O terceiro sexo de Juchitán

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Um Shaul Schwarz/Corbis

Um santo vinha com um saco cheio de gays, a distribuí-los por vários lugares. Em Juchitán o saco rasgou-se, eles caíram e ficaram todos ali. Esta é a lenda da cidade onde os gays são uma instituição, uma bênção e uma festa. Mas a violência está a chegar. Por Alexandra Lucas Coelho, em Juchitán

Felina é presidente das Autênticas Intrépidas Buscadoras del Peligro.

Saia rodada e tesoura na mão, ei-la no seu salão de Juchitán, Sul do México. Dizemos ela, como ela diz, porque é preciso dizer algo, mas na gramática latina não há pronome para Felina. Ela é o terceiro sexo de Juchitán.

Juchitán: uma cidadezinha onde o ar pica, os porcos atravessam a rua, e o mar é cor de barro. O centro tem asfalto, mas com passeios altos, porque não há drenagem. À volta é terra batida com palmeiras e animais. Faz sempre tanto calor que toda a gente dorme em redes, mesmo que tenha camas. É tropical, ruidoso, sujo, colorido. Há pescadores a remendarem redes. Há mulheres a bordarem flores. As mulheres usam flores na cabeça. As mulheres e os muxes.

Em todo o mundo haverá terceiros sexos. O que acontece em Juchitán é que o terceiro sexo está no centro. É uma instituição, uma bênção, uma festa. E tem uma palavra só sua: muxe. Os muxes de Juchitán são homens com uma parte de mulher, mas não são mulheres.

Por exemplo, Felina, madeixas louras, boca retocada, verniz, nunca faria uma mudança de sexo: "A mulher está aqui, o homem está ali, e o muxe está no meio. Não tenho razões para querer ser mulher. Há tantas mulheres, eu seria uma mais. Sinto-me bem no meio, esse é o meu espaço. Posso entrar onde as mulheres não podem e onde os homens não podem. Tenho a liberdade de ver um lado e outro, e juntar. Admiro as mulheres, mas estou consciente do que sou: sou um muxe."

De onde vem este nome? Há quem sustente que é uma corruptela do espanhol mujer e há quem sustente que é uma palavra zapoteca, porque os habitantes de Juchitán são, em maioria, índios zapotecas.

Cabelos escuros, fortes como crinas, mas luminosos: mirem só os das meninas que acabam de entrar no salão Felina Estética Unisex. Meninas um pouco pançudas como tantas meninas e meninos mexicanos, já a caminho de serem gordos pelo mal que comem, mas com cabelos de princesa quase até ao rabo. O pai e a mãe trazem-nas a Felina para que fiquem mais frescas, mais leves, neste calor impossível.

Felina sorri o seu sorriso de diva-em-traje-de-trabalho. O trabalho dela é a tesoura, e vem gente de toda a cidade pôr-lhe a cabeça nas mãos. Senta a primeira menina na cadeira e entrança-lhe a cabeleira para a mãe a poder guardar. A trança fica tão grossa que não se consegue cortar de um golpe. A tesoura avança a ranger, quase dói a quem olha, tão belo o cabelo.

Mas a menina zapoteca, nem ai. Só torce o pescoço para ver Felina dar a trança à mãe, que a pousa em cima da mesa com todo o cuidado. Depois volta a olhar o espelho. Felina borrifa-lhe a cabeça, abre outra vez a tesoura, zap-zap-zap, e em cinco minutos sai uma menina nova, a sacudir o cabelo molhado. Depois a irmã, idem, outra trança formidável.

À esquerda há um tronco nu de manequim, entre um cartaz com preservativos e folhetos dos Beatles e de Marilyn Manson. Alguém os terá oferecido?

Felina não dá ares de anos 60, muito menos de gótica. É uma diva natural: tão caseira como glamorosa. Aqui no salão trata-se de trabalhar, mas no YouTube pode ser vista de juchiteca em festa: veludos, toucados, mantos, lantejoulas.

No guarda-roupa de Frida Khalo, que é toda uma arca do esplendor mexicano, muitas das melhores peças são juchitecas, e ela sabia arranjar o cabelo à juchiteca, com uma flor.

"Os homens gostam de mulheres", remata Felina. "Portanto se tens algo de mulher chamas mais a atenção. Por aí os conquistamos." E, em Juchitán, a maioria dos muxes trabalha mesmo com roupa de mulher: "As que trabalham no mercado, na estética, as que são artesãs, bordadeiras, costureiras. Só as que são professoras, funcionárias públicas, médicas, não se podem vestir de mulher no trabalho."

Ulisses, o advogado

É o caso de Ulisses Toledo Santiago, 36 anos. Ao longe, ninguém o distingue de um homem, porque está de jeans, t-shirt branca e chinelos, aqui sentado nuns degraus, num daqueles passeios altos por causa da lama. Mas ao perto, não é difícil imaginá-lo na festa anual das Autênticas Intrépidas Buscadoras del Peligro. Por causa do anel de prata, das sobrancelhas finas, da cara macia de quem usa cremes e não tem barba.

Aqui nasceu, quinto de sete irmãos. "Desde criança que sei que sou muxe, e a minha mamã contente, feliz." A mãe fazia tortilhas para fora, o pai trabalhava para uma empresa. Desde que se reformaram, Ulisses cuida deles. É uma das essências de um muxe. "Agora mantenho os meus papás, vivo com eles e com uma irmã." E nunca sairá de casa.

"É muito comum que o muxe habite com a família. Aquele que não se casa dá os seus cuidados ao seu papá e à sua mamã. É uma bênção ter um muxe na família, porque um muxe trabalha sempre, nunca morrerá de fome e cuidará dos pais até ao último dia. Pode ter a sua vida amorosa, como qualquer ser humano, e vive com os seus papás."

Mas acontece haver muxes que se tornam pais de família. "Casam com mulheres e têm filhos, e elas sabem que eles são muxes. Porque há muxes activos e passivos, e os activos podem escolher estar com uma mulher."

Em suma, no estado da Cidade do México, os gay podem casar-se, e continuam a fazer parte das margens. Em Juchitán não podem casar-se e "desempenham um papel muito importante na sociedade", diz Ulisses. "Há muxes modelos de alta-costura e muxes donos de grandes cabeleireiros. Há muxes que pintam, que fazem carros alegóricos e muxes profissionais liberais. Os muxes em Juchitán têm liberdade de expressão tal qual são, porque a sociedade os aceita."

O clímax dessa liberdade é a festa anual, em Novembro. Se há cidades famosas por um clube desportivo, Juchitán é famosa pelo seu clube de muxes, as Autênticas Intrépidas Buscadoras del Peligro.

"É uma noite de fantasia, de felicidade, e toda a gente a apoia, todas as autoridades", resume Ulisses. "Vêm gays do estrangeiro." Juchitán transborda, deixa de ser a cidade-aldeia em que toda a gente parece conhecer-se. Por exemplo, desde que estamos aqui sentados este advogado não parou de ser cumprimentado.

Nunca quis vestir-se de mulher diariamente?

"Como estudei, nas aulas não podia, e agora estou no tribunal. Mas também não tenho intenção. Os muxes podem vestir-se como quiserem, desde que respeitem a sociedade. A roupa não tira nada a ninguém."

E de onde vem isto dos muxes? Porquê em Juchitán? A lenda diz que o santo patrono da cidade, Vicente Ferrer, vinha com um saco cheio de gays, a distribuí-los por muitos lugares, e, quando chegou a Juchitán, o saco rompeu-se e os gays caíram todos aqui. Mas fora a lenda, tal celebração dos muxes num país tão machista terá a ver com uma costela matriarcal que alguns investigadores detectam em Juchitán?

Ulisses acha que sim. "Aqui, as mulheres trabalham, estão acostumadas a ajudar no sustento da casa, desempenham um papel na sociedade, estão na política, nas dependências do governo. As mulheres de Juchitán sempre nos ensinaram a trabalhar e a ter oportunidades."

As mulheres nguiu

"Para a minha geração é muito normal homens vestidos de mulher", diz Irma Pineda, 35 anos, escritora e professora, sentada num dos dois cafés modernos de Juchitán. "Mas o meu avô conta que sempre houve muxes aqui, simplesmente não se vestiam de mulher."

Também há uma palavra zapoteca para as mulheres que gostam de mulheres: nguiu. Ao contrário dos muxe, "a maioria das nguiu vive com a namorada". E são muitas em Juchitán, diz Irma. "Mas exibem-se menos. Fazem menos ruído." As nguiu são "motoristas, operárias de construção, reproduzem todos os sinais de masculinidade e machismo". Incluindo terem namoradas muito femininas. Incluindo mesmo cumprirem a tradição local do "rapto", segundo a qual dois namorados se põem de acordo para o rapaz raptar a rapariga, a penetrar com o dedo, e depois exibir o sangue que comprova a virgindade. A partir daí, considera-se que são noivos. "As nguiu também raptam as suas namoradas, o que inclui o ritual de virgindade."

Como são menos visíveis, também estarão menos expostas a um fenómeno novo, a violência sobre os muxes.

"Este ano assassinaram aqui um muxe e no ano passado três. Eram prostitutas, mas foram assassinadas com muita violência."

Aqui é o Sul, o Istmo, aquele pedacinho onde o México é mais estreito - e já se sente a violência do narco. "Está cada vez mais presente", diz Irma. "Estão a sequestrar gente, sobretudo quem tem negócios e dinheiro. Ainda não é como Juárez, mas está presente até nos jovens que estão a terminar o secundário e aspiram a ser "sicários"." Assassinos por conta.

Irma dá aulas a professores de liceu, e ouve isto à sua volta.

Nada que Felina também não sinta do seu salão. "A violência alcançou-nos. Antigamente não havia sequestros e tantas coisas que agora existem nesta parte do México. Pelos problemas do Norte, os assaltantes vêm para o Sul, e é um problema grande. Pelo poder, pelo controlo dos grupos que se dedicam ao narcotráfico. E os jovens vêem a violência em todas as partes do mundo, vemo-la na Internet, na televisão, em tudo o que nos chega, e ao ver isso ficamos imersos nessas questões."

Juchitán tem fama de valente. No século XIX correu com as invasões francesas, e, por isso, recentemente, deram-lhe o título oficial de Heróica Cidade de Juchitán de Zaragoza, com aquele amor mexicano aos nomes grandiosos.

Mas até em Juchitán o medo avança, arrastando o medo dos imigrantes. "Creio que ainda podemos sair à rua de noite", diz Felina. "Mas já não é como antes, que podíamos ir a todos os bairros. Sim, sais, mas tens de ter mais cuidado, há muita gente de fora, os que imigram têm de passar por aqui, muitos ficam pelo caminho, e são gente que não conhecemos, que fugiram da sua terra."

Entretanto, porque no México a festa é também o melhor antídoto, prosseguem os preparativos para a próxima celebração das Autênticas Intrépidas Buscadoras del Peligro. Três-dias-três, dias e noites.

"Primeiro, há uma missa de manhã. No dia seguinte, o baile, com a coroação, e no outro dia percorremos a cidade em carros alegóricos, com a rainha." Felina está com 40 anos, mas aos 25, claro, não era presidente: foi rainha.

AmanhãDebaixo do vulcão em Oaxaca

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