As elites já não querem estudar Letras

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Sófocles: dramaturgo grego, um dos mais importantes escritores de tragédia, ao lado de Ésquilo e Eurípedes

Os cursos de Letras têm vindo a perder alunos para Ciências e Engenharias. As elites não põem os filhos a estudar História, Filosofia ou Literatura. Mas talvez façam mal, dizem alguns. Estudar Letras ajuda a desenvolver um pensamento crítico e criativo. E, cansadas de tanto especialista, as empresas (para não falar da própria sociedade) começam a procurar pessoas com outro perfil, que conheçam o passado, a história das ideias, que saibam ler um texto e cruzar saberes. E já há universidades a tentar dar resposta a isso. As Letras querem renascer.

João Valsassina não sabe dizer com exactidão mas calcula que é há sete ou oito anos que o seu colégio - o Valsassina, em Lisboa - já não abre a área de Línguas e Humanidades, por falta de alunos interessados. "Cheguei a ter duas turmas nessa área e no espaço de dez, quinze anos, passámos dessas duas turmas para a fuga total. Quanto muito temos dois, três alunos, que querem ir para Direito." E nem vale a pena perguntar, porque é evidente - ninguém fala em ir para Literatura, Filosofia, História. "É um vazio assustador", confirma o director.

E assim, neste momento, o Valsassina tem entre 67 e 70 por cento dos alunos na área de Ciências e Tecnologias, e, bastante mais abaixo na escala, alunos em Ciências Sócio-Económicas e Artes Visuais. "Tem tudo a ver com a empregabilidade", constata. Em muitos casos são os pais que tentam convencer os filhos de que o melhor é estudar numa área que dê acesso a cursos como Medicina ou Engenharia. Antes ainda havia muitos interessados em ir para Direito, mas "a ideia que se começou a difundir de que há uma grande saturação nessa área, tal como na Arquitectura, leva os pais a dizerem aos filhos "não vás para aí, não tem saída"".

Helena Lopes conhece bem essa conversa - não da parte dos pais, mas dos próprios professores e enfim... de quase toda a gente. "O meu interesse pela História começou cedo, mas terá sido com 14 anos que decidi que iria estudar História no futuro", conta. "A vocação já estava lá adormecida desde criança, mas foi despertada por um professor que tive no 8.º e 9.º ano que nos mandava fazer trabalhos de pesquisa e transmitia a ideia de que a História não eram apenas datas de batalhas e nomes de reis, mas abrangia outras áreas, como a música, a literatura ou a pintura."

Quando teve de escolher o agrupamento, Helena não tinha dúvidas. "Mas foi aí que comecei a ouvir os primeiros avisos", recorda. "Como era muito boa aluna a todas as disciplinas, os meus professores de Matemática, por exemplo, não compreendiam porque queria seguir esse beco sem saída das Humanidades - ainda para mais nem era para estudar Direito. Na altura ouvi frases como "querer seguir História é como querer acabar a lavar escadas de um prédio" ou "não faça esse erro, vai-se arrepender."

A história da Helena ainda vai dar muitas voltas, mas já voltamos a ela. Antes vamos fazer uma passagem pela Futurália - Salão de Oferta Educativa, Formação e Empregabilidade, organizado na FIL, em Lisboa (decorreu entre 16 e 19 de Março), onde os estudantes do secundário podem procurar informação sobre cursos universitários, opções de estudo, saídas profissionais. Atravessamos o animado pavilhão dos cursos profissionais - escolas para massagistas fazem demonstrações a quem tiver disponibilidade para ser massajado, estudantes de cozinha provam do que são capazes à volta de uma frigideira num pequeno fogão, há paredes de escalada, estúdios de filmagem improvisados, há quem dance, quem faça circo, quem aprenda pilates.

No pavilhão do ensino universitário o ambiente é um pouco mais calmo. Cada estabelecimento de ensino mostra o que são as suas ofertas e promove o melhor que tem. Cursos, cursos, cursos - para todos os gostos. Todos? Enfim, mais para alguns gostos do que para outros. MBA (Master in Business Administration) não faltam, Engenharias também não. É o que tem mais procura, confirmam em vários stands.

Vejamos algumas das propostas da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL). Há licenciaturas em Ciências da Comunicação, Psicologia, Arquitectura, Relações Internacionais, Informática de Gestão, Administração e Gestão Desportiva, Engenharia Informática, e muitos outros. O que diz o folheto da licenciatura em História? Que este é um curso que "sempre se dirigiu não apenas para a formação inicial dos jovens em idade escolar, mas também para a formação complementar e ao longo da vida" e que muitos dos alunos "já possuem formação noutras áreas e recorrem a esta formação para elevar os níveis de conhecimento".

É certo que o folheto diz também que o curso "tem sido apoiado pelos centros de investigação em História Empresarial, Arqueologia e Estudos do Mar", e que há, portanto, uma preocupação com a empregabilidade, mas o discurso é claramente diferente do que encontramos nos folhetos de Ecomomia e de Gestão - ambos anunciam logo na primeira linha que, "segundo estudo recente, o nível de empregabilidade dos recém-licenciados em Economia (e Gestão) da UAL é dos mais elevados".

Mudamos de stand. No da Universidade da Beira Interior dão-nos um papel com as médias de entrada (que corresponde à média do último aluno colocado) no ano de 2010/2011. A mais alta é de Medicina (17,8 na primeira fase, 18,3 na segunda) e a mais baixa de Filosofia (9,5 na primeira, 12,1 na segunda), que é oferecida em horário pós-laboral. As áreas mais procuradas são as de Ciências e Tecnologias, e Saúde, explicam-nos - e é na Medicina e nas Engenharias, sobretudo aeronáutica e electromecânica, que estão as melhores saídas profissionais. As Letras lutam pela sobrevivência. Para Estudos Portugueses e Ingleses "não têm aberto vagas" e o que tem ainda uma boa procura são os Estudos Portugueses e Espanhóis, "porque no secundário há uma procura cada vez maior de professores de espanhol".

Saber mais

Empregabilidade - a palavra está por todo o lado na Futurália. Como é que num cenário destes resiste uma Faculdade como a de Letras da Universidade de Lisboa? Com imaginação para dar o salto, é o que nos vai explicar o director, António Feijó. Há cerca de três anos a própria existência da Faculdade estava em risco. "Havia uma assembleia para fazer os novos estatutos da Universidade, e algumas pessoas aperceberam-se de que se estava a considerar o desmembramento e extinção da Faculdade de Letras. Parte dos departamentos iriam para Ciências Sociais, outros para Belas-Artes e aqui ficaria uma espécie de escola de línguas. Um grupo de docentes, que rapidamente se alargou à totalidade, insurgiu-se contra isso e conseguiu-se fazer parar o processo. Mantivemos a faculdade intacta."

Ultrapassada a luta pela sobrevivência física, a Faculdade vê-se agora forçada a encontrar resposta para uma pergunta: para que serve estudar Letras? É simples: para saber mais. Num mundo altamente especializado, em que o ensino visa sobretudo criar especialistas em áreas muito particulares, a Faculdade de Letras quer oferecer uma base, que considera fundamental, de cultural geral. "Em Portugal há grandes mestres universitários, preparações técnicas muito boas, mas não há universidade no sentido de haver uma preparação ampla, em que os alunos circulem por todos os saberes", explica Feijó.

Por isso, continua, "decidimos criar uma licenciatura genérica que junta a Faculdade de Letras, a de Ciências e a de Belas-Artes" (licenciatura que deverá começará a funcionar a partir do próximo ano lectivo). Os alunos podem escolher cadeiras de qualquer uma destas faculdades e fazer um curso que inclua, por exemplo, Estatística, Análise Matemática, Biologia, Literatura Francesa e Escultura. "Chamámos-lhe Estudos Gerais, dando-lhe o nome da primeira Universidade em Portugal." Trata-se, portanto, de um regresso a um saber mais vasto, a uma ideia de estudar pelo prazer de aprender, de cruzar saberes.

Espírito crítico

Para já, o que começou a funcionar este ano foi uma licenciatura em Artes e Humanidades, em que o aluno pode fazer as combinações que quiser, com Filosofia, História, Literaturas, Linguísticas, e todas as outras cadeiras da Faculdade de Letras, e em que não só estuda Lógica e Prática da Argumentação, como textos fundamentais da Antiguidade Clássica, da Época Moderna e Contemporânea. "Esperamos que os alunos leiam São Tomás de Aquino e Maquiavel, Marx e Rousseau, Freud e Darwin, e que isso lhes dê uma base ampla para que possam ser pessoas realmente educadas no sentido formal do termo."

Pedro Nascimento tem 20 anos e está no 1.º ano de Artes e Humanidades. "Vi na Internet e o que me chamou a atenção foi o nome e o facto de ser novo. Percebi que podia ter aulas em qualquer departamento e isso agradou-me, embora esta já fosse a minha terceira opção." Está a pensar fazer um major em Artes do Espectáculo, e interessava-lhe vir a trabalhar na imprensa escrita, mas por enquanto está preocupado sobretudo em adquirir "uma formação geral que possa dar um vasto leque de escolhas".

De qualquer forma, "o emprego é uma questão que virá depois". "Não escolhi o curso a pensar em integração profissional", confessa. "Acho que ter conhecimento dos clássicos antigos e uma visão mais alargada da realidade vai-me ser útil não só em termos profissionais como de enriquecimento pessoal. Temos conhecimento de outras maneiras de ver a vida e isso é uma mais-valia, que nos permite ter um pensamento mais fora da caixa."

É precisamente neste ponto que a conversa sobre estudar Letras se cruza com a conversa sobre empregabilidade, acredita António Feijó. "Quando decidimos criar os Estudos Gerais, consultámos uma série de personalidades, e as que estão mais ligadas às empresas disseram-nos que era exactamente o tipo de pessoas que queriam ter. Pessoas que saibam muitas coisas diferentes podem fazer mais coisas diferentes, e têm mais possibilidades de emprego do que as que só sabem fazer uma coisa."

Um raciocínio que parece em sintonia com uma tendência que está a surgir também noutros países. Um dos stands na Futurália é da IE University em Segovia e Madrid. Esta universidade que recebe, para licenciaturas, alunos de 57 nacionalidades, apercebeu-se, há cerca de quatro anos, de que "o mundo empresarial estava a mudar de forma muito acentuada", conta Arantza de Areilza, directora da Escola de Artes e Humanidades da IE, numa conversa telefónica. "Apercebemo-nos de que as empresas estavam a procurar outro tipo de formação, para lá da formação técnica. E considerámos que o mundo das Humanidades, que era algo que tendíamos a esquecer com a especialização em que vivemos, tinha uma série de ferramentas e mensagens muito compatíveis e importantes para a formação dos futuros empresários."

Decidiram introduzir as Humanidades nos vários programas de estudos porque acreditam que um melhor conhecimento do mundo pode ajudar os alunos a desenvolver a criatividade e o pensamento crítico. "Queremos ajudar os nossos alunos a formarem um espírito crítico, a analisarem, a saberem distinguir o essencial do trivial, porque uma das coisas que nos disseram foi que as organizações empresariais já não funcionam hoje como orquestras filarmónicas, em que há um director que toda a gente segue. Hoje são muito mais orquestras de jazz, em que a improvisação é muito importante."

Visão global

A IE passou então a oferecer um World Awareness Seminar, "um seminário com vários módulos, um dos quais é Cultura e Sociedade de grandes países, que coincidem com grandes mercados, e a ideia é ir para além dos grandes movimentos políticos e económicos e explicar aos alunos a história e os valores sobre os quais assentam sociedades como a chinesa, a japonesa, a brasileira, o mundo árabe". Além disso, dão também uma formação em Criative Management Thinking, para ensinar a analisar a realidade de forma crítica. "Imaginação, iniciativa própria, análise crítica, somadas a uma visão global do que está a acontecer, e a um conhecimento de línguas, é uma formação imbatível na altura da contratação", diz Arantza de Areilza.

Talvez seja então o momento de vermos o que aconteceu a Helena Lopes depois de ter decidido ignorar todos os avisos e estudar História. "Desde a primeira aula na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa que fomos advertidos das dificuldades de trabalhar na área em Portugal, e ao longo dos quatro anos que ali estudei a esperança no futuro pós-licenciatura foi-se tornando cada vez mais cinzenta. Ao fim do 3.º ano parecia já certo que não haveria nenhum emprego relacionado com História para ninguém e que continuar a estudar num mestrado era o caminho óbvio para quem queria um dia vir a ser investigador."

Acabou o curso com média de 17 e quis ter uma experiência de trabalho - foram seis meses de estágio num arquivo sem qualquer remuneração ou subsídio, uma experiência "bastante positiva em termos de conteúdo mas igualmente frustrante pela consciencialização de que há muito trabalho que podia ser feito por licenciados dedicados mas ninguém os vai empregar, e nem toda a gente está disposta a trabalhar voluntariamente".

Ignorar os conselhos

Nova interrupção na história para conhecermos Joana Torres, 25 anos, colega de Helena no mesmo curso. "Preferi ir para a universidade fazer um curso de que gostava com a perspectiva consciente de que não iria ter emprego na minha área do que tirar um curso que não me satisfizesse." Tal como a Helena, não lhe faltaram os avisos de que o curso "não tinha saídas". "Ignorei todos os conselhos. Pensei "a situação está como está, não vou tirar um curso de que não gosto para ficar desempregada na mesma. Vou estudar o que gosto e se depois tiver que ir para caixa de supermercado vou"."

Entre os colegas "falava-se sobre emprego, mas não de forma obsessiva" porque "todos tinham consciência de que o emprego em História era uma ilusão". Ensinar já não era uma opção. E foi só mais tarde que Joana descobriu que era possível fazer investigação. É o que está a fazer agora. Inscreveu-se numa série de cadeiras opcionais ligadas a Arqueologia e está a terminar a tese de mestrado em Arqueologia. "Acabei por me interessar pela arqueologia moderna e por uma área que só agora está a ser desenvolvida: a faiança portuguesa." Está há dois anos a trabalhar como bolseira de investigação, com apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), e a ideia é avançar para o doutoramento.

Seguir investigação em História é algo que está a acontecer com muitos alunos porque, sublinha Pedro Cardim, professor do Departamento de História da Universidade Nova, "tem havido uma política consistente de financiamento de centros de investigação e programas de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento". Isto faz com que a investigação em Portugal seja hoje feita "em condições bastante boas, comparáveis ao que existe em Espanha ou em França".

E esta é uma das razões pelas quais o panorama em História não é tão desanimador quanto poderíamos imaginar. Nos últimos anos houve uma alteração nas expectativas dos alunos - e isso é bom. "Entre 2001 e 2003, houve uma queda enorme, mas depois as coisas melhoraram, e ultimamente a procura de cursos de licenciatura, mas também de mestrado e doutoramento, aumentou substancialmente. Pedro Cardim tem notado que as pessoas já não encaram História como um curso orientado profissionalmente para o ensino. "Nenhum aluno que entre em História tem a ilusão de que uma das suas opções será dar aulas no ensino básico ou secundário. Isso acabou algures em 1997/98, quando o sistema de ensino ficou saturado."

E isto "paradoxalmente teve um efeito positivo". As pessoas sentem-se mais libertas para estudar História mesmo que depois venham a fazer qualquer outra coisa. "Encaram-na como uma formação de carácter geral e não necessariamente como aquilo que vão fazer para o resto da vida."

São alunos mais diversificados - outra característica é que "aumentou o número de alunos que vivem a 60 ou 80 quilómetros de Lisboa e que vêm de áreas mais desfavorecidas", o que parece confirmar a ideia de que as elites estão a fugir das Letras - e "mais preparados para o mercado de trabalho na sua versão mais dinâmica", podendo por exemplo fazer História e depois Gestão.

E se passarmos para uma área ainda mais (pelo menos teoricamente) desligada do mercado de trabalho, como a Filosofia, que panorama encontramos? António de Castro Caeiro é professor no Departamento de Filosofia também na Nova: "O nosso público-alvo alterou-se, começámos a ter pessoas mais velhas, já com formação universitária, e passámos a ter menos o aluno novinho, saído do secundário." E a pergunta surge, inevitavelmente: "Eu, que fui formado numa determinada tradição, de repente o que é que tenho de fazer para tornar essa tradição interessante? O que é que eu posso prometer a uma pessoa que venha estudar Filosofia? Que fica mais esperta? Com maior capacidade retórica? Não posso fazer isso. Acho que o ónus está também nas próprias empresas e na sociedade civil. Está do nosso lado perceber isso."

Quando decidiu estudar Filosofia, não teve de lidar com a pergunta "para que é que isto serve?". "Nunca fiz essa pergunta. A utilidade, a empregabilidade, em determinadas áreas é uma questão que não faz sentido: qual é a utilidade da Música, da Matemática pura, dos Estudos Clássicos que destruíram em Portugal, e da Filosofia, que quiseram desruir mas não conseguiram? São coisas que têm a ver com o exercício da liberdade humana. Para mim, a ideia do livro nunca foi a ideia do útil, mas sim a do imprescindível, do amigo. Perguntar para que serve a Filosofia é o mesmo que perguntar para que serve um amigo: para tudo e para nada."

Conceitos operatórios

Também Caeiro fala da importância do cruzamento de saberes. "A contemporaneidade apostou no especialista, que amplia uma determinada área e deixa na sombra todas as restantes. As Letras podem possibilitar a organização dos conhecimentos, dos saberes." E se virmos o que acontece noutros países percebemos que Filosofia e emprego não são incompatíveis. "Nos Estados Unidos, na Alemanha, em Inglaterra, o pressuposto da empregabilidade está dado à partida. Oxford, a universidade com maior excelência nos cursos clássicos e de Filosofia, emprega todos os alunos, em bancos ou no que quer que seja, porque as empresas querem pessoas que trabalhem com conceitos, que consigam analisar a estrutura de um texto, a táctica, a estratégia, e isso é feito com Homero ou com Platão, é feito com Aristóteles. Depois dão-lhes uma formação específica e a empregabilidade é total."

O problema é querer olhar para o que se ensina em Letras como "matérias". "O que se ensina são conceitos operatórios, aquilo a que os americanos chamam criative thinking, a possibilidade de perder tempo." E porque se devia reconhecer a importância disso, defende Caeiro, depois de décadas de "políticas desastrosas", os partidos políticos deviam ser capazes de criar consenso pelo menos num tema: a Educação.

Mas é complicado, e o problema começa precisamente no secundário. "Os jovens hoje vivem num presente perpétuo", diz Fernando Silva, professor de Economia na Escola Secundária Rainha D. Leonor, em Lisboa. "São incapazes de parar para pensar. É essa a grande diferença. Antigamente não tinham telemóveis, nem iPods, eram mais calmos, conseguiam estar quietos nas aulas. Agora não." E a relação com o saber também se alterou. "Há 20 anos, se lhes apresentava um problema difícil, era um desafio. Agora desistem. Ou começam a dizer hipóteses, como se fosse um concurso de televisão. A ideia que têm é que fala bem quem fala depressa, quem pensa e por isso demora um pouco mais não é bem visto. Não estão interessados. Não gostam de desafios. Não são obsessivos."

E, no entanto, os jovens são os menos culpados deste estado de coisas. Há as permanentes alterações do sistema de ensino - "as aulas de uma hora e meia, por exemplo, deixam-os saturados" -, as expectativas dos pais, o "bombardeamento diário com informação". Tudo isto conduz a uma dificuldade de concentração. Ler um livro exige muito tempo, por isso lêem os resumos. "Querem tudo logo muito rápido." Tudo o que demore "é chato, é uma seca".

A matéria de Economia que Fernando dá "foi reduzida a metade, porque se considerou que era muito difícil". E isto, para o professor, tem a ver com a questão essencial: a escola está feita para preparar os alunos para os exames, para reduzir ao mínimo os chumbos. Nada é feito para os pôr a pensar. "Quando, no ano passado, alterei um teste para dois ou três dias mais tarde, eles queixaram-se porque iam ter de estudar tudo outra vez. Por dois ou três dias, já não sabiam o que tinham estudado."

A dar aulas há várias décadas, Fernando Silva tem sido um espectador privilegiado das mudanças. "O aluno que hoje tem um 12 antes não conseguiria mais do que um 8, o que tem 18 não teria mais do que um 12 ou 13. Há 20 anos, se pusesse uma pergunta de desenvolvimento num teste, eles escreviam páginas. Agora respondem por tópicos, e se peço um comentário têm grande dificuldade. "Quantas linhas temos de escrever?", perguntam. Argumentar, pensar pela própria cabeça, é muito complicado."

E, em muitos casos, é assim que chegam à universidade. A historiadora e socióloga Maria Filomena Mónica sentiu directamente o desinteresse dos alunos num mestrado que deu na Faculdade de Letras sobre Eça de Queirós. "Estão para ali maçados. E quando lhes disse para lerem um livro perguntaram se não podiam ler só um capítulo." É um erro pensar-se que as universidades vão preparar pessoas para o mercado de trabalho, diz. "O que é preciso é preparar jovens que sejam capazes de reflectir. Quem sabe História percebe a complexidade das sociedades."

Lembra-se quando chegou a Oxford, nos anos 1970, de, ansiosa por começar a trabalhar, ter pedido a um professor que lhe desse alguma coisa para fazer. O professor disse-lhe que lesse três livros e apresentasse um trabalho sobre eles. Quando ela lhe levou o que fizera, ele disse-lhe apenas que já conhecia as ideias daqueles autores, o que estava à espera era de conhecer as ideias dela. Ou seja, pediu-lhe que pensasse pela própria cabeça.

"O curso mais valorizado em Oxford", continua Filomena Mónica, "chama-se Politics, Philosophy and Economics, os alunos são tidos como as mentes mais brilhantes, e vão para bancos, para empresas. São pessoas com capacidade para pensar racionalmente, para distinguir o essencial do acessório."

Em Portugal tem-se desvalorizado os cursos de Letras, e isso "é tornar os seres humanos menos autónomos, incapazes de pensarem no seu próprio destino, no que querem da vida, na melhor forma de organização das sociedades". É torná-los "seres diminuídos na sua própria existência." A tradição foi sempre a de valorizar apenas um curso de Letras: Direito, que Filomena Mónica descreve como "uma espécie de código da estrada que tem de se decorar". E isso prende-se com o facto de vivermos "num Estado baseado em leis, num país em que para tudo precisamos de regulamentos".

Recentemente, conta, viu dados relativos à origem social dos alunos que se estão a inscrever na Universidade de Lisboa e há uma coisa que parece clara: "Há uma enorme diferença de origem social dos pais entre os alunos de Letras e os de Medicina." A conclusão é que "quem tem pais com formação superior tende a não ir para Letras". "Letras é totalmente desprezada pelas elites, e isso é dramático", indigna-se.

Impor Medicina

Os dados são confirmados pela socióloga Maria Manuel Vieira, investigadora na área da Educação e co-coordenadora do Observatório Permanente das Escolas do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. "Verificámos que os alunos da Faculdade de Letras são recrutados entre os níveis mais baixos da população. Daí terem uma necessidade acrescida de equacionarem o mercado de trabalho."

É evidente para esta investigadora que "nos últimos 30 anos tem havido uma valorização crescente da cultura de base tecnológica, que no século XIX era claramente diminuída". E confirma que o que se passa num colégio como o Valsassina passa-se em muitos outros: "No ensino secundário os cursos das áreas de Ciências e Tecnologias são claramente os mais procurados" (63 por cento dos alunos estavam nesse agrupamento, segundo dados de 2005/2006).

O que acontece, segundo os dados recolhidos por Maria Manuel Vieira, é que "os cursos de Ciências e Tecnologias são muitas vezes promovidos pela própria escola e pelos professores quando os alunos são bons nalguma disciplina de Ciências, mesmo que gostem de Humanidades". E também pelos pais, que preferem "impor um curso de Medicina do que um na área das Letras, mesmo que o filho tenha muito jeito para escrever".

Horizontes vastos

Mas este não é um fenómeno apenas português. Nos EUA, Martha Nussbaum, da University of Chicago, lançou recentemente um livro intitulado Not for Profit, precisamente sobre o declínio dos estudos de Letras. E o que diz Nussbaum? "A educação que as sociedades democráticas dão às suas crianças está em plena mudança, e não pensámos o suficiente sobre essa mudança. Ávidas de bons desempenhos económicos, as nações, e os respectivos sistemas educativos, desprezam as competências indispensáveis à sobrevivência dos regimes políticos liberais. Se esta tendência se confirmar, os países do mundo inteiro produzirão em breve gerações de máquinas úteis em vez de cidadãos capazes de pensar por si próprios, de criticar a tradição, de compreender a importância dos sofrimentos e dos sucessos dos outros." E isto, conclui, põe em risco a própria sobrevivência da democracia.

Apresentados todos os argumentos, resta-nos olhar para os números. Serão de facto os cursos de Letras os que produzem mais desempregados? Segundo dados reunidos pelo Gabinete de Planeamento, Avaliação, Estratégia e Relações Internacionais (Gpeari) do Ministério da Ciência e do Ensino Superior, as áreas de estudo com maior número de registo de desempregados com habilitação superior em Junho de 2009 são as Ciências Empresariais (20 por cento de desempregados), seguidas pelas Ciências Sociais e do Comportamento, nomeadamente Psicologia, Economia e Sociologia, (13 por cento), e Engenharia e Técnicas Afins (9 por cento), totalizando no conjunto 42 por cento do total de registos.

É altura de, pela terceira (e última) vez, regressarmos à história de Helena Lopes, que tínhamos deixado num estágio não remunerado. "No ano seguinte, fui para Londres fazer um mestrado em Estudos Chineses na School of Oriental and African Studies [SOAS] da Universidade de Londres, onde encontrei uma realidade muito diferente da de Portugal. O nível de exigência era consideravelmente maior mas também o era o grau de interesse e a qualidade da formação dos alunos." Um exemplo: "Em Portugal acredita-se que sabendo só inglês ou francês se pode estudar o mundo inteiro, mas os meus colegas de países tão diversos como a Polónia ou os Estados Unidos que estudaram política do Médio Oriente ou história do Japão já haviam estudado árabe ou japonês na licenciatura."

Terminado o mestrado com "distinção", "o mesmo vazio instalou-se e a pressão para seguir rapidamente para doutoramento cresceu". Mas Helena acha que é cedo para isso, embora saiba que esse é o seu futuro "mais ou menos próximo". Para já, está em Taiwan, com uma bolsa, a aperfeiçoar os estudos de mandarim. Sabe que o percurso em Portugal será difícil. "Desistir da História seria desistir de um sonho para o qual trabalho afincadamente há anos. Mas é francamente triste constatar que em Portugal não há lugar para todos, nem sequer para os bons - e em áreas como a História parece não haver lugar para ninguém."

Lembramo-nos das palavras de António de Castro Caeiro, o professor de Filosofia: "Se queremos ensinar uma criança, ela deve fazer aquilo de que gosta. É a única forma de se ser competente. Acho dramático ouvir pessoas da minha geração dizer que odeiam o que fazem. O problema de Portugal é também esse: tem demasiada gente a fazer o que não gosta, a pensar nas férias da vida, ou na reforma da vida, para ir ser aquilo que gostaria de ter sido."

Helena não está disposta a ser mais uma a pensar no que gostaria de ter sido. "Se no final deste percurso de formação continuar a não haver lugar em Portugal, sei que algures no mundo haverá", diz. "E os meus horizontes são vastos."

alexandra.prado.coelho@publico.pt

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