Chullage não nos enche a barriga, parte-nos o coração

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Rapressão 1 é um tremendo manifesto sobre o estado das coisas, com palavras de alta precisão e um imenso cuidado com as batidas.

Há uns tempos, Chullage tinha emprego: trabalhava em projectos sociais, nomeadamente no Centro de Inclusão e Arte do Seixal. Orientava sessões com a comunidade juvenil em escolas do ensino básico, e também trabalhava com a comunidade sénior. Fazia intervenções com os miúdos, em que estes pintavam murais ao abrigo de parcerias que visavam privilegiar a inclusão social através da arte e a requalificação urbana. Ensinava escrita criativa.

Agora, Chullage não tem emprego. Sentado numa esplanada lisboeta, reflecte sobre o que está a acontecer aos projectos de integração das comunidades carenciadas: "O que me impressiona nestes projectos é que só existem quando há dinheiros do QREN. Não há uma estrutura: quando não há subsídios o apoio às comunidades desaparece". A partir desta ideia atravessa um mar de referências, fala durante longo tempo sobre violência e pobreza, cita Loïc Wacquant e o seu Violência nos Subúrbios para pensar o actual estado da Europa.

A história de Chullage podia ser a história de qualquer trabalhador português, ou, mais especificamente, de qualquer licenciado em Sociologia como ele. Mas acaba por tornar-se um pouco mais, porque é este cenário "sufocante, desesperante" de falta de soluções, de portas fechadas, que molda Rapressão 1, o seu mais recente disco, obra política e tremendamente furiosa.

Disco de uma exactidão sonora admirável, em que o beat a palavra são medidos com fita métrica, Rapressão 1 anda a ser pensado há muito tempo mas só começou a ganhar forma nos últimos dois ou três anos. "A primeira canção do disco, De volta", conta o rapper, "foi escrita há muito tempo. Tinha-a num caderno e resolvi acabá-la. Há mais algumas assim. Depois há uma segunda fornada de canções que foram acabadas nos últimos meses".

As diferentes épocas de criação dos temas não tornam o disco heterogéneo, porque o momento político já se arrasta e adivinha há anos. Ele leva o seu tempo a explicar-se: "Esta situação, de fim do Estado Social, de flexibilização total do mercado de trabalho que transforma as pessoas em coisas descartáveis, tudo isto tem muito tempo. Nos EUA vem do tempo do Reagan, que criou cerca de 70% de desemprego na comunidade negra. Existiu em Londres com a Thatcher. Já tinha chegado à Argentina e à Jamaica, mas na Europa, com a nossa tradição humanista, demorou mais tempo. É uma revolução silenciosa: vais perdendo este e aquele direito e quando dás por ela já está, estamos nisto".

Tudo insustentável

Chullage gosta de números, o que é natural em quem estudou Sociologia. É um conversador nato, que tanto fala sobre futebol como demonstra um imenso entusiasmo a descrever os desenhos de som em que está a trabalhar no curso de Som da Restart, em Lisboa. Não debita palavras a mil à hora (excepto, talvez, quando fala de funk), antes denota em conversa as marcas da sua arte: as palavras vão saindo com um fluir manso, e devagar leva a água ao seu moinho. O rapper continua a traçar o contexto em que Rapressão 1 nasceu: "Portanto, as minhas rimas já vinham falando disto há muito tempo. Só que agora a miséria é patente. Andamos a contar o número dos pobres que não têm nada, mas há ainda os outros: se ganhas 600 euros e tens um filho, és um desgraçado. Recebes o recibo, largas 150 euros para a Segurança Social, pagas IRS e não tens subsídio de desemprego. Vais morar para fora de Lisboa porque não tens dinheiro para renda e com o que gastas nos transportes públicos, com os novos preços, quase não poupas". A situação pode ser resumida assim: "Está tudo insustentável".

A diferença entre a penúltima citação e a última é esclarecedora do modus operandi de Chullage em Rapressão 1: por vezes ele fala de política, outras usa-a como ponto de partida para contar uma história. Nascido em Lisba mas de família cabo-verdiana, diz que "números são números e ninguém se identifica com eles". As histórias, diz, são mais eficazes: "Uma coisa é dizeres que há 15% de desemprego, outra é contares a história de um desempregado e de como o filho vai deixar de estudar, etc. Ou mostrares que num momento és o oprimido, imagina, pelo teu patrão, e no outro o opressor, se bates na mulher ou nos filhos. Isso tem um impacto maior. A humanidade faz isto há milhares de anos e vai continuar a fazer, de uma maneira ou de outra. Sempre foi assim que se passaram os valores para as gerações seguintes".

Os rappers sempre deram o máximo valor às palavras mas no caso de Rapressão 1 a necessidade de "ser entendido", de que "as pessoas percebessem mesmo as rimas" levou a uma mudança sonora: Chullage limpou o mais que pôde as rimas e desacelerou o ritmo. "Percebi que não fazia sentido estar a fazer este tipo de histórias se ninguém percebesse nada. Tinha de ter menos sílabas por compasso, um ritmo mais lento e aprender a acentuar melhor as sílabas essenciais".

Exemplo disso é Já não dá, canção de beat lento com cordas por cima e um espantoso equilíbrio entre tristeza e raiva - uma canção com tremenda precisão lírica: "Eles choram pelas acções perdidas no PSI 20/ o meu people aqui chora pela refeição seguinte". Há mais uma mão-cheia de temas neste registo, um deles, Barrigas vazias e corações partidos, pessoalíssima e comovente canção, em que rima "fashion"com "creche, man", numa tremenda demonstração de talento.

Estas duas faixas seriam suficientes para fazer de Rapressão 1 um acontecimento. Mas não para Chullage: ele quer mais e já este ano haverá novo disco, a continuação deste ou um de spoken-word com guitarra eléctrica, contrabaixo e piano. Fala com o mesmo entusiasmo com que explica como trabalhou o som deste álbum, onde pôs o som de uma tarola ou de um bombo. Nesses momentos não é o pai sem emprego, o sociólogo que só vê desespero no seu povo: é de novo o puto que encontrou no hip-hop o seu refúgio.

O entusiasmo dele é, também, a nossa esperança.

Ver crítica de discos pág. 39 e segs.

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