Os países de língua portuguesa estão a lidar com a violência doméstica

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As juristas ontem num almoço no Porto nelson garrido

Um professor de Direito, uma médica cardiologista, uma espiral de violência. Eis o ponto de partida proposto pela Federação Internacional de Mulheres de Carreiras Jurídicas no encontro que junta hoje no Porto mulheres de duas dezenas de países. A violência contra as mulheres é "uma questão jurídica emergente" e isso nota-se nos países de língua oficial portuguesa. Por Ana Cristina Pereira

No conjunto de países de língua oficial portuguesa, só a Guiné-Bissau não pune, de forma específica, a violência familiar. É o que se depreende de um exercício que a Federação Internacional de Mulheres de Carreiras Jurídicas (FIFCJ) propôs a membros de 20 países hoje reunidos no Tribunal da Relação do Porto.

Um caso hipotético seguiu para a caixa de correio electrónico de cada membro daquela organização não-governamental fundada em 1928, com o propósito de lutar pela erradicação de todas as formas de discriminação contra as mulheres. As respostas foram chegando a Teresa Féria, que preside àquela estrutura.

Luísa vivia com o filho, de dez anos. Médica cardiologista, trabalhava longas horas numa clínica. João era professor de Direito. Conheceram-se nas férias. Apaixonaram-se. Juntaram-se. Ele perguntava-lhe sempre onde estivera e com quem. Amiúde, mandava-lhe mensagens a pedir notícias do seu paradeiro. Só que ela não via naquilo uma forma de controlo. Pensava: "Ele é muito atento, não consegue passar sem mim."

Como a universidade não lhe renovou o contrato, João passou a estar mais tempo em casa, a trabalhar na tese de doutoramento. Pareceu-lhes ajuizado reduzir o horário da empregada. Ele desempenharia mais algumas tarefas domésticas, ela pagaria as despesas da casa. Só que, em poucos meses, ele foi tomado pela desconfiança. Recriminava-a por chegar tarde.

Afastava-se cada vez mais. Deixou de sair com ela e com os amigos dela. Quando ela saía com a melhor amiga, ele trancava a porta do quarto. Nem lhe tocava na cama. Ela aproximava-se, ele ficava imóvel. Ela tentava beijá-lo, ele desviava o rosto. Dizia-lhe: "Eu não sei o que é que fizeste durante todo o dia".

Criticava-a em frente ao filho. Certa ocasião, foram jantar a casa de amigos comuns e ele irritou-se: "Cala-te! Não paras de falar e só dizes disparates! És insuportável!" Nessa noite, Luísa dormiu no quarto do miúdo. No dia seguinte, ele invadiu-lhe o consultório: "Quero ver o homem com quem te divertes!" Ela atendia um novo paciente, ordenou-lhe que saísse. Ele insultou-a, atirou-lhe uma jarra à cabeça. O paciente saiu, assustado. Os colegas acorreram. Ele gritava: "Ela só vem aqui para se encontrar com homens!"

Naquele dia, Luísa decidiu pôr um ponto final na relação. Foi buscar o filho ao colégio e refugiou-se em casa da melhor amiga. Pela manhã, foi buscar algumas coisas suas e da criança. Não pôde entrar. A fechadura fora mudada.

Em Portugal, João cometeu um crime de violência doméstica, punido com um a cinco anos de prisão. No Brasil, praticou um crime de lesão corporal, que o país pune com maior severidade quando acontece no ambiente familiar (de três meses a um ano passa para três meses a três anos), e outro de injúria (até seis meses).

Se vivesse em São Tomé, também seria autor de um crime de violência doméstica: "Quem, abusando da convivência doméstica e familiar, injuriar, caluniar e difamar o outro, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, dirigindo-lhe palavras ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três anos." Em Cabo Verde, seria acusado de Violência Baseada no Género, "aplicável a todas as situações de violência que ponham em causa a efectiva igualdade de género", especialmente quando há relações de intimidade.

Teresa Féria chama a atenção para uma particularidade "interessante" na maior parte dos países africanos de língua portuguesa: definem com detalhe as diversas formas de violência, o que facilita a tarefa de quem aplica a lei.

Em Angola, João praticou violência psicológica ("qualquer conduta que cause dano emocional, diminuição de auto-estima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento psicossocial"), violência verbal ("utilização de impropérios, acompanhados ou não de gestos ofensivos, que tenham como finalidade humilhar e desconsiderar a vítima, configurando calúnia, difamação ou injúria"), violência física (ofensa à "integridade ou saúde corporal") e violência patrimonial ("a retenção, a subtracção, a destruição parcial ou total dos objectos, documentos, instrumentos de trabalho, bens móveis ou imóveis, valores de direitos da vitima"). Incorre numa pena de prisão de dois a oito anos.

Em Moçambique, a Lei da Violência Doméstica praticada contra a Mulher não só descreve as várias formas como estipula penas distintas. A violência física simples (um a seis meses de prisão) tem uma pena semelhante à violência patrimonial (até seis meses) e inferior à violência psicológica (seis meses a um ano).

Se estivesse em Timor, João não enfrentaria a justiça. Em Timor, difamação ou injúria não constituem crime. E no crime de violência doméstica cabem apenas os maus tratos a incapaz, os maus tratos a cônjuge e os maus tratos a menor. Na Guiné-Bissau, discutia-se uma lei de Violência Doméstica antes do golpe militar - que, de resto, impede a representante daquele país, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de estar, hoje, na conferência Direito Comparado Relativamente à Violência contra as Mulheres na Família.

"A violência contra as mulheres e, em concreto, a violência exercida no seio da família, é uma questão jurídica emergente", observa Teresa Féria, que há anos dirige a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ). "Ocupa e preocupa os diferentes ordenamentos jurídicos. Há algumas dezenas de anos, não era sequer reconhecida como questão legal. O Direito só reconhecia legitimidade ao Estado para intervir na vida familiar quando estavam em causa os direitos patrimoniais."

O livro Ousar Vencer a Violência Doméstica, acessível na página electrónica da APMJ, recupera alguma dessa História da humanidade. Na Flandres do século XIV, havia uma regra que à magistrada parece esclarecedora do quanto o mundo mudou: "O marido pode bater na mulher, cortá-la de alto a baixo e aquecer os pés no seu sangue desde que a torne a coser e ela sobreviva." Em Inglaterra, também: o marido podia bater na mulher desde que com uma vergasta de espessura não superior à do seu dedo polegar. Em Portugal, as Ordenações Filipinas permitiam "o castigo moderado, a submissão a cárcere privado e, claro, a morte em caso de adultério".

"Não se reconhecia que a violência doméstica era uma questão de direitos humanos", enfatiza a juíza. "Isso foi imposto por nós, mulheres, nos vários movimentos. Foi um caminho longo e penoso. Não chegámos ao fim. Temos de continuar a trilhá-lo." Nada lhe parece adquirido. "Veja-se em quantos países a religião assume um papel importante na organização do Estado, em que as mulheres podem ser submetidas a tortura. Não podemos dar nada como certo. Temos de defender o que temos. Defender é alargar." E é com esse objectivo que mulheres de 20 países dedicam o dia de hoje à análise das "diferentes soluções jurídicas vigentes de molde a verificar quais as mais adequadas a prevenir e punir aquele tipo de crime". Em Portugal parece-lhe exemplar o facto de ser possível adiantar as indemnizações devidas às vítimas de crimes violentos.

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