"Se não conseguirmos consenso, seremos um país marginal"

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ENRIC VIVES-RUBIO

Dizer a verdade e gerar consensos, outra coisa seria imperdoável. É esta a fórmula que Artur Santos Silva defende para evitar mais uma oportunidade perdida.Por Teresa de Sousa

Herdeiro de três gerações de republicanos, presidiu às comemorações do centenário da I República e levou o país a discutir a sua história com uma maturidade e uma abertura nunca antes conseguidas. É um banqueiro que nunca abdicou de agir civicamente. Fundou o BPI, de que é hoje ainda o presidente. Artur Santos Silva, 69 anos, fala com o pragmatismo de um homem de acção e com a sabedoria que a experiência cívica lhe permitiu acumular. No discurso que pronunciou no dia 5 de Outubro disse que tínhamos de "mudar de vida". Rapidamente. É isso que explica nesta entrevista. Apontando as dificuldades, as responsabilidades, mas também as forças que acumulámos e que hoje podemos utilizar. A sua grande fé está nas universidades. O seu grande apelo é ao consenso. Não admite sequer a sua impossibilidade.

Disse no discurso do 5 de Outubro que tínhamos de "mudar de vida". É uma afirmação muito simples, mas muito forte. O que quis dizer?

Obviamente que a primeira coisa que isso significa é que estamos a gastar aquilo que não podemos gastar. O grande problema português, o maior, é o da competitividade da nossa economia. A falta de competitividade reflecte-se nas contas externas do país. Havendo desequilíbrio nas contas externas, tem de haver um financiamento do exterior para cobrir esse défice. Mas, se esse défice continuar, há uma espiral de crescimento da dívida externa que não é obviamente mobilizável e que não podemos sustentar.

Referi que era preciso mudar de vida, porque aquilo que mais me choca, desde o princípio desta crise, é que os portugueses continuaram a ter os mesmos comportamentos que tinham antes da crise.

Se olharmos para Espanha, vemos que a crise teve um impacto enorme na sociedade. Há três anos, a Espanha tinha uma taxa de poupança das famílias que andava perto dos 10 por cento, neste momento tem perto de 20. Portugal não saiu do sítio. As pessoas continuaram a viver como se estivesse tudo bem. Estou a falar de comportamentos...

Mas talvez a responsabilidade não seja só ou principalmente delas.

Claro. Devia ter havido um discurso claríssimo de que estávamos numa situação muito difícil e que nos iam ser pedidos sacrifícios. Essa era a mudança de vida. O discurso político tem de ser de verdade. É esse discurso que é mobilizador. Foi isso que nós fizemos em momentos críticos anteriores. O momento mais comparável com a actual situação, de que todos ainda nos lembramos, foi o que conduziu ao Bloco Central em 1983, quando o país esteve à beira de cessar pagamentos. Isso só não aconteceu porque houve uma política de verdade, mobilizadora, mesmo antes das eleições. Mário Soares disso o que era verdade muito claramente na campanha eleitoral de 1983: vamos ter de mudar de vida, porque temos de viver de acordo com as nossas possibilidades. Neste momento, é fundamental que isso aconteça, que as pessoas sejam mobilizadas pela verdade.

Porque a situação é mesmo muito difícil?

A situação é muito difícil, muito complexa. O nosso país tem fragilidades estruturais que não têm sido resolvidas. É preciso consciencializar as pessoas de que o país deu um salto enorme na qualidade de vida em inúmeras áreas - das infra-estruturas à educação ou à saúde - sem verdadeiramente ter a capacidade para o fazer. Investimos de mais, gastámos de mais, endividámo-nos de mais e agora vamos ter de fazer uma pausa. Durante dois ou três anos, vamos ter de pôr a casa em ordem para depois arrancarmos de uma maneira sustentável. Para termos um menor desequilíbrio externo, vamos ter de poupar mais, vamos ter de gastar menos, porque muito do que gastamos são bens importados que não temos condições para pagar.

Há dez anos que divergimos da Europa. Há dez anos que podíamos ter percebido que tínhamos de mudar de vida. A crise vai fazer-nos mudar de vida à força? É isso que quer dizer?

Logo que decidimos entrar no euro e logo que os efeitos dessa decisão começaram a ser sentidos nas condições em que o Estado se podia financiar, devíamos ter olhado muito mais para o défice primário - para a situação das finanças públicas sem o impacto dos juros. Mas o que tivemos foi um aumento grande da despesa pública que criou dificuldades à gestão de dois parâmetros fundamentais - o nível do défice público e o nível de endividamento do Estado. Foi isso que nos conduziu a esta última década, que foi muito negativa em termos do crescimento do produto. E isso aconteceu porque o Estado não geriu a sua casa como devia e não se tornou muito mais eficiente.

Depois, as empresas e os parceiros sociais também não interiorizaram o que significava estar no euro e a disciplina que isso nos exigia. Nós todos temos culpa. Tem culpa o Estado. Têm culpa as empresas e as famílias, na medida em que não foi feita uma certa pedagogia sobre o que podíamos e não podíamos fazer. A sociedade em geral, os media, as elites, não fizeram uma reflexão séria sobre tudo isto.

A I República falhou a modernização do país e pagámos por isso um preço muito alto. Na crise de 1983 ainda tínhamos uma meta que era a Europa. Hoje, com a crise mundial, europeia e nacional, dá ideia que estamos de novo entregues a nós próprios. Corremos o risco de perder uma segunda oportunidade?

Esta não podemos dar-nos ao luxo de perder. Primeiro, porque penso que foi fundamental estarmos no euro desde a primeira hora, como defenderam as principais forças políticas e as elites, para podermos participar nas grandes transformações que a Europa ia conhecer. Fizemos as opções certas. Não tirámos as ilações que devíamos, mas estamos sempre a tempo de o fazer. O que temos agora que fazer é gerar consensos que nos permitam ter políticas de médio prazo que resolvam os problemas estruturais que ainda não fomos capazes de resolver.

Que reformas é que exigem esses consensos?

A primeira tem a ver com a estrutura central do Estado. O que queremos que o Estado seja ao nível dos serviços centrais? É indiscutível que tem havido grande modernização em determinados domínios.

Mas é mais na prestação de serviços.

Exacto, na prestação de serviços, e menos no funcionamento. Temos de consensualizar, entre as principais forças políticas e sociais, como é que se vai fazer uma organização do Estado mais eficiente, que destrua menos recursos de que precisamos para modernizar o aparelho produtivo. Falo de administração central do Estado. E é preciso que as forças políticas principais, independentemente de estarem ou não no poder, consensualizem quais são as reformas fundamentais neste domínio. E isso tem a ver com a competitividade do país. O Estado não vai poder continuar a ser ineficiente, porque o país já não tem condições de suportar isso.

Depois, em relação às grandes funções do Estado - a justiça, a educação e a saúde - também é preciso encontrar consensos de médio prazo.

A educação, que era a bandeira da I República, continua a ser o nosso calcanhar de Aquiles?

Temos de começar por reconhecer que já demos um enorme passo em frente. Temos dez vezes mais alunos no ensino básico e secundário e o mesmo se passa nas universidades. Mas é indiscutível que, sobretudo em relação ao ensino básico e secundário, temos uma série de bloqueamentos. É isso que justifica o facto de terem sido raros os ministros da Educação que chegaram ao fim da legislatura...

Os bloqueamentos são as corporações e os seus interesses?

Claro. Os bloqueamentos são esses. Os interesses constituídos têm bloqueado as reformas. A última ministra da Educação, que foi imensamente corajosa a enfrentar esse interesses...

Acabou mal...

Acabou derrotada, num certo sentido. O que é determinante para a qualidade do ensino são as raízes que se adquirem entre os seis e os 10 anos. Se um miúdo, aos 10 anos, não tem os aspectos básicos da sua formação muito alicerçados, vai ter depois uma série de dificuldades que, no nosso caso, ainda se sentem muito. Também aqui precisamos de nos entender sobre aquilo que nos une e sobre o que há a fazer. E, em terceiro lugar, a saúde...

Foi onde se deu, apesar de tudo, um salto maior?

Foi, indiscutivelmente, onde demos um salto maior. Temos das melhores taxas de mortalidade infantil do mundo, tínhamos das piores da OCDE. Temos uma esperança de vida que aumentou imenso. Mas foi um salto para o qual ainda não tínhamos alicerces económicos e financeiros suficientes. Agora, o problema da sustentabilidade dessa máquina, com o envelhecimento e a quebra enorme da natalidade, vai ter efeitos pesadíssimos que nos obrigam a repensar muitas coisas. Confesso que é com a maior das dificuldades que vejo utilizar o nosso Serviço Nacional de Saúde pessoas que podiam pagar pelo menos parte dos serviços que lhe são prestados. É impossível sustentar o sistema tal como está e temos, mais uma vez, de fazer um acordo de longo prazo entre as principais forças políticas para que certas reformas se façam.

Em tudo o que disse pôs a tónica na palavra consenso. Ora, não há em Portugal uma cultura política de consenso.

Se não conseguirmos fazer isto, teremos uma situação que nos levará a sermos um país marginal.

Está a dizer que esta crise vai forçar isso?

Eu acredito que os portugueses, com o nível de educação e de entendimento dos principais problemas que hoje têm, não vão deixar de exigir que isso se faça. E as elites políticas não vão deixar de reflectir essa pressão. Se não o fizermos, não vamos a lado nenhum.

E, no curtíssimo prazo, é para mim inimaginável que não sejamos capazes de responder rapidamente a esta tremenda pressão externa a que estamos sujeitos. Se houver nova descida dos ratings, criar-se-á uma bola de neve imparável. É muito fácil perder a confiança dos mercados financeiros, é muito mais difícil recuperá-la.

Essa bola de neve pode levar-nos aonde? Até que ponto estamos à beira do abismo?

Acho que estamos mesmo. Se não tivermos um Orçamento que indique que vamos cumprir os compromissos que tínhamos assumido, ninguém nos vai emprestar um tostão. Não vai emprestar ao Estado e não vai emprestar aos bancos. E isso quer dizer que não vamos ter recursos para financiar a economia ou o Estado. Vai haver um corte brutal no crédito e vai haver um sofrimento enorme em toda a sociedade portuguesa. Insisto: é para mim inimaginável que isso não se faça. Os responsáveis têm de ultrapassar as suas diferenças de estilo, para assumirem a virtude cívica do republicanismo que é o serviço público. Não estou a falar do que aconteceu na República, estou a falar nos valores e nos ideais de civismo que estão muito ligados ao republicanismo.

Reconhece que hoje, em boa medida, se perderam muitos desses valores?

É verdade, mas também na I República os ideais eram uns, os valores eram uns, mas as coisas passaram-se de maneira muito diferente e tivemos o fim que tivemos. Há uma diferença: nessa altura, tínhamos 80 por cento de analfabetos, quando, na maioria dos países europeus, o analfabetismo já estava erradicado. Hoje, que temos um nível de informação e de educação muito mais alto, seria imperdoável que as nossas elites não compreendessem isso. O contrário seria uma crise social seriíssima, com rupturas que nós não queremos nem sequer pensar.

Podemos condenar-nos à irrelevância...

Neste momento, de todos os países chamados "periféricos" que estão na zona euro, somos o único que ainda não mudou de vida, que ainda não apresentou resultados na execução dos seus compromissos.

Estar no euro é muito bom para o país, para a economia portuguesa e para todos nós. Podemos financiar-nos em condições muito mais favoráveis. Mas temos de fazer esses consensos e decidir esses caminhos. Se esses consensos não forem conseguidos, não é por estar A ou B no governo que as coisas se vão resolver. É por isso que considero imperdoável que não haja, entre os políticos, um outro comportamento, mais civilizado, que traduza a consciência dos verdadeiros problemas nacionais. E ainda mais imperdoável entre políticos que têm o mesmo entendimento sobre a democracia representativa, sobre o papel da livre iniciativa e o papel do mercado.

Tivemos 50 anos de ditadura, tivemos de defrontar mudanças muito rápidas e muito complexas... Primeiro, foram os choques económicos, políticos e sociais do 25 de Abril e da descolonização. Depois, foi a corrida para entrarmos na Comunidade Europeia. Depois, foi responder bem no quadro europeu e o país ganhou uma credibilidade notável. A agenda de Lisboa, que foi profundamente influenciada pela presidência portuguesa [da União, em 2000], era tão válida que a nova agenda [de reformas] europeia, chamada 2020, praticamente a retoma. Não vamos perder tudo isso.

Falou no seu discurso do 5 de Outubro na qualidade da democracia, um problema que hoje não é só nosso. Já referiu que o nível de educação do país aumentou imenso nos últimos 30 anos. Em contrapartida, dá ideia que o nível das elites políticas andou em sentido contrário. Ou não?

A razão principal é que as elites portuguesas - e o país em geral - não reclamam outros políticos, não reclamam melhores políticos. Poderíamos simplesmente dizer que temos os políticos que reflectem o que é a sociedade portuguesa. Não estou nada de acordo com isso. Acho é que há uma inércia, uma passividade nas elites portugueses, que não reclamam, não intervêm, não exercem, no fundo, as chamadas "liberdades positivas". Que a liberdade não é só a liberdade negativa - eu não quero que toquem na minha esfera, nos meus direitos. A liberdade são direitos e são obrigações. A obrigação de participar para construir um país melhor é um dever daqueles que são os melhores e os mais preparados.

Deixe-me citar-lhe um pequeno trecho incluído no primeiro número da Seara Nova, na sua declaração de princípios, precisamente sobre a renovação das elites: "Renovar a mentalidade da elite portuguesa, tornando-a capaz de um verdadeiro movimento de salvação; Criar uma opinião pública nacional que exija e apoie as reformas necessárias; Defender os interesses supremos da Nação, opondo-se ao espírito das oligarquias dominantes e ao egoísmo dos grupos, classes e partidos; Contribuir para formar, acima das Pátrias, a união de todas as Pátrias, uma consciência internacional bastante forte."

Isto é hoje absolutamente actual.

Olhemos para o futuro. Vivemos até agora numa economia que foi muito organizada em torno do crédito ao consumo interno e ao imobiliário. Só agora começamos a fazer coisas que podemos vender de forma competitiva lá fora. Como é que saímos daqui para outro modelo?

O que aconteceu foi que o crédito mais fácil às famílias foi sobretudo para a aquisição de habitação própria. E isso está feito. A percentagem de população com casa própria é hoje, em Portugal, das maiores da Europa.

Fizemos grandes investimentos em infra-estruturas, às vezes até de mais. Mas isso está feito e vai ter também um impacte positivo na circulação de pessoas, na redução da importância do litoral e da valorização do interior, corrigindo uma desigualdade muito grande. Foi por isso que eu falei de uma pausa.

E agora vamos para onde?

Precisamos de um investimento de muito maior qualidade. Tem de ser sobretudo orientado para criar emprego, para reduzir a dependência externa, para resolver problemas de sustentabilidade da economia. Sobretudo, o Estado tem de fazer muito menos do que tem feito em termos de investimento. Nos próximos tempos, não haverá meios para fazer outras coisas a não ser as que contribuam para valorizar o nosso potencial humano. Tudo o que façamos na educação será bem feito, porque paga a longo prazo. E vamos ter de concentrar os investimentos sobretudo no sector produtivo, porque é aí que podemos gerar emprego sustentável e reduzir a nossa dependência do exterior.

Voltamos à mudança de vida. Maior poupança - gastar menos e poupar mais. Investir muito melhor. Para isso temos de ter políticas que estimulem esse investimentos.

E que atraiam investimento estrangeiro?

Mesmo assim, o país deu uma resposta fantástica nestes últimos 20 anos. Há 20 anos, tínhamos as nossas exportações dependentes ou dos recursos naturais ou dos sectores tradicionais da nossa primeira industrialização, digamos assim. Há dez anos, já tínhamos uma estrutura produtiva voltada para o exterior profundamente alterada, em que a indústria automóvel ganhava um peso muito maior. Hoje, se analisarmos a composição das exportações, verificamos que há uma percentagem muito maior de bens com elevado conteúdo tecnológico - médio ou alto. Está a dar-se uma alteração importante do tecido económico, só que ela tem de acelerar. Neste mundo globalizado, temos de produzir bens com muito mais valor acrescentado e com muito mais inovação. E para isso precisamos naturalmente de atrair investimento estrangeiro.

Conseguiremos fazer isso com a rapidez suficiente para não perdermos o comboio das mudanças enormes a que estamos a assistir a nível da economia global?

Acredito que sim. Temos hoje uma capacidade instalada na geração de conhecimento que é notável.

Está a falar nas universidades?

Exactamente. Neste mundo em que vivemos é fundamental, como todos reconhecem, a capacidade para investigar e transformar essa investigação em valor económico, passando para as empresas, para o Estado, para a sociedade, o saber que se cria nas universidades. E a verdade é que o nosso país deu neste domínio um salto impressionante.

No princípio da década de 90, tínhamos qualquer coisa como 60 doutorados por ano. Neste momento, temos 1600 doutorados no país e no estrangeiro. Temos, por mil habitantes activos, sete doutorados, quando a média da União Europeia é de seis.

E esta realidade pode traduzir-se em muitas coisas. Quando eu digo, por exemplo, que é preciso fazer uma reforma do Estado, também estou a pensar nas universidades e no conhecimento que elas criam. Temos portugueses de altíssimo nível que podem ajudar a fazer as coisas bem feitas. Temos hoje uma capacidade de gerar conhecimento a todos os níveis que é preciso aproveitar. Não é só para transformar esse conhecimento na produção de um bem que é exportável. É também utilizar isso em relação à reforma do Estado e às mudanças sociais.

E esse salto que mencionou na nossa capacidade científica pode reflectir-se na economia real de forma rápida? O que vemos hoje é, por exemplo, a dificuldade das empresas em absorver licenciados. O nosso tecido empresarial ainda não consegue absorver esse conhecimento?

A resposta é não. Não consegue. Estamos ainda longe de usar essa capacidade instalada. O salto que demos tem de ser acompanhado por várias coisas. As próprias universidades têm de ser muito mais pró-activas. Sou presidente do conselho geral da Universidade de Coimbra, e por isso sou suspeito, mas acho que foi muito positiva a alteração que houve no regime das universidades e que chamou pessoas de fora para os seus órgãos de topo. Não para geri-las, mas para definir políticas e estratégias, com autonomia e com liberdade. O que é importante é que as universidades também assumam que têm a obrigação de contribuir de forma mais activa para a transmissão desse conhecimento. Têm de ter estruturas que lhes permitam ir vender essa capacidade de valorizar o que as empresas ou o Estado estão a fazer, onde haja possibilidade de criar valor económico.

O professor António Nóvoa [reitor da Universidade de Lisboa] escreveu recentemente uma coisa que traduz bem o que estou a dizer [A República e a Universidade, in PÚBLICO, 5 de Outubro]: "Neste lugar não cabem pequenas ambições. A República criou a Universidade. A Universidade ajudará a recriar a República."

Mas também é muito importante que se estimulem as empresas para que sejam pró-activas e busquem esses valores. Tem de ser um movimento de dois sentidos.

É o único caminho que temos?

É o único. Não vejo outro. As universidades têm de fazer isto, deslocando os seus investigadores para as empresas. Na própria carreira dos docentes universitários e dos investigadores, temos de assegurar que quem fizer isso é beneficiado e não penalizado. Na Inglaterra, mais de 80 por cento dos investigadores estão a trabalhar dentro de empresas em regime total ou parcial, mas a própria China já tem próximo de 60 por cento e nós estamos apenas com pouco mais de 30 por cento. Temos de ir por aí.

E está convicto de que já temos os recursos suficientes para isso?

Deixe-me dar-lhe um exemplo. Em 2000, quando foi adoptada a Agenda de Lisboa, a Europa tinha em média 1,8 por cento do PIB para a investigação científica e tecnológica e propunha-se passar a 3 por cento em 2010. Ficou exactamente na mesma. O nosso país, que tinha 0,7, comprometeu-se a chegar a 1,8 por cento nessa data, fixando também como objectivo que dois terços desse esforço passassem a ser do sector privado. Nessa altura, tinha pouco mais de um quinto, o resto era tudo Estado. Neste momento estamos quase em 1,8, passámos a Espanha e a Itália. E mais de metade já é o sector privado.

O que está a dizer é que temos de competir na economia do conhecimento. Mas começa a surgir um discurso que pode apontar em sentido contrário: a ideia de que, como as coisas na Europa nos correm mal, devemos virar-nos de novo para as Angolas e os Brasis. Por vezes, isto soa a discurso da facilidade.

Temos de estar em todo o mundo, como estamos na Europa. Temos de vender bens e serviços globalmente. Neste mundo globalizado, quem fizer melhor do que nós bate-nos, seja qual for o país. O que acho é que temos uma excessiva dependência da Europa em termos de trocas comerciais e que temos de diversificar bastante. Houve recentemente um salto enorme num novo mercado que foi Angola. Mas temos de pôr na nossa agenda uma série de novos mercados onde estamos pouco presentes. O Norte de África, a começar por Marrocos. Temos de olhar para o Médio Oriente e para o Golfo. São países com uma grande poupança que estão a investir em todo o mundo.

E depois o Brasil...

Evidentemente. O maior país da América Latina, a viver um momento extraordinário, uma sociedade democrática com recursos naturais estratégicos, uma indústria poderosa, um sistema financeiro sólido e um clima social que está a melhorar bastante. É um grande vencedor e nós temos de saber aproveitar muito melhor esta relação, sendo certo que ao nível dos líderes políticos isso tem sido feito de ambos os lados. Temos de ter talento para fazer com o Brasil uma outra parceria estratégica, explorando um capital fantástico que é a história, a língua e a proximidade de culturas e este facto novo que foi termos recebido muitos imigrantes brasileiros.

Mas não podemos olhar apenas para o Brasil, quando falamos de BRIC [Brasil, Rússia, Índia, China]. Acho que são fundamentais a China e a Índia. São países com que tivemos relações históricas importantes, e é indesculpável que não esteja nas nossas prioridades aproveitar esse passado histórico. Isso tem de estar nas prioridades políticas, mas tem de estar também na agenda das empresas.

Temos, no fundo, de olhar para todo o mundo e creio que temos hoje condições para fazer isso.

Esta nossa crise não nos vai também fazer ir para fora? Os portugueses, os jovens, mesmo os mais qualificados, que parecem condenados à precariedade não vão voltar a tentar encontrar a sua vida lá fora, como aconteceu noutras épocas? Não é isto um risco grande para o nosso futuro?

Se nós não tivermos capacidade para criar empregos em Portugal, isso vai acontecer. É preocupante, sobretudo porque as pessoas fizeram uma aposta enorme na educação, com as prioridades certas. O problema nem é só nosso. Na Europa, a taxa de desempregados dos jovens qualificados é superior a 20 por cento, o que é brutal.

Mas temos de encarar as coisas de forma diferente. Numa das iniciativas que organizámos no âmbito da comemorações da República, trouxemos cá o filósofo alemão Jurgen Habermas, que falou muito na questão da cidadania de uma forma muito interessante. Hoje, já não somos apenas cidadãos dos nossos países - há uma cidadania transnacional. Nós, portugueses, somos europeus e cidadãos do mundo. Tem de haver um esforço no sentido de isso ser mais vivido. E nós, europeus, ainda não partilhamos essa cidadania de uma forma suficientemente forte. Vamos ter de avançar para um muito maior federalismo político na União Europeia, temos de ter muito mais Europa a nível político. As coisas também passam por aí.

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