Aceitar voos era difícil por causa dos media e dos "esquerdistas" dentro do PS

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A reunião entre Sócrates e Bush ocorreu dez dias depois da luz verde JIM WATSON/AFP

El País divulgou os telegramas que confirmam que o Governo deu luz verde à passagem de prisioneiros que saíam da base de Guantánamo

O primeiro-ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE) autorizaram que o território nacional fosse sobrevoado por aviões norte-americanos com prisioneiros repatriados da prisão de Guantánamo, e a utilização da base aérea dos Açores nestas operações, publicou o El País ontem à noite, na sua edição online. O diário espanhol cita diversos telegramas diplomáticos enviados pela embaixada dos Estados Unidos em Lisboa ao Departamento do Estado, que constam dos 251 mil documentos recolhidos pela WikiLeaks, sublinhando que esta autorização nunca foi publicamente reconhecida pelas autoridades portuguesas.

"Sócrates aceitou permitir o repatriamento de combatentes inimigos de Guantánamo através da base das Lajes", escreve em telegrama de 7 de Setembro de 2007 o chefe da representação diplomática dos EUA em Lisboa, Alfred Hoffman. "Foi uma decisão difícil devido às críticas constantes dos meios de comunicação portugueses e de elementos esquerdistas do seu próprio partido à actuação do Governo na controvérsia dos voos da CIA", diz. Esta nota, enviada dez dias antes de uma reunião de George W. Bush com José Sócrates, refere que a autorização nunca foi tornada pública.

Alguns meses depois, questionado no Parlamento por Francisco Louçã sobre se o Governo autorizara ou tivera conhecimento "de qualquer transporte de prisioneiros da CIA por território português para o gulag de Guantánamo", assegurou: "Consultei todos os membros do Governo com responsabilidades neste domínio e devo dizer que o Governo nunca foi consultado sobre essa possibilidade nem nunca autorizou [o sobrevoo do espaço aéreo ou a aterragem na base das Lajes de aviões destinados ao transporte ou transferência de prisioneiros]. Posso responder-lhe em nome deste Governo que nunca aconteceu termos sido consultados e termos autorizado. Estes dois actos nunca existiram."

11 de Setembro de 2007

Noutro telegrama, enviado em 11 de Setembro de 2007, o embaixador refere a posição de Luís Amado. Hoffman assinala que Amado autorizou o repatriamento através das Lajes sob a mesma premissa, "caso a caso em determinadas circunstâncias". Já em Setembro de 2006 o embaixador relatara uma reunião com o chefe da diplomacia portuguesa sobre os voos de repatriamento, na qual o ministro se compromete a fazer todos os esforços para conseguir uma cooperação de Portugal, desde que haja transparência total da parte norte-americana. "Se não o fazemos bem pode ser um tremendo fracasso", escreve Hoffman, citando uma frase de Amado. Citando um outro telegrama, o El País escreve que o ministro admitiu que "os alegados voos da CIA poderão ter sobrevoado Portugal, mas acrescentou que o seu Governo não tem que se envergonhar de nada".

No passado dia 7, o MNE, ouvido no Parlamento, assumiu que foram feitas "diligências" por parte dos EUA, distinguindo "voos da CIA" e voos de repatriamento. No entanto, fez questão de garantir que, "se tivesse havido operação [de repatriamento] ela teria sido pública, para ficar sob escrutínio público." Ao PÚBLICO, a assessora de imprensa do MNE, Paula Mascarenhas, remeteu para as declarações de Amado. "Não houve nada que o Estado português tenha tido conhecimento", disse.

O assessor de Sócrates

Já em Janeiro de 2007, o embaixador escrevia para Washington dando conta de um outro dado relevante: o assessor diplomático de Sócrates, Jorge Roza de Oliveira, tinha assumido que alguns voos da CIA sobrevoaram Portugal, o que "constitui o primeiro reconhecimento que nos foi feito até agora por um funcionário do Governo português", escreve o El País. Ao PÚBLICO, Roza de Oliveira, que já não desempenha aquelas funções, negou em absoluto que o tenha feito: "Não posso ter dito isso, porque nunca tive qualquer conhecimento, pessoal ou impessoal, sobre esse assunto. Como assessor diplomático do primeiro-ministro, não tinha mais conhecimento do que um jornalista e não ouvi mais que conversas de corredor", afirma.

Entretanto, o Bloco de Esquerda enviou um requerimento ao primeiro-ministro, questionando-o sobre se o seu gabinete "teve conhecimento de voos, provenientes de Guantánamo, que tenham atravessado o espaço aéreo nacional ou utilizado instalações aeronáuticas". Os bloquistas querem ainda saber, em caso afirmativo, quais os voos, quando se realizaram, quem eram os passageiros e qual o destino. E se o Governo autorizou esses mesmos voos.

"Aversão" a Ana Gomes

O que Roza de Oliveira não nega é que tenha tido "milhões de encontros" com o embaixador Hoffman. Num deles, segundo o mesmo telegrama, terá dito que Ana Gomes "é uma senhora muito excitada que é pior que um rottweiler solto". O assessor rejeita esta frase: "O que posso ter dito, porque tinha um rottweiler na altura, é que a diferença entre Ana Gomes e um rottweiler é que este larga" aquilo a que se agarra. "Era uma expressão que eu usava", afirma.

A eurodeputada é protagonista noutra conversa, desta vez entre Hoffman e os dirigentes do PS José Lello e Paulo Pisco. "Lello expressou uma clara aversão a Gomes, embora tenha dito que o PS não pensava em expulsá-la porque seria contraproducente", escreve o diplomata. Na nota, sublinha que Lello assegurou que os principais líderes do PS, incluindo Sócrates, "são claramente pró-americanos", e desqualificou a ala esquerda do partido, que qualificou de "alegristas". Ao PÚBLICO, Lello diz não se lembrar da reunião, mas admite que "possa ter acontecido". E nega que possa ter dito que os dirigentes do PS são "pró-americanos". "Tenho a experiência diplomática suficiente para saber que jamais diria que sou pró-americano. O que não sou, isso sim, é anti-americano." Sobre as frases que lhe são atribuídas sobre Ana Gomes, Lello admite: "Não tenho aversão. Tive e tenho divergências políticas com Ana Gomes. Isso é público." com L.B.

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