Corte na despesa não cobre nem um quarto do desvio orçamental

Esperava-se reduções dos gastos, mas Governo anunciou a subida do IVA sobre a electricidade e o gás. Despesa extra com BPN e a Madeira obriga a transferir de novo para o Estado um fundo de pensões, desta vez da banca

O Governo tinha-se comprometido com cortes iguais do lado da despesa e da receita, para cobrir o desvio orçamental de 1,9 mil milhões de euros, mas acabou por privilegiar a segunda solução. Ontem, a troika, na sua primeira avaliação do programa de ajuda externa, esclareceu o que o Governo andava a adiar: mais de três quartos do "buraco" que ascende a 1,1 por cento do PIB serão cobertos por medidas do lado da receita. Sobram pouco mais de 300 milhões, ou nem isso, para cortar na despesa.

A repartição do esforço chamou a atenção da troika. Apesar da "avaliação muito positiva" que faz ao cumprimento do programa, a Comissão Europeia (CE) admitiu ontem que gostava de ter visto mais cortes do lado da despesa.

Os números que a troika foi debitando ontem, em conferência de imprensa, permitem visualizar a repartição de esforços (ver infografia): cerca de 1530 milhões de euros do desvio orçamental (82 por cento do total) serão tapados pelo imposto extraordinário, pela antecipação da subida do IVA da electricidade e do gás e pela transferência do fundo de pensões dos bancários, anunciada ontem pela missão da CE, do FMI e do Banco Central Europeu (BCE).

O novo imposto, que equivale a um corte no subsídio de Natal acima do valor do salário mínimo, vai permitir ao Estado encaixar 840 milhões de euros. A isso junta-se o aumento de 6 para 23 por cento do IVA sobre a electricidade e o gás, que traz um ganho de 100 milhões. A medida, que estava prevista para 2012, foi ontem anunciada por Vítor Gaspar, numa sessão sem direito a perguntas, que antecedeu a conferência da troika e onde, segundo fontes governamentais, seriam divulgados cortes na despesa.

O ministro das Finanças deixou ainda para a troika outro anúncio: o Governo vai transferir para o Estado o fundo de pensões dos bancários, recorrendo assim a um expediente extraordinário já usado por governos anteriores para travar derrapagens no défice. Foi o caso, no ano passado, da transferência dos fundos da Portugal Telecom ou, antes disso, dos do CTT, da ANA ou da Caixa Geral de Depósitos.

O chefe de missão da CE, Jürgen Kröger, explicou ontem que a integração do fundo de pensões dos bancários será feita de forma progressiva, começando este ano e devendo estar concluída no próximo. O impacto orçamental em 2012 não foi divulgado, mas, este ano, esta receita extraordinária permitirá "pagar" o BPN e a Madeira - ou seja, quase 600 milhões.

No primeiro caso, o Estado terá de injectar 320 milhões para recapitalizar o banco, no âmbito do processo de reprivatização. No caso da Madeira, a troika não explicou o que estava em causa, mas Jürgen Kröger lançou críticas ao Governo regional, dizendo que tem de ser posto em prática um programa de controlo orçamental na região. A resposta do Governo de Alberto João Jardim não se fez esperar, dizendo que o desequilíbrio podia ser menor "se fosse mais ampla a autonomia política".

A origem do desvio

Com mais de 80 por cento do desvio orçamental a ser coberto por aumento de receitas, o Governo terá de anunciar apenas 343 milhões de euros em cortes de despesa.

Uma foi já conhecida ontem - o congelamento das progressões no regime remuneratório dos militares e das forças de segurança. Trata-se, contudo, de evitar "a perpetuação de uma situação de irregularidade", já que as hierarquias dos ministérios da Administração Interna e da Defesa decidiram progressões na carreira este ano, ao arrepio do que estava fixado no Orçamento do Estado de 2011.

Para cobrir a parte que falta do desvio, a CE revelou ontem que o executivo vai antecipar concessões, sem ter especificado quais ou o seu valor. Isto significa que, em última instância, se as concessões completarem o montante em falta, o Governo pode cobrir o desvio orçamental sem precisar de fazer cortes do lado da despesa, algo que contraria as declarações inicialmente feitas por Vítor Gaspar, que se comprometeu em repartir equitativamente o esforço orçamental entre a receita e a despesa.

Vítor Gaspar confirmou ontem um desvio de 1,1 por cento face à meta do défice (5,9 por cento do PIB este ano), mas deixou para a troika as explicações sobre a sua origem. "Houve uma sobrestimação das receitas no sector da justiça e nos dividendos" e "alguns fundos foram desviados para pagar salários de professores", disse Jürgen Kröger.

A isso juntou-se a insuficiência dos orçamentos para as remunerações em alguns ministérios, de que o ministro já tinha falado, bem como uma contracção em 500 milhões das receitas fiscais, provavelmente devido à recessão. E, por fim, o desvio da Madeira e a recapitalização do BPN.

Ontem, em entrevista à TVI, o líder da missão do FMI, Poul Thomsen, admitiu que "o controlo das despesas não aconteceu como esperávamos". "Foi um ano de eleições, os políticos estavam ocupados", ironizou. Mas deixou uma mensagem de confiança: "Vamos recuperar".

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