Uma aldeia quase portuguesa nos Alpes

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Denis Balibouse / Reuters

Há uma máquina turística montada no sopé do Monte Matterhorn, símbolo da Suíça e a maior e mais elevada área de esqui de Verão da Europa. Movem-na muitos estrangeiros. A maior parte chegou de Portugal ao longo dos últimos 30 anos.

Uma alegria. Mal saí da estação, vi o Matterhorn, que os franceses chamam Mont Cervin e os italianos Monte Cervina. Era como se tivesse entrado num lugar da minha infância - casas de madeira escurecidas rodeadas de montanhas escarpadas, uma delas em forma de chocolate Toblerone.

Não encontrei a Heidi. Aquilo não era Bündner Herrschaft, onde a escritora Johanna Spyri passou uma férias e achou inspiração para a história da menina órfã, criada pela detestável tia até ser entregue ao avô carrancudo e, afinal, afável. Mas cedo me deparei com a algazarra de crianças portuguesas que aproveitam a pausa escolar para partilhar um carrinho de rolamentos.

Na estação de comboios, aguardava-me Rosa do Vale, da Associação Lusófona de Zermatt, e o marido, Rui, com uma amabilidade inesperada. A beleza do lugar não os arrebatava. Talvez por terem vindo há muito trabalhar, como tantos compatriotas ocupados a dar boas vindas, levar malas, fazer camas ou a atender clientes de lojas, cafés, restaurantes, bares ou discotecas.

Quem passa o ano aqui, a 1620 metros de altitude, entre 38 picos, pode sentir-se esmagado pelo isolamento. "Não há nada para fazer", comentava a mulher, elegante nos seus 40 anos. Tirando esqui, snowboard, parapente, rafting, rappel, sledding, escalada, corta-mato, caminhada...

Mais gente fala português nas épocas altas: Dezembro a Abril e Julho, Agosto e Setembro. Estrangeiros garantem o funcionamento da estância, fazendo trabalhos que os suíços preferem dispensar. "Oitenta por cento vêm de Portugal", declarou há meses o presidente da comuna de Zermatt, Christof Bürgin, citado pelo site Swissinfo.

Há quem trabalhe o ano inteiro, como Rui do Vale, que é ajudante de cozinha no Grampi"s, um pub muito popular entre alpinistas. Há quem tenha um trabalho de Inverno e um trabalho de Verão, como Bruno Marques, o presidente da Associação Lusófona de Zermatt, que alterna o serviço de mesa no Hotel Alex, um quatro estrelas, com o de servente de pedreiro. E quem espere pelo regresso da azáfama, aqui ou lá na terra, apesar de a Suíça pagar menos subsídio de desemprego a quem parte.

Subi as estreitas ruas a admirar as velhas casas de madeira suspensas em pilares de pedra e, de repente, percebi que estava a usá-las para brincar às escondidas com o Matterhorn. Como seria escalá-lo? Hum... Precisaria de uma excelente condição física, de uma enorme experiência, de pelo menos oito a dez dias de caminhadas a grande altitude para me ambientar...

Talvez o meu pensamento delirante se tenha tornado perceptível para os meus guias, num momento Ally McBeal (quem se lembra da série sobre a advogada que procurava o homem perfeito e que sonhava acordada?). Ainda a caminho do meu modesto hotel, o Derby, na Bahnhofstrasse, a principal artéria comercial de Zermatt, o casal mostrou-me o cemitério dos alpinistas. Lápides antigas foram restauradas e podem ser vistas junto à Igreja de São Maurício, onde também se ergueu um memorial aos guias locais.

Zermatt era uma pacata aldeia de montanha, consagrada à criação de gado e à caça, até o alpinismo desabrochar. A cada ano, mais de três mil pessoas sobem "a montanha das montanhas". Nos meses de Verão, tentam uns 150 por dia. Muitos recuam, resignados. Uns 1200 precisam de socorro. Uns 15 perdem a vida. Alguns nunca são encontrados. Alguns são enterrados aqui.

Monte de amor impossível

No Museu Matterhorn, sob uma cúpula de vidro, há toda uma história para desenterrar: agricultores a lidar com adversidades da natureza e alpinistas a tentar desafiá-la ainda mais, como se isso os imortalizasse. Foi em 1865 que pela primeira vez alguém alcançou o cume: quatro dos sete homens da equipa liderada pelo britânico Edward Whymper morreram na descida.

Para o comum dos mortais, o pico que se estende até aos 4478 metros de altitude é para admirar a uma certa distância, como um amor impossível. O mais perto do céu que pode chegar é o Matterhorn Glacier Paradise, a 3883 metros. Nada mau: daquela plataforma panorâmica avistam-se até picos italianos e franceses; o Mont Blanc, o mais alto, até parece perto.

Ir ao topo da maior e mais elevada área de esqui de Verão da Europa pode ser uma experiência portuguesa. Não acredita? José Manuel Paixão, um dos primeiros portugueses a assentar arraiais nesta comuna da região de Valais, no Sudoeste da Suíça, trabalha na bilheteira do teleférico.

- Vim em 1979. Parece que foi ontem.

- Na conta bancária - provocou-o Rosa.

- Vim com a minha mulher. Vim com um contrato de estação [que possibilitava trabalhar até nove meses por ano]. Trabalhava na hotelaria. Apanhei um choque. Pensava que isto era outra coisa.

- O que esperava? - perguntei ao homem de 58 anos, já saído de trás do guiché, disposto a servir-se da sua qualidade de trabalhador da Raiffeisen com casa na aldeia de Seiceira, a 14 quilómetros de Tomar.

- O que esperava? Nem sabia onde era Zermatt. Vinha com umas botas ribatejanas. Escorreguei tanto!

A imagem fez rir Rosa e a amiga, Cristina Nunes Moutinho, que há dez anos trocou Lisboa por Zermatt, onde ainda agora serve pequenos-almoços no Hotel Rex. Nenhuma quis desamparar-me na primeira incursão aos Alpes e durante aqueles três dias acompanharam-me em qualquer actividade lúdica.

- Vocês não estão a ver o que era chegar a Zermatt. Eu sabia que era uma montanha, mas não fazia a mínima ideia do que era uma montanha destas. Nem imaginava! No dia em que chegámos, havia para aí meio metro de neve na estrada. Fui a escorregar até casa!

Os portugueses começavam ainda a desembarcar. Entre 1989 e 1994, entraram perto de cem mil na Suíça. Os italianos e os espanhóis estavam menos disponíveis para emigrar. O país vivia um ciclo de expansão - carecia de mão-de-obra na construção, nos serviços, no comércio a retalho: com a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, deixou de encaixar os portugueses na lista de povos considerados demasiado "diferentes" para se integrarem na Suíça.

José Manuel Paixão viu muitos portugueses a vir, mas também muitos a ir. Ainda vê. Empurrados pela crise, desembarcam uns mil por mês na Confederação Helvética, alguns sem saber que, até pela concorrência da Europa de Leste, já não se usa o lema de Júlio César: "Chegar, ver e vencer".

- A maior parte, à medida que foi apanhado o permis B [autorização de residência renovável a cada ano, que consente a mobilidade geográfica e profissional], foi saindo daqui. Mesmo hoje fazem isso. Apanham o permis B ou C [autorização de residência permanente] e vão para outros lados.

Caminhar num postal

Hoje, há aulas de língua e cultura portuguesa numa sala cedida pela Suíça, com professores colocados por Portugal. Nada disso existia em 1986, quando José Manuel Paixão pôde, por fim, trazer a filha e sossegar a mulher.

- A mais velha tinha nove anos quando veio, a outra mais nova já nasceu aqui. Ela foi a primeira portuguesa a vir para a escola. Já havia espanhóis e italianos, não havia portugueses. Ela teve a sorte de o professor Smicht... Não sei se conheces, Rosa.

- Sim, sim.

- Ele tinha a filha, que é cabeleira, e o filho, que é professor. Eles andavam todos na quarta classe. O professor levava-a para casa e ela aprendia com eles também. Fazia lá os trabalhos de casa. O director da escola é que arranjou isso.

- Já não moram aqui.

- Não. Foi a escola que as obrigou a ir. Em Zermatt, tirando a hotelaria, não há assim muito... Uma estudou Ciências Políticas e Económicas e está a fazer Direito Internacional. A mais velha fez o 12.º ano. Há dois anos que anda a estudar Contabilidade. Não é fácil estudar depois de estar 16 anos parada.

- Gosta de viver aqui?

- Gosto. Talvez por ser uma aldeia tranquila. É parecida com a minha, tirando a questão do dinheiro, claro. Gosto da paisagem. É bom andar aqui a pé. Ando muito.

A zona é lendária. Há cinco vales em torno de Zermatt com mais de 70 trilhos, que se alongam por mais de 500 quilómetros. Fiz duas caminhadas com a sensação de estar dentro de um postal ilustrado. Uma a partir da aldeia. Outra a partir de Furi, paragem de teleférico mais indicada para explorar Dossen Glacier Garden.

Dossen Glacier Garden é o maior jardim glaciar da Suíça. Indo por caminhos bem definidos entre as árvores e as rochas, só se ouvem os pássaros, o vento, a água. Aos pés do glaciar Gorner, o segundo maior dos Alpes, há muito cedro, algum pinheiro manso e plantas que a minha ignorância não deixa identificar. Para lá chegar é preciso atravessar uma ponte estreita, suspensa sobre um desfiladeiro: cem metros de comprimento a uma altura de 90 metros.

Além de protector solar, óculos de sol e máquina fotográfica, o melhor é ter sempre à mão uma camisola polar, um casaco corta-vento, um gorro de orelhas. Nunca se sabe quando é que o tempo vira.

A prática de Rosa ditava-lhe calor e, na verdade, os registos fotográficos garantem que até é possível encontrar miúdas de biquíni a esquiar no Verão, mas é bem provável que esteja um frio dos diabos: no Matterhorn Glacier Paradise, por exemplo, podem estar menos 15 a 20 graus do que em Zermatt.

Que sofrimento! Andava já a ver camisolas ou casacos a preços proibitivos quando me apareceu um funcionário tão prestável que me emprestou o seu polar extra, uns quantos números acima: Carlos Borges, assim se chama o meu super-herói alpino. Sem esse conforto, como fazer figuras tristes na neve ou visitar o Glaciar Palace, aclamado palácio que fica mesmo ali, descendo num elevador e seguindo por um túnel de gelo até 15 metros abaixo da superfície?

Os portugueses, em Zermatt, estão por todo o lado. Se alguma dúvida houvesse, teria sido dissipada ali. Ou na descida. A trabalhar numa cabine do teleférico, Silvério Macedo, que chegou há 23 anos: "Tinha 20 anos. Andava a estudar engenharia. A minha ex-mulher, que tinha 25, foi passar um mês de férias a Portugal. Aquilo foi um mês de amor intenso. Vim para cá".

O primeiro português chegou à aldeia há 47 anos. Era oriundo de Castro Daire, como a maioria dos que se seguiram, enleados em teias de família, amizade ou vizinhança. É toda uma história discreta, como devem ser as histórias de bastidores de uma das mais célebres estâncias de esqui do mundo.

Bruno Marques não descansou enquanto não viu a bandeira portuguesa hasteada, ao lado da bandeira suíça, da de Itália ou da de Espanha. Convenceu outros a consigo fundar a associação. A sua primeira batalha seria aquela bandeira. Transborda orgulho, cada vez que passa por ela. A nova luta é formar uma turma de alemão para portugueses. Que melhor motor de integração?

A convivência nem sempre é fácil. Os suíços têm muitas regras, deitam-se às nove da noite. Os portugueses esticam-se até às dez ou mais e tendem a falar alto. Talvez ajude ser proibidíssimo circular de carro. Qualquer transporte particular tem de ficar estacionado em Täsch, nove quilómetros antes de Zermatt. Dali para cima, só se pode entrar a pé ou de comboio. Na aldeia, quem não quer usar as pernas, usa táxis eléctricos ou puxados por cavalos.

O elevado preço das rendas empurra alguns para as aldeias vizinhas de Täsch e Randa. Dos 1300 habitantes registados em Täsch, por exemplo, 562 são suíços, 481 portugueses.

Muitos, como Rosa, vivem em apartamentos minúsculos. A camareira, que um cancro fragilizou, tem casa em Esposende. "Era o meu sonho quando vim para cá. No primeiro ano, comprámos um carro. No segundo ano, um terreno. Depois, fomos construindo a casa." Durante anos, fez as viagens de carro. Ia a contar os quilómetros: 1800, 1700, 1600, 1500. As filhas perguntavam-lhe: "Falta muito? Falta muito?". Ela já respondia: "Só faltam 1200, só faltam 1100..."

Há anos que vai de avião, mas ainda conhece muito quem vá de carro. Quem é que ela não conhece? Instalou-se em 1998. Fez parte da antiga comissão de pais e é a coordenadora escolar da recém-formada associação. Embora já seja avó, falta-lhe muito para dizer como José Manuel Paixão: "Dois anos e vou-me embora. Dois anos! Se não for no caixão, vou sentado no avião." Chegará a hora dela. Para ela, Zermatt não é o paraíso que me parece. Para ela, o paraíso é Ofir, Fão, Esposende. O nome Ofir aparece no Antigo Testamento a designar uma terra afastada de Israel onde havia ouro. Por que raio tem o paraíso de ser quase sempre onde não se está?

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