Os birmaneses votaram mas a líder da oposição continuava presa em casa

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Eleitores aguardam para votar em Sittwe, no estado de Rakhine Soe Zeya Tun/REUTERS

A pena de Suu Kyi chega ao fim no dia 13. O papel que desempenhará é uma incógnita, assim como a popularidade que mantém

No Ocidente, Aung San Suu Kyi é o rosto da Birmânia. Mas no seu próprio país, milhares nunca ouviram a voz da Nobel da Paz. Ontem, dia de eleições legislativas, o Presidente norte-americano, Barack Obama, pediu a sua "libertação imediata e sem condições".

Há 20 anos que os birmaneses não escolhiam um Parlamento, e a última vez que o fizeram votaram esmagadoramente no partido de Suu Kyi, a Liga Nacional para a Democracia (LND). O Governo militar nunca reconheceu os resultados, e durante todos estes anos a líder da oposição esteve detida, ora na cadeia, ora em prisão domiciliária, onde se encontra desde há sete anos sem interrupções. Agora, se a junta cumprir o que prometeu, a sua libertação será apenas uma questão de dias.

O líder norte-americano afirmou que não se deveria esperar mais tempo. "Os Estados Unidos continuarão a aplicar uma estratégia de pressão e de envolvimento para responder às condições no terreno na Birmânia e às acções das autoridades birmanesas", disse Obama, de visita à Índia. As eleições, que não puderam ser acompanhadas por jornalistas nem observadores estrangeiros, "são tudo menos livres e justas", adiantou.

Se para 29 milhões de birmaneses registados para votar ontem pode ter sido um dia absolutamente fora do comum, para Suu Kyi, de 65 anos, a rotina terá sido a mesma de sempre, com o despertar às 4 da madrugada para as orações, seguidas pelos noticiários dos quatro rádios que tem em casa. De resto, não há contacto com exterior, até porque a junta não pretendia correr riscos.

Testemunhas ouvidas pela agência de notícias Reuters denunciaram uma fraca adesão às urnas e várias irregularidades; e não se sabe quando é que os resultados serão anunciados. As legislativas foram publicitadas como uma transição do regime militar para um poder civil e democrático. Para além das duas câmaras do Parlamento, entram no sufrágio as assembleias regionais: 37 partidos irão disputar 1160 assentos em todo o país.

Mas as fardas estão ainda muito longe de abandonar o cenário político, estando à partida reservados para os militares um quarto dos assentos parlamentares. E mesmo o resto será ocupado por oficiais na reforma (muitos retiraram-se para o efeito), ou pelos partidos pró-junta, como o Partido da Solidariedade e do Desenvolvimento da União (PSDU, que diz ter 18 milhões de membros) e o Partido da Unidade Nacional (PUN).

Caberá depois ao Parlamento escolher o Presidente, civil, e vários analistas prevêem que a escolha recaia sobre o generalíssimo Than Shwe, actual líder da junta militar, que tem guardado segredo sobre o seu futuro.

O fim da Liga?

Ainda que observadores e líderes ocidentais tenham denunciado esta eleição como uma farsa, é possível que com ela uma ou outra voz da oposição se possa fazer ouvir na assembleia. E é por esta razão que a decisão da Liga de boicotar as legislativas foi contestada dentro e fora do partido.

A LND teve de optar entre expulsar Suu Kyi e aceitar a anulação dos resultados de 1990, ou não entrar na corrida. Optou pela última.

O boicote teve duas consequências imediatas: a LND dissolveu-se e com isto formou-se a Força Democrática Nacional (FDN). "Temos um grande respeito e uma grande admiração por ela, porque se sacrificou pelo país, o povo e é um ícone internacional", comentou à AFP ainda antes do escrutínio Nay Ye Ba Swe, do partido. "Mas achamos que, ao boicotar as eleições, estamos a penalizar as vozes democráticas."

Há quem diga, como referia a BBC, que Suu Kyi enfraqueceu com isto a oposição, numa altura em que nada seria melhor do que estar unida.

Win Tin, que fundou o partido com a Nobel e passou 19 anos preso na cadeia de Insein, disse à estação britânica que os birmaneses estão confusos com a cisão e que não há agora forças da oposição capazes de vencer, como a Liga venceu há 20 anos.

O analista birmanês exilado na Tailândia Aung Naing Oo considera que Suu Kyi está agora isolada. "Nunca duvidei da sua integridade, da sua honestidade, ou da sua coragem. Mas duvidei sempre da sua estratégia. Não estou certo que tenha uma."

A carismática Suu Kyi acabou por se tornar na grande ausente das eleições e ninguém sabe até que ponto poderá ser ainda uma alternativa. "Os militares isolaram efectivamente Suu Kyi", comentou à Associated Press Muang Zarni, dissidente exilado e investigador na London School of Economics. "Por isso, nesse sentido os militares venceram. Mas as lutas políticas não são apenas corridas de 100 metros."

A BBC referia que a sua recusa em sair do país, mesmo quando pôde fazê-lo, permitiu que a Birmânia permanecesse na agenda internacional. Mas a filha do fundador da nação tornou-se ao longo do tempo numa espécie de "fantasma político", a pairar na sua casa junto a um lago de Rangum.

Uma idealista

"É muito mais uma idealista do que uma política astuta... pode ser criticada por não ter trazido uma geração jovem ao seu partido", comentou à BBC Justin Wintle, autor da biografia Perfect Hostage.

O seu apoio às sanções contra a Birmânia tem sido mais nocivo para a população (um terço vive abaixo do limiar da pobreza) do que para a junta, denunciam alguns observadores.

O mercado começa a abrir, com algumas privatizações e a exportação dos seus recursos naturais (sobretudo gás e petróleo) para os países vizinhos. As reformas económicas poderão ajudar a formar uma nova classe média, que por seu lado fará pressão para mais abertura política, esperam alguns analistas.

"Para a oposição democrática, incluindo Aung San Suu Kyi, é vital que tenham em conta as mudanças gigantescas que estão a ocorrer nas relações económicas da Birmânia com o resto da Ásia", aconselha o historiador Thant Myint-U.

A pena de Suu Kyi chega formalmente ao fim no dia 13. Será uma incógnita o papel que desempenhará, caso fique realmente em liberdade (vários analistas consideram que sim, já que o regime estará empenhado em enviar sinais de boa vontade).

Para o analista Muang Zardari, "desde que Suu Kyi caminhe pelas ruas das cidades birmanesas, conseguirá mobilizar a opinião pública contra o regime... Eles têm medo da sua popularidade. Quando se junta Aung San Suu Kyi com o descontentamento generalizado, tem-se uma situação muito explosiva".

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