Jogos de tabuleiro para gente grande

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Às quartas-feiras o restaurante Passion Fruit, em Lisboa, enche-se de jogadores Fotografia Ricardo Silva

As consolas e os jogos online puxam a diversão para dentro de casa e as novas tecnologias tomaram conta dos jogos de tabuleiro. Mas o fenómeno dos encontros de boardgamers também está a crescer

Às cinco da tarde, João Ferreira já está a jogar. Há cinco anos que participa "muito assiduamente" nos encontros semanais de jogos de tabuleiro. "Sou capaz de ter faltado duas ou três quartas-feiras nestes cinco anos", diz. Lançam-se dados, recolhem-se moedas, tiram-se cartas e avançam-se peões. Definem-se estratégias, preparam-se ataques, disputam-se terrenos, contam-se pontos. Várias possibilidades numa escolha difícil. São tantos os jogos que se torna complicado decidir. Saber jogar é apenas uma questão de tempo. Tal como João, há sempre alguém pronto a explicar as regras.

"Há semanas que venho e quase não jogo porque estou a explicar." Semanalmente, às quartas-feiras, o piso 1 do restaurante Passion Fruit, em Lisboa, enche por causa dos jogos de tabuleiro. Desde 2006 que o grupo BoardGamers de Lisboa organiza estes encontros com jogos que fogem ao normal. Aqui não há damas, xadrez, Monopólio ou Pictionary, mas há The Settlers of Catan, Puerto Rico, Jenga ou Dixit. São chamados jogos de tabuleiro modernos. Distinguem-se dos convencionais pelo factor comercial. "Muita gente não sabe onde os comprar", explica João, 32 anos, que tem uma colecção de 70 jogos. Não os leva todos para os encontros de quarta-feira. Traz os que quer jogar e tem facilidade em explicar a outros.

Há quem os traga em grandes sacos. Outros, mais organizados, separam-nos em caixas com pegas. Tudo para facilitar o transporte. O grupo BoardGamers de Lisboa só tem um jogo próprio e é graças a esta partilha que é possível jogar todas as quartas. "É só passar e pegar num jogo sem problema", afirma Vasco Chita, um dos organizadores. Questões sobre as regras são rapidamente esclarecidas pois "o objectivo é ninguém ficar parado". Conjuntos de três a seis pessoas reúnem-se nas mesas. Depois de escolhido o jogo e explicadas as regras é vê-los jogar.

Na sala há um "barulho saudável", como o caracterizam os jogadores. É um ruído que não incomoda, fruto dos jogos que puxam sempre a alguma discussão e ao explicar de jogadas. Depois dos resultados apurados, moedas contadas, territórios destruídos e metas cumpridas, nova ronda se seguirá. Com outros jogos, outros objectivos, outros ruídos, outras pessoas.

Desde a formação do grupo, há cinco anos, que o número de participantes não parou de crescer. "No início éramos cinco gatos pingados, hoje somos cerca de cinquenta regulares, e para muitos é bem mais religioso que a missa", diz Vasco Chita, 33 anos.

Encontro sagrado

São "o encontro sagrado" para Nuno Carreira, de 31 anos. Foi há ano e meio que um amigo lhe deu a conhecer o local e desde aí passou a vir semanalmente. Considera que a chave dos encontros é o convívio que se cria. "Os jogos passam por ser uma forma de as pessoas fazerem novos amigos." De início Nuno não conhecia ninguém, hoje os outros jogadores são "uma segunda família".

Torna-se mais complicado organizar algo fora das quartas-feiras. "Se combino jogar com amigos na segunda dizem-me que daqui a poucos dias vamos estar juntos", queixa-se. Ainda assim procura levar o espírito dos encontros quando vai a casa de colegas. Para qualquer lado que vá, não dispensa um ou outro jogo. "Gosto de andar prevenido, de ter uma coisa para cada situação."

Filipe Cortesão tem 28 anos e para ele "é ouro sobre azul sair do trabalho e vir para aqui jogar". Frequenta os encontros há menos de um ano e diz que "dá sempre vontade de voltar". O convívio chama-o, mas o lado dos jogos também o fascina. "Não estava muito alerta para o facto de haver tantos jogos estranhos e diferentes. Descubro sempre desafios novos, jogos giros, bem inventados e imaginados que me motivam a vir cá."

Os planos de lazer fá-los para os outros dias da semana. "As quartas-feiras já estão reservadas." Em casa, tenciona alargar a sua colecção que, por enquanto, tem apenas seis jogos. "Foi uma coisa natural começar a comprar jogos", confessa.

Nuno Silva, de 32 anos, não compra nenhum jogo sem o ficar a conhecer primeiro nos encontros de BoardGamers. Inicialmente, "comprava jogos de que não sabia se ia gostar". Agora, antes de investir, quer saber em com o que pode contar. "Aqui há sempre um maluco que compra antes de experimentar. É uma vantagem vir e poder jogar dois ou três [jogos] novos, todas as semanas." É adepto do espírito dos encontros de jogos de tabuleiro. "Se vejo alguém sentado sem fazer nada penso: isto assim não pode ser. Vou logo lá e começamos a jogar alguma coisa." Considera-se "omnívoro" quanto às suas preferências. "Gosto de jogos abstractos, temáticos, cooperativos, de dados, sem dados, com arbitrariedade e sem arbitrariedade." Não é pelo facto de serem bons ou maus que os elege. "Gosto dos jogos pela vontade que tenho em voltar a jogá-los."

Mas não é só a satisfação de jogar que tira João Ferreira de casa, da namorada e da televisão. "É pelo companheirismo, por conviver e estar com outras pessoas. Se fosse só para jogar ficava em casa com a consola."

Já Diana Resende, 29 anos, não é tão assídua como outros boardgamers, mas procura juntar-se ao grupo "de duas em duas semanas, pelo menos". Foi através de amigos que ganhou o gosto por jogos de tabuleiro. Para ela é uma mais valia "conhecer pessoas e estar com elas neste contexto". É assim que relaxa depois de um dia de trabalho como professora do 1.º ciclo do ensino básico. É também assim que sente a adrenalina provocada pelo desafio. "Muitos destes jogos são estimulantes para a mente." Decide o que jogar de acordo com a disposição do momento. "Num dia em que estou mais cansada escolho jogos mais light, noutros, escolho um mais intelectual ou complexo." Para Vasco Chita, catalogar os jogos é um processo complicado. "Cada jogo sai sempre fora dos seus padrões." Ainda assim define duas vertentes "muito genéricas": a escola americana e a europeia ou alemã. "A escola americana caracteriza-se por jogos com grande factor de sorte, pela eliminação de jogadores e pela longa duração. Por sua vez, a alemã tem jogos mais curtos, pouco factor sorte e necessidade de tomar decisões."

O movimento alemão surgiu depois da Segunda Guerra Mundial numa tentativa de afastar tudo o que vinha dos EUA. "A escola alemã é muito mais pacífica do que a agressiva americana." Há até a designação de Ameritrash (lixo americano) para a escola de jogos que vem dos EUA e que contrastam com os Eurogames mais sofisticados, interactivos e desafiantes.

A nível europeu, a Alemanha é a grande referência no que diz respeito a jogos de tabuleiro. Foi esta escola que deu o mote aos restantes países da Europa. E é em Essen que, todos os anos, em Outubro, se realiza o maior encontro internacional da especialidade.

Um jogo português

No ano passado, foi nesse encontro - que é, na realidade, uma feira internacional -, que foi lançado o jogo Vinhos, de Vital Lacerda, de 43 anos, e um dos poucos criadores portugueses de jogos de tabuleiro. Lacerda aliou a sua profissão como designer gráfico ao seu hobby. "Achei que Portugal não estava representado e surgiu a ideia de usar um produto típico: o vinho." Os jogadores são vinicultores e o tabuleiro é o mapa de Portugal. O objectivo é cultivar, produzir e vender vinho de modo a obter o maior lucro possível.

João Ferreira não faltou à feira de Outubro na Alemanha. "Andei um ano a poupar para ir a Essen comprar jogos. Ao todo são 21." Na bagagem trouxe o seu preferido, um jogo que dura doze horas. "Chama-se Civilization e tem uma expansão para durar até dezoito [horas]."

Nos encontros de Lisboa é impossível jogar um jogo com esta duração. As partidas vão de trinta minutos a um máximo de três horas. Apesar de às quartas-feiras o Passion Fruit estender o horário até à 1h30, João não se importava de ter mais tempo. "A partir das quatro da manhã a cabeça começa a funcionar mal, mas ainda se jogava! Por vezes vamos acabar jogos para casa de alguém", confessa. Nuno Silva também acha sempre pouco o tempo de jogo mas "quatro ou cinco horas já é razoável". Nuno Carreira fica sempre até à hora de fecho. "Mesmo que tenha trabalho às sete da manhã, tenho de aproveitar ao máximo."

Ganhar ou perder não é o que está em causa. "É claro que, no momento, fazemos tudo para ganhar, mas isso é completamente acessório", refere Nuno Silva. Segundo Nuno Carreira há pouca gente competitiva. "Dá-se mais valor ao convívio. Nunca vi ninguém com mau perder." Mesmo que o resultado seja o pior "um jogo é sempre diferente de cada vez que se joga". São sempre outras pessoas e vivem-se experiências distintas.

"Uma quarta-feira típica é atípica", resume Vasco Chita, que considera que é sempre imprevisível saber o que se vai jogar. "Quando acordam, as pessoas sabem apenas que vão passar um bom bocado, isso é certo."

Não há restrições quanto à participação. "Aqui há várias profissões e idades, diferentes passados, objectivos e opiniões". A quem vem, pede-se apenas uma coisa: "Que goste de jogar."

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