Enquanto a Europa dorme

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As eleições na Turquia chamam também a atenção para outra questão fundamental: o estrondoso fracasso da Europa

1. O resultado das eleições turcas de domingo passado acabou por ser o melhor que se podia esperar. O primeiro-ministro turco e líder do partido pós-islamista, Recep Tayyip Erdogan, merecia a sua terceira vitória. Em boa medida por mérito próprio, mas também por demérito alheio. Só muito recentemente a oposição de centro-esquerda (do Partido Republicano do Povo, herdeiro de Kemal Atatürk) está a conseguir libertar-se do peso do passado (e do seu "direito ao poder" graças a uma democracia vigiada pelos militares) e a deixar para trás uma agenda política que se limitava acusar o AKP de prosseguir uma "agenda escondida" fundamentalista e "iraniana", por mais que os factos a desmentissem. Há um ano, elegeu um novo líder, que está a transformá-lo num partido social-democrata europeu. Subiu de 21 para 26 por cento. Pode não ter sido um grande resultado, mas talvez seja o suficiente para afirmar-se rapidamente como a alternativa ao AKP de que a Turquia começa a precisar urgentemente.

De resto, o AKP ficou a uma distância curta da maioria de que precisava para rever sozinho a Constituição e a uma distância maior do seu sonho de conseguir fazê-lo dispensando uma consulta popular. Erdogan quer "civilizar" a Constituição, eliminando os resquícios de tutela militar, o que é bom. Mas quer também mudar o sistema político em direcção a um presidencialismo à francesa, acalentando a ideia de que, depois da liderança do Governo, poderia liderar o país através da presidência, o que é manifestamente mau. O resultado eleitoral obriga-o a negociar e a conciliar. Nada melhor para levar por diante o seu merecido terceiro mandato.

2.Merecido porquê? Porque Erdogan utilizou os outros dois mandatos para levar a cabo reformas políticas e económicas com resultados francamente positivos. Sobre a economia, nem vale a pena falar. Depois de uma década de 90 perdida em sucessivas intervenções do FMI, a economia turca regista hoje taxas de crescimento apenas ultrapassadas, entre as economias emergentes, pela China e pela Índia. Liberalizou-se, abriu-se, reforçou-se. O rendimento per capita duplicou. As exportações triplicaram. Há ainda problemas para resolver. O sobreaquecimento da economia, animado pelo fluxo enorme de investimento externo que pode começar a falhar, pode deixar a descoberto uma balança de transacções correntes demasiado deficitária. Mas são problemas geríveis, desde que haja alguma prudência.

Quanto às reformas políticas, é preciso ir até às suas origens. Foi o AKP que impulsionou o objectivo de integração europeia e de consequente europeização da sociedade turca, libertando-se de uma visão mais nacionalista, própria dos partidos de tradição kemalista e, sobretudo, dos militares. Foram os seus governos que conseguiram para a Turquia o estatuto de candidata oficial à União Europeia, em 2005. Foram também eles que realizaram, mesmo que por vezes um pouco a contragosto, as reformas políticas exigidas pela União Europeia. Não se pode esconder este facto a coberto de uma desconfiança preconceituosa sobre a natureza islâmica do AKP. Nem se deve negar o muito que foi feito apenas porque ainda não é suficiente. Há questões de igualdade religiosa que não estão garantidas. A liberdade de informação e de expressão ainda não derrubou tabus que tendem a limitá-la, como a ideia de que defender os curdos ou falar do genocídio arménio são atentados à "nação turca" e, como tal, puníveis por lei. Mas a prova está feita: foi um Governo liderado por um partido que se reclama do islamismo moderado que aproximou a Turquia de uma democracia de tipo europeu. E isso não foi apenas importante para a Turquia, também ajudou a consolidar a convicção de que o Islão é perfeitamente compatível com a democracia e com a prosperidade. Hoje, muita gente que luta pela liberdade nos países árabes vê na Turquia o bom exemplo a seguir.

3. Mas as eleições na Turquia chamam também a atenção para uma outra questão fundamental: o estrondoso fracasso da Europa, até para conseguir tirar partido do seu próprio magnetismo reformista. A Turquia não se limitou a democratizar-se e a enriquecer. Transformou-se numa potência regional, com um papel cada vez mais importante no Médio Oriente e no mundo árabe. Já era membro da NATO. Hoje é membro do G20. A integração na União continua a ser uma prioridade de Ancara, mas deixou de ser uma aspiração do povo turco. Nem outra coisa seria de esperar face ao comportamento da Europa, que tem feito tudo o que está ao seu alcance para afastar a Turquia do seu objectivo europeu. Dois países são os principais responsáveis: a Alemanha e a França, que não escondem a sua opção estratégica de manter a Turquia à porta. Os outros e, sobretudo, as instituições europeias nunca fizeram o que seria necessário para contrariar esta tendência. O preconceito contra um país de maioria muçulmana e suficientemente grande e dinâmico para "desequilibrar" os equilíbrios de poder interno fez o resto.

No curto prazo, tudo isto parece não ter a menor importância. No longo prazo, será mais um contributo para condenar a Europa à irrelevância estratégica no mundo multipolar que está a emergir a uma velocidade alucinante diante dos nossos olhos.

4. A rejeição europeia tem consequências já hoje visíveis na política externa turca, que se distancia cada vez mais do seu tradicional comportamento de país "ocidental". "O primeiro-ministro apresentou-se mais como um líder do Médio Oriente do que como um líder europeu", escrevia Barçin Yinanç no diário Hurriyet, comentando o seu discurso de vitória. "Não mencionou uma única vez a Europa". Mas foi ainda mais longe. Começou por saudar "todas as nações amigas e irmãs, de Bagdad, Damasco, Beirute, Cairo, Sarajevo, Bacu e Nicósia". "Apresentou-se como o líder dos muçulmanos e o dos muçulmanos que são oprimidos, não pelos seus regimes, mas pelo Ocidente cristão". Mesmo com algum exagero, há aqui alguma coisa a merecer reflexão. Quanto mais não seja o facto de hoje o mundo já não ser "eurocentrado", coisa que a Europa tem uma enorme dificuldade em perceber.

Escrevia Javier Solana no El País de ontem que "a "Primavera árabe" devia obrigar a Europa a voltar a prestar atenção a uma questão em grande medida ignorada nos últimos meses: os benefícios da adesão plena da Turquia". Já eram evidentes antes das revoltas árabes, diz o antigo chefe da diplomacia europeia. Infelizmente, a sua voz é minoritária. Se a Europa nem a Grécia consegue salvar... Jornalista

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