A Europa, o FMI e as presidenciais

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Os mercados não passarão a acreditar em Portugal só porque Passos Coelho substituiria José Sócrates em São Bento

1.Havia um ditado que a minha avó citava, segundo o qual o homem é o único animal que tropeça duas vezes na mesma pedra. Esta longínqua recordação voltou-me à memória, quando tentava resumir mentalmente a tentação suicidária da Europa para... tropeçar três vezes na mesma pedra. Já muita gente escreveu que a crise da dívida dos países periféricos só não se transformará numa crise do euro e da Europa, se os líderes europeus abandonarem a sua "estratégia" de tapar buracos no casco do navio e decidirem arranjar definitivamente o motor e o leme. Isso passaria, entre muitas outras coisas, por assumir a dívida soberana dos países em dificuldade (em parte, é o que o BCE tem estado a fazer, mas não chega), fazendo baixar imediatamente o prémio cada vez mais alto que têm que pagar para se financiarem nos mercados. E cujo valor parece ser absolutamente indiferente às medidas que cada um dos seus Governos está a tomar.

Mas não. O que se volta a ouvir por todo o lado é a mesma cantilena que se ouviu antes da Grécia e antes da Irlanda. Tapar o buraco grego estancaria a especulação e evitaria o contágio. Tapar o buraco irlandês salvaria a Ibéria. Ou, pelo menos, a Espanha. Agora, é o buraco português, ainda um pequeno buraco que se tapa com algumas dezenas de milhares de milhões de euros, que evitará o buraco espanhol que, esse sim, seria um verdadeiro rombo no casco.

"A especulação corre à frente das decisões [dos líderes europeus], escrevia Felipe González anteontem no El País. "São cada vez maiores as dificuldades dos países, que parecem inertes peças de caça perante os movimentos especulativos, que vêem as medidas adoptadas como um aumento das suas garantias para continuar a atacar." Acrescentava o Financial Times: "A crise da zona euro avança inexoravelmente da periferia para o centro. O que começou como uma crise bancária e orçamental na margem transformou-se numa crise da credibilidade no coração da liderança europeia."

2. Percebem-se os argumentos de alguns economistas respeitáveis, como Teodora Cardoso, segundo os quais recorrer já à ajuda externa para financiar o país talvez seja menos doloroso no médio prazo do que insistir em pagar os juros altíssimos que os mercados nos exigem ou ter de negociar essa ajuda em condições tão duras como aquelas a que se viram forçadas a Grécia e a Irlanda. Do ponto de vista interno, essa até pode acabar por ser a única solução. Mas não é o ponto essencial.

O ponto essencial é que provavelmente accionar o socorro a Portugal não resolveria a crise do euro, nem estancaria o contágio a economias não apenas muito maiores (a Espanha), mas muito mais "centrais", como é o caso da Bélgica. Ontem, o FT alertava para o risco da Bélgica, reforçando a ideia de que, em última análise, os mercados visam o euro, porque não acreditam na determinação da Europa em manter a moeda única e em preservar a sua unidade.

É isso que também ajuda a justificar a generosidade de Pequim, à qual agora se soma a de Tóquio, dispostas a ajudar as economias periféricas com a compra da sua dívida soberana. A queda do euro não é do seu interesse económico e político.

3. E isto remete-nos para a nossa situação interna. Ainda mal os rumores da inevitabilidade de uma intervenção europeia e do FMI começavam a circular depois das tréguas da época festiva e já o líder do PSD vinha colocar as cartas na mesa. Se a ajuda externa vier, então é porque o Governo falhou e tem de haver eleições. É legítimo a Passos Coelho querer eleições, mesmo que há bem pouco tempo ainda preferisse dizer que não tinha pressa de chegar ao poder. Mas há um pequeno problema. Por mais que isso não dê jeito, o sufoco em que o país está mergulhado tem razões de política interna, mas tem também razões que nos transcendem e sobre as quais não temos controlo.

Era bom que as coisas se resolvessem por obra e graça do afastamento de um Governo e da sua substituição por outro. Toda a gente sabe que não será assim. Nem os mercados passarão a acreditar em Portugal só porque Passos Coelho substitui José Sócrates em São Bento, nem o PSD apresentou até agora um programa político de curto e médio prazo que aponte um caminho para o país. Não conhecemos a sua visão da Europa e o que pensa sobre qual é a melhor estratégia portuguesa no actual quadro europeu. Não conhecemos, em suma, um pensamento estratégico que junte as peças todas num quadro que faça sentido, que pareça sólido e inspire confiança. Aos portugueses e aos mercados.

Ontem, curiosamente, a notícia do FT reservada a Portugal começava assim: "Disputa ameaça o futuro do Governo. Ataque na véspera de um leilão de obrigações vital."

4. Na entrevista a Judite de Sousa, Cavaco Silva evitou cair na mesma tentação (ainda que com a desculpa, inacreditável, de que não tinha tido tempo para ler a entrevista do líder do PSD). Pelo contrário, insistiu em que não se devem criar dificuldades ao Governo nos seus esforços para evitar a ajuda externa. Mas também não ligou a nossa situação à situação europeia. Está constantemente a dizer que não vale a pena insultarmos os mercados ou responsabilizá-los por aquilo que nos está a acontecer. Mas não explica a razão pela qual os mercados nos atacam furiosamente - que são internas, mas que são também europeias e cuja solução é nacional, mas também é europeia, como ele muito bem sabe. Prefere cultivar a ambiguidade para obter o maior número de votos e garantir total margem de manobra para o segundo mandato.

É legítimo, mas é pena. Porque só ele estaria em condições de promover um debate que fizesse sentido para o país. Por omissão alheia, é o único candidato que poderia representar uma maioria de eleitores do centro que aspiram a uma linha moderada e consensualizada para se sair desta crise enorme em que estamos mergulhados, que nos garanta que continuaremos a ser europeus.

Manuel Alegre pode insistir na tónica patriótica contra o FMI. Na verdade, tem muito pouco para oferecer, porque não tem nem podia ter uma agenda política para a sua campanha, a partir do momento em que quis representar a união de uma esquerda que a própria fundação da democracia se encarregou de tornar impossível. Nunca houve nem haverá agenda política para uma plataforma que reúna o PS e os dois partidos à sua esquerda, porque a democracia portuguesa foi instituída no confronto entre a esquerda democrática europeia e a esquerda comunista e radical e, ao contrário do que aconteceu em muitos países europeus, esta última não se adaptou ao mundo pós-comunista, nem se converteu à democracia europeia e ocidental.

O que é pena nesta eleição é que não há o candidato do centro-esquerda que poderia forçar o debate de ideias de que o país desesperadamente precisa para que os portugueses se possam orientar nas suas escolhas e no seu futuro. Até nisso temos azar. Jornalista

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