Compra-me como foi

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Com as lojas A Vida Portuguesa, Catarina Portas abriu uma gaveta fechada à chave nos anos 70 - e o país passou a vasculhá-la obsessivamente. Por Inês Nadais

Algures na segunda metade da década de 70, o país onde os intelectuais (pelo menos os do Porto) fortaleciam o cérebro com os Flocos de Aveia do Canadá à venda na Favorita do Bolhão, as donas-de-casa enceravam o chão com Encerite ("a beleza e a saúde das madeiras"), os censores sacavam do lápis azul da Viarco quando liam a palavra Rússia e a Pasta Medicinal Couto andava "na boca de toda a gente", ficou fechado à chave numa gaveta. Há sete anos, quando abriu a primeira das duas lojas A Vida Portuguesa, esse país deixou de ser um segredo terrível, daqueles que envergonham as melhores famílias. E logo a seguir, na televisão pública, os portugueses elegeram Salazar como o "maior português de sempre".

Catarina Portas acredita que essa eleição foi determinante: sacudiu o pudor em relação ao nosso passado recente. "Os Gato Fedorento puderam então fazer um genérico com as fardas da Mocidade Portuguesa. Apareceu uma vontade de ir atrás que é geracional. A minha geração e a que veio depois sabiam muito pouco sobre a forma como os pais e os avós foram educados, e esse silêncio não era de todo saudável. De repente, tornou-se uma obsessão. A quantidade de livros sobre o Estado Novo publicados nos últimos anos é impressionante; caiu-se no outro extremo", diz a proprietária de A Vida Portuguesa - que se lançou noutra aventura revivalista, com a reabertura de três velhos quiosques de Lisboa, agora restituídos à sua função de pontos de venda de refrescos de groselha e capilé.

A saudade revelou-se um negócio da China, mas Catarina argumenta que aquilo que está a vender não é um passado branqueado e estilizado (o mesmo passado até aqui associado a imagens de pobreza, provincianismo e repressão), ainda que seja isso que as pessoas estão a comprar. "Acredito que as duas principais qualidades de um produto não são: um, ser estrangeiro; dois, ser novo. Há coisas que um dia correram bem e não é por o tempo ter passado que hoje têm de correr pior. Mas é verdade que um dos meus critérios de selecção foi o packaging - em Portugal, como tivemos um mercado pacato durante muito tempo, as marcas não tiveram grande necessidade de se modernizar", diz.

Muitas ficaram como foram - dentro e fora das embalagens, há produtos que são toda uma viagem. "Costumo dizer que tenho uma loja de madalenas de Proust. Cheguei a pensar instalar um sofá e uma câmara de filmar na loja para as pessoas contarem as suas histórias", continua. Souvenirs de sete anos de A Vida Portuguesa? "Lembro-me de um senhor já de muita idade que cheirou a [colónia] Lavanda da Ach Brito e pediu uma cadeira para se sentar, quase tonto: "Era o cheiro do meu avô, de repente voltou". Também há a história de um cliente de 20 e tal anos que me escreveu a dizer isto: "Na loja tenho saudades de produtos que nunca conheci". O passado é literalmente aquilo que fazemos dele - ou seja, uma fantasia ilimitada. "Há dois anos, a fábrica de chocolates Imperial resolveu fazer amêndoas da Páscoa da marca Regina, coisa que a Regina jamais tinha feito. Mas eu ouvi pessoas a dizerem "que bom, já há amêndoas da Regina outra vez"", exemplifica.

Sete anos depois, Catarina Portas ainda não tem uma explicação para a "retromania" que se apoderou do país, pondo-o a açambarcar louças Bordallo Pinheiro (ainda somos todos do tempo em que eram embaraçosamente kitsch...). A não ser esta, que parece lapalissiana: "Talvez isto tenha a ver com a conquista de uma certa auto-estima, desporto em que nunca fomos grandes campeões - em Portugal, só no futebol e na comida é que nos achamos o máximo. E depois, em tempos de crise, as pessoas tendem a refugiar-se em produtos seguros - e no passado. O admirável mundo novo desiludiu-nos a todos um bocadinho".

Ela vê o futuro quando olha para trás, e isso sim, defende, pode ser admirável: "O passado está cheio de oportunidades de negócio. A Pasta Medicinal Couto é a única não testada em animais. Os vegans adoptaram-na, é divertido! E numa Europa que perdeu a manufactura, Portugal, que ainda a tem em parte, devia apostar nela. Acredito que o regresso ao passado pode construir o futuro".

Mesmo que nesta fase ande tentada a sacar da pistola sempre que ouve a palavra vintage.

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