A Europa e o "esmagamento" das médias potências (I)

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Portugal precisa de jogar as suas pedras e de as jogar nos tabuleiros em que os seus interesses podem afirmar-se

1. Enquanto se vive a crise financeira e a sua interminável onda de repercussões, enquanto se esboçam e assinam tratados de vezo aparentemente técnico, enquanto se frequentam cimeiras que nos afiançam a altura ou a alteza da mais recente retoma, tem-se deixado na penumbra a reflexão sobre o equilíbrio institucional e a balança dos poderes nacionais na União Europeia. E, de um modo subtil e deslizante, por entre estados de necessidade e estudos de conveniência, o reequilíbrio de poder vai sendo desenhado e calibrado no frenesim mudo dos corredores. Muita coisa se está a passar, muitos cenários estão a ser equacionados, muitos relatórios e posições estão a ser produzidos. Portugal precisa de jogar as suas pedras e de as jogar nos tabuleiros em que os seus interesses podem afirmar-se.

2. A política europeia desenrola-se hoje em diferentes palcos e dimensões várias. A ideia de que a política europeia se faz basicamente à mesa das instituições europeias e, em especial, da Comissão e do Conselho poderia ser válida para uma União com 12 Estados. Mas já não tem sentido numa realidade política que acolhe como membros 27 países. Para lá da relação estreita e necessária com as instituições (a que agora se soma, indubitavelmente, o Parlamento Europeu), hoje é indispensável identificar "redes de Estados" com os quais possamos inventariar problemas afins e ensaiar posições comuns. De certa maneira, assumir esta "institucionalização" de redes de contactos é aceitar o regresso em força da diplomacia. Na complexidade das relações a 27, é fundamental fazer o trabalho de casa e criar ligas de solidariedade que possam ter peso na decisão final. Esse trabalho exige uma activíssima diplomacia "intra-europeia", em que a dança e o bailado das pequenas, médias e grandes potências voltaram ao trânsito habitual. Essa política externa tem também traços novos: exige uma especial articulação das nossas embaixadas na Europa com a Representação Permanente em Bruxelas, abre-se a uma diplomacia parlamentar desenvolvida pela Assembleia da República com os restantes parlamentos nacionais e o Parlamento Europeu, pode implicar ou propiciar outras plataformas de diplomacia paralela. Uma coisa é certa: a política europeia não é um canal de bitola única entre o Estado e a União; requer, ao invés, teias múltiplas de contactos com os restantes Estados-membros.

3. Portugal tem de dar prioridade a, pelo menos, três redes. Uma - já há muito interiorizada, embora com novidades assinaláveis depois dos últimos alargamentos - é a rede dos Estados da coesão, que são beneficiários líquidos das políticas de "solidariedade" europeia. A outra, tornada manifesta com a crise das dívidas soberanas, é justamente a liga dos países em dificuldades, que até aqui não têm feito mais do que fugir uns dos outros. Muito próxima desta - em grande parte coincidente com ela - estaria a possível rede dos países do Sul da Europa, com interesses geoestratégicos comuns e com culturas políticas chegadas. Uma terceira rede, muito esquecida, mas decisiva para o futuro "constitucional" da União, vem a ser a que agrega os Estados de média dimensão, algures entre os 7 e os 12 milhões de habitantes. O cultivo e desenvolvimento destas redes e, bem assim, da constância dos interesses de que venham a ser portadoras em nada exclui - bem pelo contrário - a geometria variável das alianças de cada circunstância. E obviamente em nada prejudica o trabalho persistente de relacionamento directo e imediato com as instituições europeias e respectivos órgãos. Todas as frentes têm de coexistir; todas as frentes são úteis e necessárias

4. Vem isto a propósito do relatório Duff sobre a reforma do procedimento eleitoral para o Parlamento Europeu, que, há cerca de dois anos, anda pelas bancadas parlamentares da Comissão dos Assuntos Constitucionais. Esse relatório, de que muito poucos falam, pretende alterar as regras eleitorais do Parlamento Europeu. É de tal modo polémico que já mudou de versão várias vezes, já esteve agendado para votação em plenário e foi retirado da agenda, já deu origem a mudanças radicais de posição no seio dos partidos europeus e de "delegações nacionais" dentro de partidos europeus. São três as grandes inovações do mesmo.

Primeira, razoavelmente pacífica, a mudança da data das eleições de Junho para Maio. Supostamente, essa mudança teria a vantagem de permitir a formação da Comissão, depois de cada acto eleitoral, ainda antes das férias de Verão. Atenta a complexidade dos processos de entrada em funções de 2004 e, em particular, de 2009, talvez a sugestão esteja eivada de algum optimismo.

Segunda, a da criação de um círculo eleitoral europeu único para eleger 25 eurodeputados (a chamada lista "transnacional"). É a mais controversa das propostas avançadas e provavelmente levará à não aprovação do relatório. Daria azo a que o cabeça de lista fosse o candidato a presidente da Comissão, que passaria a ser directamente eleito pelos povos europeus, mas pode originar um grave desequilíbrio na lógica de representação nacional.

Terceira, de longe a mais importante para nós, é a proposta de fixação de uma fórmula matemática que calcule a distribuição de lugares no Parlamento Europeu. Todas as fórmulas ensaiadas têm até agora o condão de diminuir substancialmente o peso dos Estados médios, entre eles Portugal, que perderiam sempre entre 3 e 4 deputados. Vista a argumentação mobilizada, os apoios recrutados e a impressionante resiliência do relatório (que ninguém consegue afastar), é evidente uma estratégia de "debilitação" dos Estados médios. É justamente sobre o alcance dessa alteração, no actual contexto político e constitucional da União, que, salvo alguma emergência, continuarei a escrever para a semana.

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