A herança

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Portugal é a Grécia? Portugal não é a Grécia? Há quem ache que sim, há quem ache que não. Mas quando o assunto vem ao de cima, vem sempre inevitavelmente por causa de uma nova batalha campal na Praça Sintagma, entre a polícia e uns milhares de manifestantes, a que a troika tornou a tirar dinheiro. Desta última vez, muita gente comparou orgulhosamente a serenidade e a ordem da manifestação da CGTP no Terreiro do Paço com os cocktails-Molotov de Atenas. Parece que, afinal, os portugueses são um povo cordato e civilizado, que não deve preocupar a "Europa" e que os gregos, coitados, não merecem muita confiança: falsificaram as contas do orçamento, não cumpriram os programas que tinham assinado e, ainda por cima, envolveram-se numa balbúrdia interna.

Porque será isto? Porque será que os países da periferia se portam tão mal? Em primeiro lugar, talvez porque são países recentes. A Grécia só se tornou independente em 1829-30, reinava por cá o sr. D. Miguel e D. Carlota Joaquina. A reunificação de Itália só chegou em 1870 e, mesmo assim, em conflito com o Vaticano. E a Irlanda só se emancipou da Inglaterra em 1922. O que distingue a periferia, com a excepção do nosso pequeno canto, é, em grosso, a notória ausência de um Estado central forte. A unidade italiana continua duvidosa. As ligações da Irlanda com a América enfraquecem qualquer governo interno. E a Grécia, fora uma geografia notoriamente impossível, passou, em 50 anos, pela invasão e ocupação alemã, por uma guerra civil e por uma ditadura militar de coronéis. A tudo isso, nós fomos poupados.

Depois do episódio da República, que mesmo assim não afectou - ou afectou pouco - o interior do país, desde meados do século XIX nunca o país deixou de viver num Estado poderoso e vigilante, que o trazia vigiado por um Exército disperso pela província e reforçado em Lisboa e no Porto. Salazar, de resto, organizou, alargou e consolidou a repressão. Com alguns brevíssimos sobressaltos pelo meio, a herança que a ditadura legou foi uma herança de conformismo e obediência, que permanece viva, e frequentemente dominante, no Portugal de hoje, com a sua complacência e a sua democracia. Verdade que o PREC não se recomenda. Mas não durou muito e a velha ordem depressa voltou com a sua dignidade postiça e as mediocridades do costume. A troika escusa de se preocupar. Cá na terra nós fazemos sempre, ou quase sempre, o que nos mandam. E não gostamos nada de aventuras.

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