Do baú das ideologias

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Dos indignados que têm pernoitado em Wall Street aos protestantes das ruas de Atenas, Madrid ou Lisboa há certamente muitas semelhanças ou pontos de contacto. Em todos eles, por exemplo, se vê uma genuína raiva contra bancos e banqueiros, uma percepção de que os responsáveis permanecem à "solta", um tom severo de caça aos ricos e poderosos, uma rompante impotência e falta de fé naquilo que o futuro nos reserva.

Mais difícil, porém, é identificar uma linha política assumida e comum. Não se sabe ao certo o que as pessoas defendem, nem como se propõem salvar o mundo. Os motivos para esta "desunião" antipolítica são vários. Basta pensar que na Europa não existem protestos de rua sistemáticos - o 11 de Março deste ano é ainda uma excepção - sem a acção contribuidora de sindicatos fortes, aliados aos partidos políticos e imbuídos de uma agenda de reivindicação precisa com efectivo poder para desestabilizar os Governos. Enquanto na América o sindicalismo foi sempre um movimento fraco e residual, o centrismo ideológico é dominante e e as ruas enchem-se mais depressa com intelectuais e activistas minoritários que pedem a abolição pura e simples do capitalismo. Evidentemente, a probabilidade de serem levados a sério é igual a zero.

Basta pensar também que, se do outro lado do Atlântico o sistema político tem permanecido refém sobretudo dos lóbis das grandes empresas, o caso europeu é mais complexo. Tão importantes e nocivos, entre nós, têm sido os lóbis dos grandes - e com isto penso nos bancos e nas empresas ditas de regime -, como dos presumíveis pequenos que enfeudaram o Estado nas últimas décadas com múltiplos direitos e prerrogativas que agora deixou de ser possível manter.

Na América o poder das grandes corporações e dos grandes bancos tornou-se, de facto, excessivo e incomportável; na Europa, em especial na Europa do Sul, os "poderosos" dividem-se entre os bancos que aderiram racionalmente à loucura do capitalismo financeiro livre, as empresas monopolistas protegidas, os grupos profissionais e sociais que colonizaram para si os escassos bens do Estado. A falsidade essencial do regime está aliás no pacto tácito de tolerância que uns e outros celebraram. Enquanto houve dinheiro para pagar uma despesa que fugia por todos os lados, ninguém se incomodou muito que os grupos de construção civil retalhassem o país de auto-estradas. Por alguma razão os portugueses votaram tranquilamente como votaram.

Ainsegurança e escuridão destes tempos não favorecem por isso uma luta ideológica de contornos planetários com clivagens bem definidas. Há indiscutivelmente uma profunda crise do neoliberalismo (uma palavra tantas vezes impropriamente usada, porque não significa o mesmo que liberalismo ou economia de mercado), mas não se vislumbram quais as ideologias vingadas e desforradas.

Estamos hoje sem dúvida mais atentos e despertos para o infortúnio dos outros, que pode ser ou não comparável ao nosso. Mas não convém colorir em demasia um pretenso movimento internacionalista contra a ruína do mundo que talvez não exista tão uniformemente como pensamos. Há "inocentes", claro que há, mas os inocentes de Washington podem não ser os de Lisboa; e, de qualquer maneira, nem sempre são esses inocentes que ocupam as ruas.

Esta crise matou as ideologias que estavam vivas: o neoliberalismo e o socialismo democrático. Mas pode ressuscitar aquelas que julgávamos mortas e enterradas. Não admira que do baú das ideologias ressurja um novo interesse pelo que Marx escreveu sobre o capitalismo suicida ou que, à direita, se repegue a teoria social da Igreja ou certas críticas mais organicistas e românticas ao capitalismo industrial do princípio do século passado. O mundo não está só perigoso. Está de volta ao passado. Jurista

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