A inconstitucionalidade das equivalências extra-académicas

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1. A Lei n.º 49/2005, de 30 de agosto, alterou a Lei n.º 46/86, de 14 de outubro (lei de bases do sistema educativo), dispondo, designadamente, entre outras coisas no art. 13.º, n.º 5, que "os estabelecimentos de ensino superior reconhecem, através da atribuição de créditos, a experiência profissional e a formação pós-secundária dos que nele sejam admitidos através das modalidades especiais de acesso a que se refere o n.º 5 do artigo 12.º".

E este, por seu turno, prescreve que "têm igualmente acesso ao ensino superior, nas condições a definir pelo Governo, através de decreto-lei: - a) Os maiores de 23 anos que, não sendo titulares da habilitação de acesso ao ensino superior, façam prova de capacidade para a sua frequência através da realização de provas especialmente adequadas, realizadas pelos estabelecimentos de ensino superior; - b) Os titulares de qualificações pós-secundárias apropriadas.

2. No desenvolvimento da Lei n.º 46/86, com as alterações da Lei n.º 49/2005, o Governo publicou o Decreto-Lei n.º 74/2006, de 24 de março, em cujo art. 45.º (com a epígrafe de creditação), e num capítulo intitulado mobilidade, se estatui:

"1 - Tendo em vista o prosseguimento de estudos para a obtenção de grau académico ou diploma, os estabelecimentos de ensino superior:

a) Creditam nos seus ciclos de estudos a formação realizada no âmbito de outros ciclos de estudos superiores em estabelecimentos de ensino superior nacionais ou estrangeiros, quer a obtida no quadro da organização decorrente do Processo de Bolonha, quer a obtida anteriormente;

b) Creditam nos seus ciclos de estudos a formação realizada no âmbito dos cursos de especialização tecnológica nos termos fixados pelo respetivo diploma;

c) Reconhecem, através da atribuição de créditos, a experiência profissional e a formação pós-secundária.

2 - A creditação tem em consideração o nível dos créditos e a área científica onde foram obtidos.

3 - Os procedimentos a adotar para a creditação são fixados pelos órgãos legais e estatutariamente competentes dos estabelecimentos de ensino superior."

A norma da 1.ª parte da alínea c) do n.º 1 e a do n.º 3, in fine, deste artigo 45.º devem considerar-se inconstitucionais, aquela por violação do princípio da igualdade consignado no art. 13º da Constituição e esta por infração do art. 112.º, n.º 5, 2.ª parte, e também do artigo 13.º.

3. A violação do princípio da igualdade resulta, desde logo, do confronto com as alíneas a), b) e c), 2.ª parte, do n.º 1. Há uma contradição interna neste n.º 1.

Como podem ser declaradas relevantes, no mesmo plano, por um lado, a formação realizada no âmbito de outros ciclos de estudos superiores em estabelecimentos de ensino superior nacionais e estrangeiros, a formação realizada no âmbito de cursos de especialização tecnológica e até a formação pós-secundária e, por outro lado, a experiência profissional?

Como pode admitir-se que se coloquem em paridade a aprendizagem feita ao longo de sucessivos anos de estudo e de provas de avaliação em Universidades e Institutos Politécnicos e a experiência profissional, pura e simplesmente? Por certo, não é preciso andar na escola para adquirir uma preparação intelectual e humana maior ou menor. Mas isso é muito diferente da preparação académica que somente a escola, no seu ambiente próprio de contacto dos professores e alunos, pode propiciar.

Nem se invoque, em contrário, o objetivo da democratização da educação, da cultura e da ciência do art. 73.º da Constituição, porque esse objetivo alcança-se, sim, através da garantia do acesso de todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, aos graus mais elevados do ensino, da investigação científica e da criação artística, conforme o art. 74.º, n.º 2, alínea d) e sem esquecer a elevação do nível educativo, cultural e científico do país a que alude o art. 76.º, n.º 1.

4. O art. 112.º, n.º 5, 2.ª parte, da Lei Fundamental, prescreve que nenhuma lei pode conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos. Atos legislativos são apenas em Portugal a lei, o decreto-lei e o decreto legislativo regional, diz o art. 112.º, n.º 1, e tudo que seja matéria de lei só pode ser objeto de um desses atos legislativos.

Ora, relativamente aos cursos e à formação a que se referem as alíneas a), b) e c), 2.ª parte, há critérios geralmente assentes nas escolas de ensino superior e, de qualquer forma, o n.º 2 ainda considera, para efeito de creditação, o nível dos créditos e a área científica. Já não no tocante à experiência profissional: tanto a alínea c), 1.ª parte, como o n.º 3, in fine, são normas em branco, não têm nenhum conteúdo, implicitamente reenviam para os órgãos competentes a definição dos critérios - o que é bem diverso de se lhes remeter a adoção dos procedimentos correspondentes.

O art. 12.º, n.º 5 da lei de bases do sistema educativo, como se viu atrás, atribui a definição das condições de acesso ao ensino superior, nos casos que contempla, ao Governo por meio de decreto-lei. Ao invés, o Decreto-Lei n.º 74/2006 deixa às Universidades e aos Institutos Politécnicos, públicos e privados, tal tarefa; delega em regulamentos que eles façam determinar o que se entende por experiência profissional, qual a sua duração e a sua intensidade, qual a responsabilidade social que envolve, quais as suas relações com o curso universitário ou politécnico que o interessado pretende prosseguir.

Objetar-se-á talvez que é isto em nome da autonomia universitária do art. 76.º ainda da Constituição. Também não. A autonomia científica, cultural, pedagógica das Universidades tem em vista as suas atividades próprias, de ensino e investigação. Não tem por objeto a observação e a definição desta ou daquela atividade exterior.

5. Ainda aqui vamos encontrar, de novo, infração do princípio da igualdade, porque, como a lei não fixa critérios, tudo variará de Universidade para Universidade (como se tem visto), abrindo caminho a que pessoas com idêntica ou similar experiência profissional venham a ser tratadas de modo diverso, ali com rigor, aqui com facilitismo, etc.

Igualdade consiste em tratar igualmente o que é igual e desigualmente o que é desigual. Porém, saber o que é igual ou desigual pressupõe um padrão, um ponto fixo, um padrão que somente a lei poderia oferecer, e o Decreto-Lei n.º 74/2006 não oferece.

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