De madeira e lã se faz oCarnaval transmontano

Em Lazarim e Podence, aldeias de Trás-os-Montes, o povo insiste em manter os caretos e brincar por detrás das máscaras feitas nas suas aldeias. De madeira, latão e lã, ao som de bombos e gaitas-de-foles. Ali, tudo ainda é feito pela mão de artesãos como Adão e Paulo. Por Helena Geraldes (texto) e Joana Bourgard (imagem)

O diabo fica pronto segunda-feira. Adão Almeida põe de lado a navalha e olha de frente para a máscara de madeira de amieiro que está a esculpir. Estão lá os chifres e o contorno da cara bicuda. No tampo de madeira rugosa onde trabalha, as lascas misturam-se com navalhas, facas, lixas, uma enxó e a pedra de afiar. Ali encostados no chão, serrotes de vários tamanhos. Nada de tintas, só madeira crua. O artesão que faz máscaras para os caretos de Lazarim há 34 anos está de pé em cima de um pequeno monte dos restos de madeira que acabam no chão.

Adão Almeida, de 48 anos, é calceteiro na Câmara Municipal de Lamego, mas quando chega à aldeia de Lazarim, é artesão de máscaras para os caretos, tradição do Carnaval transmontano. A sua oficina fica no rés-do-chão da casa onde mora, à entrada da aldeia. Pela porta entra o sol de início de uma tarde de Inverno e ali dentro não se ouve nada mais do que a navalha a raspar a madeira, os pintassilgos e canários que tem em duas gaiolas para lhe fazerem companhia.

Há quatro dias que tem em mãos esta máscara para o Entrudo. Foi uma encomenda. Cortou um bocado de tronco de amieiro que foi buscar mais abaixo, perto do rio e, à medida que vai desbastando a peça única, encontra a máscara "escondida". "Trabalha-se conforme a madeira nos pede. Ela é que manda em nós", explica enquanto vai delineando um dos chifres com a navalha, "para ficar mais bonito". "Esta máscara hoje à noite deve ficar toda esculpida por fora. Lá para segunda-feira a ver se a acabo." Falta escavá-la, um trabalho moroso por ser tudo feito à mão. Nada de máquinas.

Normalmente uma máscara demora uma semana a ser feita. "Mas aquela ali demorou duas semanas e meia, por causa dos pormenores", explica, voltando-se para trás e apontando para uma das cinco máscaras pousadas em cima de um armário. Representa uma mulher, com o cabelo apanhado e um chapéu na cabeça. Costuma fazer entre 12 e 14 máscaras por ano, mas nunca no Verão, porque com o calor a madeira estala e racha. As figuras mais típicas do Entrudo de Lazarim são o diabo e a senhorinha. Mas os três artesãos da aldeia também tiram da madeira de amieiro polícias, reis, máscaras com bichos e máscaras de bichos como o porco ou o canguru. Adão pára o que está a fazer para recordar o ano em que ele próprio se vestiu de canguru para o Carnaval de Lazarim, levando a sua filha de três anos ao colo, também ela com a mesma máscara. "Foi mesmo cansativo, mas divertimo-nos muito." Hoje não brinca ao Carnaval. "Já não tenho idade para isso", justifica. Mas ajuda a manter a tradição, fazendo as suas máscaras e ensinando a arte a um dos seus filhos. Este e mais dois rapazes começaram já a "moldar" as vontades à madeira, sozinhos, e fazem um ou dois trabalhos por ano. "Ele quando pega, faz", garante o pai. "Talvez não venha a deixar a arte", garantindo que Lazarim nunca tenha falta de caretos.

Entretanto, o chifre do diabo que está em cima da banca de madeira vai ganhando forma. Está mais fino, mais chifre e menos madeira. "Costumo vir para aqui depois do trabalho em Lamego, lá para as 18h00. Se gosto do que estou a fazer fico até à meia-noite ou até às 2h00. Não ligo ao relógio. Às vezes tem de ser a mulher a vir chamar-me". Este ano fezsete novas máscaras, "para o povo brincar". Só no ano passado foram vendidas três. Estas peças custam entre 250 e 300 euros. "Nem imagina as vezes que já me cortei", diz, olhando para as mãos grandes que trabalham a madeira.

Adão aprendeu sozinho

Quatro dias antes do Carnaval, a porta da oficina de Adão não fecha, com as "pessoas de fora a querer ver ou aprender. Não mando ninguém embora". Adão aprendeu sozinho. Tudo começou quando lhe mostraram uma certa máscara de diabo, em madeira, quando ainda em criança se mascarava com panos ou rendas sobre o rosto. "Fui para casa pensar que também gostaria de fazer uma assim. E comecei. Depois gostei e parece que o povo também gostou." Hoje, tem peças suas em museus de vários países, incluindo no Japão e na Bélgica.

Mas na altura em que era criança, era mais difícil brincar aos caretos. "Antes do 25 de Abril não era permitido andar mascarado porque esta era uma festa pagã. As pessoas estavam sujeitas a multas ou à prisão. Por isso, mascaravam-se às escondidas. Depois do 25 de Abril, o Entrudo foi reactivado e as pessoas agora andam à vontade".

A festa pelas ruas de Lazarim começou domingo,com gaiteiros, bombos e carros alegóricos. As máscaras, essas, só saem à rua hoje, terça-feira de Carnaval. Num ano recorde, que Adão não consegue precisar,saíram à rua 56 caretos. Mas a média é de 40. "De manhã não se vê ninguém. Os caretos começam a sair cerca das 14h30, 15h00, e a folia dura até à noite", acabando com caldo de farinha e feijoada para todos. Pelo meio são lidos os testamentos no Largo do Padrão. "Os rapazes descobrem os podres e os defeitos das raparigas no ano que passou e vice-versa. O que a pessoa for é dito. O mal que tiver vem à rua." Mas "o povo já não se zanga, aceita que é brincadeira".

Aquilo que o povo já não aceita são as máscaras de borracha. "Isso não entra cá, quebra a nossa quadrilha. Há oito anos já isto estava um pouco como o do Brasil. Mas dissemos que estava mal. Temos de ter o nosso Carnaval. Estávamos a perdê-lo. E o povo continuou com o nosso. Com gaitas-de-foles e bombos e não com sambas."

Na aldeia de Podence, são outras as máscaras e outros os trajes, mas também aqui o Carnaval insiste em ser transmontano. Paulo Alves, agricultor de 41 anos daquela aldeia, traz o seu pequeno tear de madeira para mostrar como ajuda a manter a tradição. Este artesão é um dos poucos que ainda fazem as características franjas de lã amarelas, verdes e vermelhas dos caretos de Podence. Senta-se, de chapéu como o dos cowboys na cabeça, e começa a enrolar e desenrolar um novelo de lã amarela, enleando os fios, com saber, no tear que ele próprio construiu.

Para o Carnaval deste ano, que começou no sábado passado, só lhe falta fazer um fato de criança, os chamados facanitos. Mas já chegou a fazer 16 fatos num ano. É um trabalho "que dá cabo das costas", faz valer.

Paulo Alves deixou a sua burra a pastar num terreno do outro lado da rua da Casa do Careto, à entrada da aldeia de Podence. Tem mais de 20 anos o animal, sem o parecer. "Aqui em Podence planto umas batatas, couves, podo vinhas, apanho castanhas e azeitonas." Além disso, faz trajes de caretos há muito tempo. "Aprendi com o meu tio. Via como ele fazia."

Hoje leva três dias a fazer um fato de adulto, gastando 24 novelos de lã. As franjas, ornamentos que as mulheres pegam às calças e ao casaco feitos por um alfaiate da terra, têm duas medidas, explica. "As franjas mais curtas são para a cabeça, para ficarem espetadas, como se os caretos tivessem gel", brinca. As máscaras dos caretos de Podence são quase todas de latão, algumas de cabedal. Um traje completo custa cerca de 750 euros. E ainda nunca ninguém descobriu a identidade de quem o enverga. "Quando a festa acaba, costumamos ir para casa e lá é que tiramos o fato, para ninguém saber quem éramos", conta, sem nunca tirar as mãos do tear.

Mas Paulo faz mais pelos caretos de Podence. Ainda se mascara e é com orgulho que diz ser aquele "que tem mais horas no activo" naquela aldeia. Começou como facanito, nome que se dá às crianças que se vestem de caretos, pela mão do avô. "Lembro-me de ir com ele pelas ruas, mesmo cheias de lama, mesmo com chuva." Hoje, o seu traje leva os dois cintos cruzados ao peito com campainhas e o cinto que coloca na cintura com sete a oito chocalhos de bom tamanho. "Só não ponho mais chocalhos porque seria demasiado peso e não poderia correr tão à vontade". Para ajudar à imagem, os caretos andam sempre com um pau. "Nada lhes está interdito".

Mas a tarde e a noite da folia dos caretos não é fácil de aguentar. "Sempre a correr e a saltar com o traje, é muito cansativo. O que ajuda é o vinho que vamos bebendo", sorri. E os facanitos, assim que vestem um traje "bebem logo um copito". E as mães não se zangam, é o Carnaval de Podence. "Levamos quatro dias para recuperar do desgaste físico do Entrudo", admite.

Hoje há 40 ou 50 caretos que saem à rua todos os anos, "à procura das mulheres da aldeia", com muito "barulho, como mandam os costumes". Este ano, o careto mais novo terá cinco anos, diz o artesão. A tradição começa cedo e todos querem fazer parte dela. Mas só os homens se mascaram. Faz parte da tradição a ida às adegas e às casas dos habitantes de Podence provar o vinho e os enchidos, mesmo que aqueles não queiram. "Ah, isso entramos sempre, ou pela porta ou pelas janelas. Mas ninguém se zanga, sabem que é brincadeira e já estão habituados. Todos os anos é a mesma coisa."

Casamentos por sorteio

Na segunda-feira de Carnaval são os "casamentos". "Os casais de rapazes e raparigas solteiras são decididos por sorteio", explica Paulo Alves, enquanto vai trabalhando no tear. Agora já tem nas mãos uma bela franja de lã amarela, que cresce a olhos vistos. "Depois vêm aqui à igreja e casam-se. Há casais que começaram por brincadeira e depois casaram-se a sério. Antigamente, este era o único dia que elas podiam estar perto deles", lembra. "Já aconteceu raparigas pedirem para calharem com certo rapaz. E nós lá dávamos uma ajudinha.".

António Carneiro assiste, de pé, ao trabalho de Paulo e do seu tear. É o presidente da Associação de Caretos de Podence e foi com orgulho que mostrou os fatos e as máscaras expostas na Casa do Careto. "A aldeia fica ao rubro" para assistir a uma tradição com raízes nos povos celtas e nos seus rituais de passagem e casamenteiros, conta o responsável da Casa do Careto, criada nos anos 90 para dar "sustentabilidade aos festejos". "Chegam a juntar-se na aldeia 300 pessoas." António nasceu em Podence e hoje vive em Mirandela, cidade onde trabalha numa instituição bancária. Admite que muito já mudou no Carnaval da terra. "Hoje as brincadeiras são menos agressivas", os hábitos e costumes mudaram e antigamente não vinham cá turistas, era apenas o povo. Ainda assim, a tradição mantém-se. "Houve uma altura em que já ia havendo uns caretos de cores diferentes, em tons rosas e azuis", lembra, segurando na mão um fato que foi buscar a uma sala da Casa do Careto, e que vai virando do direito e do avesso para se perceber a qualidade do material e dos acabamentos. "Acabámos com isso. Temos de fazer o nosso Carnaval, com as nossas cores. Caso contrário fica tudo descaracterizado".

E ninguém parece ter opinião divergente. Tanto é que, "dantes, os emigrantes vinham à terra pelo Natal, agora preferem vir pelo Carnaval". Tal é a força do careto de Podence, que chegou a estar quase extinto nos anos de 1960 e 1970, especialmente devido à emigração e à guerra colonial. Mas, agora, António não acredita num enfraquecer da tradição, mesmo perante um cenário de despovoamento das regiões do interior do país. "Acho que será já muito difícil haver um retrocesso. Cada vez temos mais visitantes, com hotéis a esgotarem-se na região", garante. "As pessoas daqui seriam contra o fim deste modo de fazer as coisas. Acham bonito ser careto e têm orgulho nos seus trajes."

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