"Como posso dizer que estou livre? Nenhum de nós é livre"

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A Nobel da Paz carrega aos ombros as expectativas dos birmaneses Soe Zeya Tun/REUTERS

A dissidente birmanesa avisou os seus apoiantes que a luta pela democracia não pode contar só com ela, terá de contar com todos

Há muitas dúvidas sobre se a junta militar da Birmânia permitirá a Aung San Suu Kyi envolver-se em grandes batalhas políticas. Mas ontem, depois de sete anos de prisão domiciliária, a mais famosa dissidente do país pôde lançar alguns reptos. No meio de um banho de multidão, apelou à liberdade de expressão, pediu aos apoiantes que lutem pelos seus direitos, defendeu a reconciliação nacional. E afirmou estar pronta a negociar com os generais.

A última vez que Suu Kyi falou em público foi em 2003 e ontem provou que mantém a sua capacidade de atrair milhares de pessoas - dez mil, de acordo com o Guardian, ficaram durante horas debaixo de um sol abrasador, incluindo grupos de monges, que em 2007 lançaram a "revolta açafrão", fortemente reprimida pelos militares.

A multidão juntou-se à frente da sede da Liga Nacional para a Democracia (LND), o partido que fundou em 1989 e que tem sido a principal força da oposição à junta militar. O diário britânico adianta que, ao contrário do que é habitual, as autoridades optaram por não formar nenhum aparato de segurança.

Ficou claro pelas suas palavras que Suu Kyi está pronta para assumir um papel político no país, um dos mais isolados do mundo. Arrancou com um tema espinhoso para o regime. "A base da liberdade democrática é a liberdade de expressão", afirmou. A censura prévia passa a pente fino notícias, livros, filmes, artes plásticas...

"Há seis anos que só ouço rádio. Acho que gostaria de ouvir agora algumas vozes reais", disse aos jornalistas já nos escritórios da LND. Quando as escutar, confirmará que é grande o peso das expectativas de milhões de birmaneses. "Queremos ouvi-la falar do futuro político da Birmânia..., da situação económica e social do país", comentou à AFP Nyi Min, militante da Liga. "Os preços aumentaram, o nosso pobre povo sofre. Gostaríamos de ouvir as suas soluções." E rematou: "O nosso país tem de se tornar democrático, o nosso futuro depende de Aung San Suu Kyi."

Mas a luta pela abertura política tem de contar com todos, avisou a dissidente perante os seus apoiantes. "A democracia não pode ter só um protagonista... É preciso erguermo-nos para defendermos os nossos direitos."

Suu Kyi afirmou ainda estar disposta a "trabalhar com todas as forças democráticas... Defendo a reconciliação nacional. Defendo o diálogo e, qualquer que seja a minha autoridade, irei utilizá-la para esse fim".

"Esta pobre mulher tem uma grande carga às costas e não faz milagres", ressalva o analista birmanês no exílio Aung Naing Oo à AFP. "Ela tem de dizer às pessoas para serem realistas, para serem pacientes. O caminho para a democracia é um processo, a democracia não chega de um momento para o outro."

A agência adianta que as próximas semanas serão fundamentais para medir se o seu apelo à união será capaz de ultrapassar as divisões.

A desunião passa pelo próprio campo pró-democracia, e pelo seu próprio partido que, formalmente, deixou de existir por ter boicotado as eleições de dia 7 (que deram a vitória a um partido da junta). Suu Kyi disse ontem que enquanto a LND estiver no coração dos birmaneses será relevante para o país.

Conversas com o general

A dissidente estendeu um ramo de oliveira à junta, afirmando que não tem ressentimentos para com aqueles que durante 15 dos últimos 20 anos a mantiveram presa. Um jornalista perguntou-lhe que mensagem gostaria de transmitir ao generalíssimo Than Shwe. "Vamos encontrar-nos para falar", foi a resposta.

Não seria uma estreia. Suu Kyi reuniu-se com o líder supremo em 1994 e 2002, sempre na condição de prisioneira. Se da primeira vez houve alguma troca substancial de pontos de vista, já na última o encontro parece ter-se resumido a um acto de relações públicas, referia o jornal Irrawaddy, publicado por birmaneses no exílio na vizinha Tailândia.

"Ela terá de ter cuidado com a forma como vai abordar o general Than Shwe e os militares", comentou ao jornal o major Aung Lynn Htut, um antigo membro dos serviços secretos birmaneses que em 2005 desertou para os Estados Unidos. "Terá de ter segurança."

É certo que Suu Kyi pode finalmente entrar e sair de casa sempre que quiser. Mas isso não chega para que se sinta livre. Lembrou que há 2100 presos políticos nas cadeias birmanesas. "Se o meu povo não está em liberdade, como posso eu dizer que estou livre? Nenhum de nós é livre."

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