O primeiro meio século de um milagre médico do século XX

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Alzira, Rosa e Sandra: em três gerações, a maternidade mudou NELSON GARRIDO

A 9 de Maio de 1960, as autoridades de saúde dos EUA aprovaram o uso do primeiro contraceptivo oral feminino, vulgo "a" pílula.

Claudia Goldin e Lawrence Katz, economistas da Universidade de Harvard e especialistas da evolução do trabalho feminino ao longo do século XX, são peremptórios. Já o escreveram há dez anos, por ocasião do 40.º aniversário da pílula, na revista do Milken Institute (um think tank norte-americano de economia): a pílula é um "milagre médico".

Nesse texto, os cientistas interrogam-se: "Podemos dizer que a pílula teve um papel-chave na decisão de milhões de mulheres de investirem na sua formação profissional e ter uma carreira?" E logo a seguir: "Para nós, a resposta é um rotundo "sim"."

Claro que também estavam criadas outras condições para isso acontecer - nos anos 1960, diversos movimentos sociais contribuíram para a women"s lib. Mas isso não os impede de afirmar que foi a pílula que "mudou radicalmente a vida das mulheres." E não estão a falar sem provas: em 2002, mostraram que havia uma clara relação, a partir do início dos anos 1970, entre a legalização total do acesso à pílula pelos diversos estados norte-americanos e o crescente acesso das mulheres desses estados aos estudos universitários. Por exemplo, enquanto apenas 10 por cento dos estudantes de Direito do primeiro ano em 1970 eram mulheres, em 1980 já eram 36 por cento. O "poder da pílula" (expressão usada no título do seu estudo) esteve para as mulheres como o flower power esteve para o movimento hippie.

Contactada telefonicamente pelo PÚBLICO, Claudia Goldin reitera a sua convicção: "A pílula teve mesmo muito impacto." A 9 de Maio de 1960, as autoridades de saúde norte-americanas aprovaram o uso do primeiro contraceptivo oral feminino, vulgo "a" pílula. Os pequenos comprimidos hormonais que mais de 200 milhões de mulheres no mundo já tomaram diariamente já foram acusados de fomentar a promiscuidade sexual e de provocar cancro da mama. Mas foi pela positiva que mereceu as suas credenciais. "Nós estudámos o comportamento das mulheres mais novas e mostrámos que, a partir dos anos 1970, quando o uso da pílula chegou a um maior número de jovens, elas começaram a casar mais tarde e a adquirir mais frequentemente competências profissionais."

Um invento paradoxal

Ironia do destino, a pílula foi inventada nos anos 1950 por dois cientistas que tinham objectivos aparentemente opostos. Por um lado, Gregory Pincus estava empenhado em conseguir bloquear quimicamente a ovulação nas mulheres. Ex-professor de Harvard, tinha nos anos 1930 sido um precursor da fertilização in vitro e descobrira que a hormona feminina progesterona bloqueava a ovulação em diversos animais. Por outro lado, John Rock, conhecido especialista de infertilidade, queria desenvolver um tratamento hormonal para devolver a fertilidade a mulheres estéreis. Os objectivos parecem contraditórios, mas não são: promover e impedir uma gravidez podem ser vistos como duas faces da mesma moeda.

Esta colaboração - inspirada pela enfermeira e activista Margaret Sanger e financiada pela fortuna de Katharine Dexter McCormick, a segunda mulher a diplomar-se pelo Massachussets Institute of Technology - culminou, em 1955, com o desenvolvimento de uma formulação hormonal oral destinada às mulheres, que seria aprovada em 1957 para tratar "perturbações femininas" como a irregularidade menstrual.

Mas foi a Alemanha Ocidental, logo em 1956, o primeiro país a comercializar a pílula como método anticonceptivo - e inaugurando assim o primeiro medicamento da história, como faz notar um extenso artigo numa recente edição da revista Time, a ser receitado a pessoas que não sofriam de doença alguma.

Nos EUA, a aprovação da sua utilização para fins de controlo da natalidade pela Food and Drug Administration, a agência reguladora dos medicamentos, sob o nome de Enovid, dos laboratórios Searle, só aconteceria a 9 de Maio de 1960. Mas a pílula permaneceria ilegal em grande parte do país durante vários anos. Seria preciso esperar até 1965 para que o Supremo Tribunal decretasse que o direito à privacidade (e daí, o acesso à pílula) estava consagrado na Constituição norte-americana, obrigando os 50 Estados a legalizá-la. Mesmo assim, no início só podia ser receitada a mulheres casadas... e foi apenas em 1972 que as mulheres solteiras ganharam também esse direito.

A fama chegou depressa e o seu impacto nunca deixou de ser reconhecido: a revista Time fez capa com ela logo em Abril de 1967. E, no fim de 1999, a revista The Economist escolheu-a como o maior avanço científico e tecnológico do século XX.

Altos e baixos

Desde o Enovid, a composição da pílula foi modificada: diminuíram-se as doses de hormonas e acrescentou-se à progesterona a segunda principal hormona feminina: o estrogénio. A composição actual da pílula possui muito menos efeitos indesejáveis do que a formulação inicial.

Nos anos 1970, contudo, um estudo concluiu que a pílula fazia aumentar o risco de contrair cancro da mama. Mas há apenas umas semanas, isso foi desmentido no maior estudo de sempre sobre o tema, da autoria de Philip Hannaford e colegas, da Universidade de Aberdeen, no Reino Unido, num artigo no British Medical Journal. Os cientistas, que acompanharam 46 mil mulheres britânicas ao longo de 40 anos, concluem que a pílula poderá mesmo contribuir para aumentar a longevidade das mulheres.

Mas como nem tudo são rosas, um outro estudo vem agora dizer que a pílula pode provocar disfunções sexuais nas suas utilizadoras. Porém, os autores deste estudo - Lisa-Maria Wallwiener, da Universidade de Heidelberg, e colegas - que acabam de publicar os seus resultados no Journal of Sexual Medicine, admitem que eles ainda precisam de ser confirmados.

Hoje existem também pílulas abortivas e pílulas do dia seguinte. E há laboratórios a tentar desenvolver formas de contracepção masculina. Mas nada supera "a" pílula original, que tem características que a tornam única: não parece ter efeitos prejudiciais para a saúde, é o método mais fiável quando devidamente utilizada, é fácil de usar e permite que sejam as mulheres a controlar a sua fertilidade.

Uma última ironia: o aniversário da pílula cai por acaso no Dia da Mãe norte-americano. "Não há melhor maneira de celebrar o ser-se mãe", diz Terry O"Neill, da National Organization for Women, a maior organização feminista dos EUA, citada pela AFP, "do que celebrar o ser-se mãe por escolha própria. Podemos ter orgulho pelo facto de as mulheres terem hoje o direito legal de escolherem ser mães."

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