Nem carne, nem peixe

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JOÃO GASPAR

Boa parte do sector privado gosta de viver sob a asa protectora do Estado

As nacionalizações de 1975 foram uma arma política para "quebrar a espinha à burguesia" e avançar no sentido do colectivismo. Contra a nova ditadura, lutou, e ganhou, o PS de Mário Soares.

Curiosamente, foram precisos 14 anos e a adesão de Portugal à CEE para o PS aceitar, na revisão constitucional de 1989, que as nacionalizações deixassem de ser irreversíveis. A resistência socialista a privatizar não era ideológica; resultava sobretudo do desejo de continuar a mandar em grandes empresas.

Desejo que se manifestaria depois de muitas maneiras. Por exemplo, o ministro das Finanças de Guterres, Sousa Franco, tentou impedir que António Champalimaud vendesse o banco Totta ao espanhol Santander. Ou recorde-se o gosto do então ministro Pina Moura em mexer nas empresas em vias de privatização.

A tendência socialista para se envolver em negócios está na raiz da insistência de Sócrates no investimento público. E é alimentada pela permanência do Estado no capital de importantes empresas, por vezes com direitos especiais. Assim, algumas das nossas principais empresas não são verdadeiramente públicas nem privadas - são tuteladas à distância pelo Governo.

O intervencionismo estatal encontrou um argumento na recente injecção maciça de dinheiros públicos para impedir o colapso do sector financeiro, desde logo nos Estados Unidos. O argumento é falacioso. Um dos factores da crise financeira global foi a crença de que os mercados se auto-regulam sempre, não precisando de uma eficaz regulação estatal. Ora isto nada tem a ver com o Estado meter o nariz na gestão de empresas, algo que, entre nós, coincide com claras falhas de regulação - seja na garantia de uma verdadeira concorrência, seja na defesa directa do consumidor (como agora se viu no escândalo da agência de viagens Marsans).

A vontade socialista de interferir nos negócios encontrou em boa parte do sector privado português uma propensão para viver sob a asa protectora do Estado. A falta de autonomia dos empresários nacionais é antiga. Os navegadores dos Descobrimentos agiam segundo instruções do rei ou do Infante D. Henrique. Antes da revolução liberal, a aristocracia vivia financeiramente dependente da coroa. E depois de 1834 a nova burguesia teve a sua base económica na compra, a baixo custo, dos "bens nacionais", isto é, das propriedades da Igreja e de alguns nobres absolutistas então expropriadas pelo Estado.

Mais tarde, o débil empresariado português sentiu-se confortável com o corporativismo de Estado imposto por Salazar e com o condicionamento industrial. E após o 25 de Abril pouco mudou a mentalidade empresarial dependente. Há excepções, claro, mas a regra é procurar o encosto do Estado.

Por exemplo, para evitar a compra de empresas nacionais por estrangeiros, de maneira a manter no país os "centros de decisão" (sem prejuízo de vários dos que reclamaram tal protecção venderem a suas empresas a estrangeiros quando lhes conveio). Outro exemplo: a maneira cordata, nalguns casos até entusiástica, como empresários e gestores encararam a vergonhosa tomada do BCP, em 2005, por administradores afectos ao Governo e vindos directamente da pública Caixa Geral de Depósitos. Ou lembremos que Jorge Coelho, um destacado político, se tornou o executivo de topo da construtora Mota Engil. Percebe-se porquê.

A convergência do apetite do PS (e, em menor grau, do PSD) pelo envolvimento em negócios com a tendência de muitos empresários para viverem à sombra do Estado resultou em empresas que não são carne nem peixe. Há que defender os interesses estratégicos nacionais, dizem. Então, uma vez provada a existência de tais interesses (o que, no caso da PT e da Vivo, não foi feito), o Estado deveria nacionalizar as empresas em causa ou, pelo menos, deter a maioria do seu capital. Por isso defendo que a CGD não deve ser privatizada.

Acontece que a promiscuidade entre Estado e negócios é aliciante para as duas partes, embora a prazo diminua ambas. Mas o caso PT trouxe uma novidade: o mais importante apoio empresarial de Sócrates, o BES, que aliás tem tirado partido do intervencionismo estatal, parece ter-se oposto à utilização da golden share pelo primeiro-ministro. A confirmar-se esta demarcação, será um golpe no conúbio entre Estado e empresas que tem prevalecido. Jornalista

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