mais os viu.

O Edward Yang que emerge das memórias de Hung é uma figura exigente e temperamental, para quem nunca nada estava como deveria. Esse perfeccionismo reflectia-se nas suas escolhas literárias. Apenas Eileen Chang, adianta, atingia o nível que Yang procurava, e ele acalentava a ideia de transformar Sedução, Conspiração em filme (Ang Lee viria a fazê-lo em 2007). No entanto o por vezes "arrogante" Yang era também capaz de orientar quem o rodeava. Disse-lhe, por exemplo, que "em seis meses estaria capaz de ensinar ao próprio Yang todos os pormenores técnicos que aprendera". O importante era "ter atenção e conhecimento da sociedade e da economia". Essa concentração meticulosa viria a ser evidente para Hung Hung sobretudo com A Brighter Summer Day, que Yang o incumbiu de transformar num argumento.

O estilo de escrita de Yang revelou-se uma "enorme lição": foi-lhe requerido que "estabelecesse informações de fundo completas para cada personagem, de acordo com as quais seria possível deduzir como cada personagem reagiria realisticamente em cada momento, até que todas as ligações assentassem na perfeição, sem um só risco de caneta desperdiçado". Hung ecreveu nas suas memórias como, "para realismo adicional, o realizador várias vezes não deixava os actores saberem que a câmara estava a rodar, começando a filmá-los de longe sem o seu conhecimento". "Os actores principais de Brighter eram todos jovens que nunca haviam representado. De forma a captar uma performance ideal, eles tinham de ser ensinados e persuadidos, repreendidos e enganados - nem um só método foi poupado." Mas Hung percebeu a lição: "A indústria do cinema é assim brutal. É impossível aguentar a não ser que se tenha um amor fanático por ela".

O produtor Chen Hsi-sheng foi, aos 21 anos, aluno de Yang no National Institute of the Arts. Chen contou ao Ípsilon por email como Yang "passava as aulas a discorrer sobre a sua posição face aos filmes de Taiwan mas não nos ensinava como realizar um filme". Yang viria a chamá-lo para ser actor em A Brighter Summer Day mas Chen começou por recusar, o que deixou o realizador descontente. Acabou por fazer um pequeno papel como oficial da Força Aérea.

Depois do filme, Chen continuou a dar-se bem com Yang e ia muitas vezes "ouvi-lo falar de filmes e vê-lo fazer filmes". Por isso acabou a ter pequenos papéis em A Confucian Confusion (1994), Mahjong (1996) e, claro, Yi Yi. Neste último, Yang insistiu em que o papel fosse dado a Chen. Apesar de este não estar entusiasmado com a perspectiva de se submeter à maneira rígida como Yang tratava os actores, Chen admite que não teve outra hipótese "senão aceitar sorrindo". Certa vez, Yang perguntou-lhe: "Quantas vezes urinas por dia?". Chen recorda: "Não sabia o porquê desta pergunta mas sabia que dela não vinha nada de bom". Acabou por responder, profissionalmente, e ficou incumbido de, no dia seguinte, representar uma cena a urinar. "Perguntei-lhe: "Vais filmar-me os genitais?" Ele riu: "Claro que sim! Precisas de preparar algo?"". Yang ficou contente e garantiu-lhe que iria filmar tudo muito claro. Um nervoso Chen lá acabou por fazer a cena após algumas tentativas embora até hoje não perceba: "Se era para se filmar um plano tão obscuro que mal se vê, porque precisei de urinar realmente?". Não obstante as atribulações, Chen diz que Yi Yi permanece o seu favorito da filmografia de Yang: "Por trazer tantas memórias, de felicidade e de dor. Sendo este filme o que me fez decidir continuar a filmar durante toda a minha vida, como poderia não o amar?".

Yang "amava demasiado o cinema", realça Chen Hsi-sheng, sempre "perseguindo a melhor combinação dos elementos", procurando o que tornava os filmes poderosos e como tornar-se "melhor que os outros". As suas obras eram universais. "Taiwan era um pano de fundo para toda a humanidade e emoções, não há limitações de tempo ou espaço. As pessoas sentem-se tocadas, reflectem e depois admiram". Chen evoca um cineasta que influenciou alunos e colegas até hoje com o seu "espírito de nunca desistir perante o cinema". E acrescenta: "Nos momentos mais sombrios [do cinema taiwanês] os seus filmes deram-nos objectivos, e fizeram-nos acreditar que basta fazer filmes para realizarmos os nossos sonhos e mostrar ao mundo o quão formidável é o cinema taiwanês".

Auto-reflexão

O cinema de Yang não é, contudo, apenas pautado por uma análise fria. Muito do que filmou nasceu da sua experiência de vida, como a família de "continentais" a viver numa casa em estilo japonês em Taiwan e os jovens a crescerem alienados num tempo de americanização cultural que é o contexto histórico do seu monumental A Brighter Summer"s Day, que é também uma evocação da sua própria infância.

Liao Ching-sung reconhece esse cariz pessoal dos filmes de Yang: "Ele era muito sensível sobre aquilo por que tinha passado na vida; podia encontrar o tema dos seus filmes nas suas experiências", algo que se aliava a uma "forte consciência social, uma espécie de Antonionismo e frieza. Ruminava aquilo por que passara, poderia dizer que observava com um ponto de vista blow-up, mas ao mesmo tempo nunca deixava as suas emoções pessoais para trás". Isso fazia com que o seu cinema resultasse "da mistura da vida real com o seu ponto de vista racional". E, por vezes, a inspiração nem vinha do cinema dos outros, mas do seu: "Ele podia encontrar o tema do seu próprio filme na sua experiência de trabalho no filme anterior".

Nem sempre eram de Yang as experiências que o inspiravam. No livro Edward Yang, o autor, John Anderson, menciona como os telefonemas falsos da "White Chick" de The Terrorizers foram inspirados em actos da própria actriz que encarnou a personagem, e que foi o relato de uma chamada a ser atendida por uma mulher de cujo marido ela disse ser a amante que precipitou a imaginação de Yang para a brutalidade em potência que um acto casual poderia causar.

O "Novo Cinema Taiwanês" trouxe uma nova forma de filmar Taiwan através das experiências dos seus habitantes, num tempo histórico específico ou no presente dos anos 1980-1990 que hoje já vemos como passado. Para Liao Ching-sung, o que distinguia os realizadores taiwaneses do "Novo Cinema" da nova geração é que os primeiros "cresceram sob a lei marcial, uma época de controlo. O que eles fizeram em cinema foi revolucionário e o que eles criaram é o verdadeiro cinema de Taiwan (...), eles centraram-se no ambiente e na experiência do seu crescimento, filosofia pessoal, a sua forma de pensar sobre a vida, a sociedade e os valores. O seu cinema é mais artístico." A nova geração já não sofre com o controlo de outrora e "é melhor tecnicamente" em virtude de uma maior formação inicial em televisão e publicidade antes de passarem para o cinema. Liao afirma que a chave para o sucesso no mercado taiwanês - aquilo que tem sido responsabilizado por uma nova vaga de realizadores que reconciliaram o público taiwanês com o seu cinema - é o "elemento local".

De certa forma, isso é uma herança do "Novo Cinema Taiwanês", não tanto em termos formais mas em temos temáticos. Foi ele quem criou um cinema distintamente taiwanês porque centrado na ilha e nos seus habitantes e não na visão de uma "China" sancionada oficialmente pelo discurso oficial da época. Se hoje há espaço para o "local" ser factor-chave de sucesso é porque o "Novo Cinema" lhe deu legitimidade artística.

Chen Hsi-sheng conta-nos: "Uma vez uns franceses vieram a Taiwan e perguntaram a Yang: "Taiwan tem o quê?". Yang respondeu com firmeza: "Taiwan tem cinema!". Este era Edward Yang. Uma pessoa - talvez um deus? - que amava ardentemente o cinema".

O Ípsilon agradece a Chang Chuti e Yvonne Kong

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