Three Gorges O futuro construído sobre um pântano

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A construção da barragem fez nascer quilómetros de arquipélagos de lixo, que flutuam sem controlo (à esq.)Segundo as previsões oficiais, a subida dos níveis de água iriaresolver os velhos problemas de inundações na região, mas os ecologistas e populações locais queixam-se de que as inundações aumentaram nos últimos anosA barragem Three Gorges, a maior do mundo, é capaz de produzir 18,2 mil megawatts de energia eléctrica, o equivalente à capacidade de 18 centrais nucleares, e gera por ano 84 mil milhões de kilowatts-hora, ou seja, quase uma vez e meia do consumo total de PortugalO impacto geológico é profundo. Segundo a Academia Chinesa de Engenharia, em 2006, nos sete meses a seguir à subida de água no reservatório, houve 822 sismosA construção da barragem terminou este Verão, depois de 20 anos de trabalhos. Hoje é um destino turístico para ricos e pobresMilhares de pessoas continuam a ser deslocadas para fugir aos solos instáveis, aqui para Badong, uma nova cidade a 100 quilómetros da barragem Liu Shusong/Xinhua Press/Corbi

Hoje é evidente que as consequências da grande barragem Three Gorges, a nova accionista da EDP, estão fora de controlo. Os ecossistemas da região foram destruídos, por todo o lado, há desabamentos de terras, sismos e inundações

Mal aqui chegou, Mao Tsetung fez um poema. "Estou a nadar no grande Yangtse. Barcos movem-se com o vento. Tartarugas e cobras ficam quietas... Uma ponte voará para ligar norte e sul... Muros de pedra erguer-se-ão corrente acima, para o Ocidente, para deter as nuvens e a chuva de Wushan, até que um lago suave nasça nas estreitas gargantas".

Estávamos em 1956, e o Grande Timoneiro não tinha tempo nem dinheiro para iniciar o projecto. Quis, primeiro, transformar a China num país rico, através do Grande Passo em Frente, que levou milhões à fome e à morte. Depois ocupou-se com a Revolução Cultural, obrigando as multidões urbanas a trabalhar nos campos, para purificar a ideologia. Mas a ideia de construir uma barragem no Yangtse nunca se apagou no seu espírito. Quando um grupo de engenheiros elaborou um parecer questionando o projecto, mandou-os prender.

O Yangtse é o maior rio da Ásia, o terceiro do mundo. Nasce nas montanhas do Tibete, corre até Chong-qing, e depois Xangai, desaguando num imenso delta no mar da China Oriental. Nos 6300 quilómetros do seu percurso, irriga as terras mais férteis do país, e tem sido responsável, durante milénios, pelo florescer dos mais importantes focos da civilização chinesa. A região das Três Gargantas, na província de Hubei e distrito de Chongqing, é a mais rica em vestígios arqueológicos, templos e cidades históricas. Além disso, é um dos locais mais deslumbrantes da China. Acresce ainda que é hoje o cenário onde se ergue a maior barragem do mundo. Tudo motivos para que milhões de chineses sejam atraídos ao local. As Três Gargantas é uma espécie de templo natural, um local de peregrinação.

Do porto de Chongqing partem cruzeiros de luxo que descem o Yangtse, até à cidade de Yitchan, atravessando os íngremes desfiladeiros envoltos em neblinas azuladas. Custam fortunas e destinam-se aos turistas estrangeiros, que chegam de avião a Chongqing e partem de Yitchan. Mas depois há outro mundo, o dos barcos para passageiros e turistas locais.

Estávamos numa semana com vários feriados, em que muita gente conseguiu gozar umas miniférias. E, quando isso acontece, os chineses têm um passatempo predilecto: viajar. Metem-se em comboios e autocarros, e partem. Fazem milhares de quilómetros para visitar familiares, ou simplesmente conhecer o país. Alguns juntam algum dinheiro e partem à aventura, durante meses. É frequente ver nas cidades jovens de mochila e bordão de caminhante, pedindo dinheiro na rua, com um cartaz explicando o seu percurso e porque decidiram partir.

Para não perder muito tempo, decidi viajar de autocarro de Chong-qing para Wanzhou, a cerca de 300 quilómetros, e aí apanhar o barco para Yitchang e as Três Gargantas. Mas na China nada acontece como previsto e quando cheguei já o barco tinha partido. Foi preciso procurar um hotel em Wanzhou.

É uma cidade de dois milhões, constituída por sequências intermináveis de edifícios de habitação todos iguais, cinzentos, com muitos andares. As urbanizações estão construídas em promontórios à volta do rio, de que parecem fugir.

Hoje em dia, Wanzhou não é exactamente uma cidade. Em 1997, mudou de nome (chamava-se Wanxian) e foi integrada no município de Chongqing. Cerca de 50% da cidade desapareceu. Com a subida das águas resultante do enchimento do reservatório da barragem, toda a zona mais baixa ficou submersa.

"Eu morava ali", aponta Gong Zong para um ponto no meio do rio. "Agora estamos numa linda cidade do outro lado do monte." Gong tem 25 anos e é técnico de informática. Tem de ajudar os pais, que, acaba ele por dizer, nunca mais trabalharam desde a mudança. "Eles tinham uma pequena terra. Agora não sabem o que fazer, no meio dos prédios."

A zona de Wanzhou, por ter vastas áreas elevadas, é onde se concentra grande parte das novas cidades, construídas para realojar os que viviam em zonas que ficaram inundadas. São urbanizações incaracterísticas, sem infra-estruturas, contou Gong. A maior parte não tem esgotos. Mas o pior é que não têm vida. "As pessoas não sabem o que fazer. Não há empregos." São centenas de quilómetros de prédios pardacentos, que ninguém sabe a que cidade pertencem, e onde vivem milhares de desconhecidos. Os habitantes de várias aldeias dispersas foram alojados num mesmo bairro, aleatoriamente.

No caso da família de Gong, nem sequer receberam indemnização, porque lhes foi dito que as terras onde estavam não lhes pertenciam. Eram terrenos públicos. As compensações atribuídas a cada pessoa foram decididas pelos funcionários locais, e tanto podiam ser de mil euros como de 20. "E não havia lugar para protestos. A polícia chegava e levava as pessoas."

Em toda a região, por causa da barragem, foram desalojadas e realojadas um milhão e 300 mil pessoas, nos 17 anos que duraram as várias fases da construção. Mais de mil cidades e aldeias foram inundadas e desapareceram completamente. Em muitos casos, as indemnizações foram irrisórias, quer porque não foi reconhecida a propriedade das terras a quem as habitava, quer porque uma grande percentagem dos desalojados estava ilegal. Eram pessoas que tinham ido viver para zonas urbanas, onde havia trabalho, mas não tinham conseguido alterar o bilhete de identidade, que continuava a afectá-las às zonas rurais. Legalmente, portanto, não viviam onde viviam, e por isso não foram expulsas e não tiveram direito a qualquer compensação.

A partida do barco estava prevista para as 3 da tarde, mas só saiu à meia-noite, o que foi uma sorte. Ao contrário dos cruzeiros de luxo, estes barcos chineses, velhos e de bilhetes baratos, atravessam as zonas mais interessantes do percurso durante a noite. Geralmente só se consegue ver a última garganta, a de Xiling, que surge de madrugada.

Iniciando a viagem à meia-noite, estaríamos a atravessar a primeira das Três Gargantas, a de Qutang, às primeiras horas da manhã. Seguir-se-ia Wu e depois Xiling, onde se situa a barragem.

Durante as nove horas de espera no cais de Wanzhou, barcos iam chegando, outros partindo, numa enorme confusão de destinos e horários, as pessoas corriam de um lado para o outro, sem saber que navio era o seu. Na extensão do grande lago que o Yangtse forma aos pés da cidade, eram visíveis manchas de sujidade, óleos nauseabundos e lamas esverdeadas. O rio, explicar-me-ia depois, em Yitchang, Lu Renjing, um engenheiro que trabalha para uma organização ambientalista local, cobriu inúmeras fábricas, minas, armazéns de produtos tóxicos, lixeiras. "Por isso tornou-se altamente poluído, matando peixes e várias espécies vegetais, e contaminando, com altas concentrações de arsénico, mercúrio, cianeto, os reservatórios de água que abastecem muitas povoações. Estes problemas são agravados pelo facto de, onde outrora havia fortes correntes, existirem agora águas estagnadas, que não se renovam."

Os bilhetes para o barco estavam esgotados, e só consegui um lugar de pé, tal como aconteceu com muitas dezenas de outras pessoas. Deitadas no chão dos lobbies que dão acesso aos camarotes, conversaram até altas horas da noite, contando as respectivas viagens.

Dar Mina, por exemplo, tinha ido buscar os pais e tios à aldeia onde vivem para os levar por uma viagem de sete dias pelas províncias de Hubei e Anhui. Alugou um carro e fizeram-se à estrada até Chongqing. Depois das Three Gorges, de barco, tencionavam apanhar um autocarro de Yitchang para Wuhu. Lu Han, um estudante de 19 anos, decidiu ir visitar uns amigos a Badong. Song e Li, duas estudantes de design urbano em Wuhan, tinham como destino a grande barragem. "É considerada a maior obra de engenharia de toda a China, por isso quero ir lá", explicou Song, de 22 anos. "Quero tentar perceber se são verdade muitas das coisas que dizem."

Antes de amanhecer, fui acordado por uma gritaria ensurdecedora, vinda do lado do rio. Era uma espécie de lengalenga berrada numa voz fanhosa e estridente a plenos pulmões. Avancei no escuro até à porta de estibordo. Ao lado do barco, navegando à mesma velocidade, colava-se uma canoa comprida, uma espécie de gôndola onde duas mulheres em pé apregoavam doses de massa com carne, que retiravam com uma concha de um panelão a fumegar. Depois afastavam-se, dando lugar a outra canoa, numa azáfama contínua e barulhenta. Do lado bombordo, era a mesma confusão.

Isto passou-se às cinco da manhã, e pouco depois o sol nascia por detrás de montanhas escarpadas e negras, formando muralhas, arcos e colossos em ambas as margens. Eram as Gargantas, finalmente, envoltas em brumas e clarões de fogo. O rio estreitou e ziguezagueava entre as barreiras de Qutang, às primeiras horas da manhã. As pessoas saíam das cabinas, ou dos cantos onde dormiam, para afluir ao convés, com máquinas fotográficas e binóculos, deslumbradas com aquele mundo de estranheza e mistério.

Foi assim durante horas, deslizando entre as montanhas, numa dança silenciosa sob as arcadas verdes, de ângulos impossíveis, da Wu, também conhecida como Garganta das Bruxas, com os seus 12 picos ao longo de 40 quilómetros - o Pico da Deusa, o Pico dos Imortais, o Dragão Trepador, a Fénix voadora. E depois a Xiling, 80 quilómetros de rocha azulada, em recortes ora afilados ora amenos como ondas.

Antes de entrar na última secção da Xiling, que segue até à cidade de Yitchang, há uma paragem em Sandouping. É daqui que partem as excursões de autocarro até à Grande Barragem Three Gorges. Era o objectivo da maioria dos passageiros. Compram-se bilhetes, organizam-se os grupos.

Song e Li estavam desconfiadas. Queriam visitar a barragem, mas não no grupo organizado. "Isto não é autêntico. É uma acção de propaganda", disse Song. "Não nos vão mostrar tudo. Queremos ir lá sozinhas." Mas não era possível. À saída do barco, esperavam-nos já cinco autocarros ultramodernos, com as letras Three Gorges Project gravadas na carroçaria. Tivemos de entrar para um deles e ouvir o discurso da guia durante a meia hora de viagem, bem como durante a visita.

A sensação é de controlo absoluto. O barco pertence ao Estado, e à saída somos obrigados a entrar num autocarro que pertence à empresa China Three Gorges Project Corporation.

Quando chegámos, havia multidões por todo o lado. A visita inclui três pontos de paragem: lugares de onde se avistava a barragem, o museu, as lojas e zonas de venda de recordações. Tudo está minuciosamente organizado para receber os visitantes, como se uma das funções do empreendimento fosse a própria divulgação das suas razões e objectivos.

Há enormes lanços de escadas rolantes para levar os visitantes aos pontos mais altos, de onde se vê o rio, o reservatório e as colossais barreiras de betão; há parques onde estão expostos os guindastes, buldozers e camiões que participaram na construção; há maquetas, modelos de turbinas, fotografias e mapas.

O museu conta a história do projecto, desde a sua concepção até às últimas construções, ainda este ano. Num tom ostensivamente propagandístico, são enumeradas as vantagens do projecto, para a economia da China e o bem-estar das populações locais. Num outro museu, intitulado Three Gorges Museum, em Chongqing, são exibidos filmes, modelos em tamanho real das personagens relevantes nas várias fases do projecto, em reuniões, visitas aos locais, etc. Uma secção mostra fotografias e depoimentos gravados de pessoas que foram realojadas, contando como estão felizes e prósperas, em zonas com mais recursos e melhores infra-estruturas.

À saída do museu da zona da barragem, passando pela loja onde há de tudo, desde livros de engenharia civil até estatuetas de Mao, chega-se à zona de feira. São ruas e ruas com vendedores de ambos os lados. As bancas têm comida típica das várias regiões abrangidas pelo projecto, vegetais, peixe frito, bolos, mas também roupas, sapatos, bonecos, brinquedos, candeeiros, vassouras, relógios, telemóveis. São milhares de vendedores, que gritam desesperados agitando os produtos, claramente não conseguindo vender o suficiente, entre a desmesurada concorrência. "Todas estas pessoas são deslocados das zonas inundadas, que encontraram trabalho aqui", diz a guia.

"Tudo isto é uma farsa, sinto-me enganada", diz Song. "O que eu queria era recolher dados concretos. O Governo disse que esta barragem iria fornecer electricidade para toda a China. Mas não é verdade. Só abastece a região de Chongqing. Tenho muitas dúvidas de que o preço do desastre ecológico que isto provocou seja compensado pelos benefícios."

No seu discurso para promover e justificar a barragem, o Governo diz que a sua construção era essencial para o desenvolvimento do país. Após o crescimento das cidades costeiras, como Shenzhen ou Xangai, era necessário dar um impulso ao interior. Sem isso, a China nunca poderia tornar-se numa grande potência, estando condenada a ser um imenso país pobre, com alguns focos de riqueza nas suas zonas especiais.

O impulso decisivo consistiu na construção da barragem Three Gorges e a criação do município especial de Chongqing, governado directamente pelo Governo central. A barragem, a maior do mundo, capaz de produzir 18,2 mil megawatts de energia eléctrica (equivalente à capacidade de 18 centrais nucleares) e que representou um investimento de 24 mil milhões de dólares, foi concebida para alimentar uma enorme quantidade de indústrias em toda a região, desde motores de automóveis e motos a dispositivos electrónicos.

Além disso, a barragem teria o efeito de impedir as cheias regulares do rio Yangtse, e de fazer com que ele passasse a ser navegável para navios de grande porte, de Chongqing, que tem o maior porto fluvial da China, a Xangai, onde existe o maior porto de mar do mundo.

A par destas vantagens, a construção da barragem implicava também riscos graves. Cientistas chineses e estrangeiros alertaram para o perigo de um desequilíbrio ecológico de proporções incontroláveis. O Governo de Pequim sempre se mostrou sensível a estes estudos. O projecto foi, aliás, desde o início, acompanhado por técnicos e organismos estrangeiros, designadamente dos EUA e Canadá. Uma dessas instituições foi a canadiana PROBE International, que começou as suas investigações sob o patrocínio das autoridades chinesas.

Mas quando se criou um consenso, entre a comunidade científica, de que a construção de uma barragem desta dimensão era demasiado perigosa, Pequim decidiu ignorar os conselhos. Estava em jogo o desenvolvimento decisivo do país. A opção foi correr o risco. Construir um futuro assente num pântano.

Agora, é evidente para todos que as consequências estão fora de controlo. Os ecossistemas da região foram destruídos. Por todo o lado, há desabamentos de terras, sismos, inundações. A barragem foi construída numa zona de falhas sísmicas (a falha de Jiuwanxi e a de Zigui-Badong), o que, segundo os especialistas, pode provocar alterações nos movimentos geológicos que levem à ocorrência de terramotos, alguns de grande magnitude.

Segundo a Academia Chinesa de Engenharia, nos sete meses seguintes à subida de água no reservatório de 2006, foram registados 822 tremores de terra na região.

Segundo a PROBE International, o sismo que ocorreu em 2008, em Wenchuan, deve-se, com toda a probabilidade, aos efeitos da barragem Three Gorges.

A pressão das águas está a provocar deslizamentos de terras. Áreas em locais elevados têm-se quebrado, e caído no rio. Abrem-se fendas no solo, estradas, pontes e edifícios têm-se desmoronado, provocando a morte de dezenas de pessoas. Muitas das novas cidades construídas para os desalojados estão em perigo. Os habitantes vão ser levados para outros locais, novas cidades em zonas mais seguras estão a ser construídas.

"Uma das vantagens da barragem deveria ser a de evitar as cheias", disse Lu Renjing, membro da organização ambientalista Rio Vivo, de Yit-chang. "Mas a verdade é que passou a haver muito mais. Todos os anos há inundações, que obrigam milhares de pessoas a fugirem das suas casas. E em muitas regiões surgiram novas doenças, provocadas pelo surgimento de faunas estranhas, em zonas de águas estagnadas. Por outro lado, algumas das espécies animais endógenas da região estão em perigo, ou já foram extintas."

O próprio Governo chinês reconhece hoje a gravidade dos problemas. Num documento assinado pelo primeiro-ministro, Wen Jiabao, são referidos "problemas urgentes" e os "efeitos negativos da barragem". "Se não forem tomadas medidas, podemos estar à beira de uma catástrofe ambiental."

Sempre houve dúvidas, no seio do Governo chinês, sobre a construção da barragem. Nos anos 1980, um forte movimento cívico, com alguma influência nos corredores do poder, contestava o projecto. Na altura das manifestações pró-democracia na Praça Tiananmen, em 1989, um dos grupos presentes era esse, contra as Three Gorges. Na repressão que se seguiu, esses elementos foram presos ou mortos. Desde então, as vozes dissidentes quanto ao projecto desapareceram, e ele acabaria por ser aprovado, por uma maioria simples, na Comissão Permanente do Politburo. A construção começaria em 1994.

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