Subúrbios de todo o país desceram ao Alto de São João para última despedida a Snake

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Centenas de pessoas assistiram ao funeral rui gaudêncio

"Snake era clean, clean, 100% clean", diz Laton Kalibrado, do grupo angolano de hip-hop. Veio de Luanda despedir-se do amigo que sabia "unir as pessoas"

A princípio eram poucas dezenas de pessoas e nada fazia prever a dimensão que viria a ter a cerimónia. Mas pouco demorou para que, ontem de manhã, a Igreja de Santa Clara de Chelas e todo o espaço em volta se enchesse para a missa em memória de Nuno Miguel Rodrigues (Snake), morto por um agente da PSP na madrugada de segunda-feira.

Quando o cortejo fúnebre chegou ao Cemitério do Alto de São João, centenas de pessoas já se tinham juntado à homenagem. Muitas vestiam T-shirts ou camisolas com fotografias de Snake gravadas.

Baixinho, ouviram-se palavras de revolta, mas tudo se passou na calma, como pedira a família. Na missa, também o padre, Frei Fabrizio Bordin, dissera: "Não podemos ficar calados. E o silêncio poderá falar mais alto do que as balas das armas." No fim, notou a forma digna e solidária como tudo se passou, mostrando uma realidade que contrasta com a imagem negativa que a maioria das pessoas tem dos bairros, disse ao PÚBLICO.

Pessoas de todas as idades, jovens dos subúrbios de todo o país, vieram para este último adeus a Snake. Vieram amigos e conhecidos do Porto ao Algarve, mas também de Londres. De Angola, veio Laton Kalibrado (João Paulo Cordeiro), do grupo de hip-hop angolano Kalibrados.

Uma coisa em especial este músico de 25 anos se lembra de ouvir Snake dizer: "Conta comigo, irmão." Por isso, "estivesse onde estivesse no planeta", viria a Lisboa para uma última despedida ao amigo.

Veio pela sua amizade, pela "sua personalidade". Conheceram-se em 2006 e desde então Snake levara-o do Porto ao Algarve, a conhecer os amigos que tinha nos subúrbios mais estigmatizados. "Por onde passava unia as pessoas, do Norte ao Sul, de dentro e de fora do país", diz com admiração.

Os dois amigos conheceram-se não através da música, onde Snake dava os primeiros passos, mas "na noite". "Snake era um boémio assumido, gostava da boa vida, do tempo de qualidade. Era uma pessoa regrada à sua maneira, sempre tranquilo, clean, clean, 100% clean. Nada de drogas, nada de álcool, mas sempre, isso sim, um sorriso na cara."

No mar de gente, que se acumula, algumas pessoas com flores não conseguem chegar ao caixão, e só no fim, mais de uma hora depois, depositam os ramos que trazem nas mãos. Cada ritual da despedida da mãe, da namorada e dos três irmãos se prolonga, adia o fim. E as muitas pessoas presentes, amigos e conhecidos, esperam num silêncio apenas interrompido por palmas e prantos.

"Obrigada a todos!", exclama em lágrimas o irmão mais velho de Snake, Jorge Rodrigues. Algumas mulheres e jovens, rapazes e raparigas, choram em silêncio. "Eu não acredito... eu não acredito. Ele era bonzinho, já está no céu", ouve-se uma senhora dizer. Para pouco depois, já com o caixão fechado, outra chorar por não ter dado um último beijo a Nuno. "Eu queria dar-lhe um beijinho... Ele era o meu menino."

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