Manuel de Arriaga O filho da terra regressou a casa

O edifício em ruínas na zona nobre da Horta, no Faial, deu lugar a um núcleo museológico que celebra o primeiro Presidente da República. É hoje inaugurado.

Um edifício novo, de paredes imaculadamente brancas, substituiu as ruínas do antigo Solar dos Arriagas, na Rua de S. Francisco, em pleno centro histórico da cidade da Horta, no Faial. É ali, a dois passos da marina e do oceano, que passa a funcionar, a partir de hoje, a Casa Manuel de Arriaga. É o novo núcleo do Museu da Horta criado pelo Governo Regional dos Açores para honrar a memória do primeiro Presidente da República (1911-1915) e servir, simultaneamente, de espaço de reflexão política sobre os valores da democracia e da cidadania.

Integrado numa quinta urbana, o prédio foi a casa da família Arriaga na Horta e aparece em fotografias dos primeiros anos do século XX - que poderão ser vistas na exposição permanente evocadora da figura de Arriaga e dos ideais da República. Nessa altura, foi vendido à diocese. Esteve na posse da Igreja durante todo o século, serviu de residência de estudantes e foi usado em funções assistenciais até ser abandonado - uma fotografia de 1970 ainda o mostra em bom estado de conservação exterior. Mas o sismo de 1998 dá-lhe o golpe de misericórdia, derrubando-lhe o telhado e, em 2009, já nada resta desse passado maior. Só tem as paredes que ocultam um interior invadido por vegetação. Uma ruína no tecido urbano.

Há cerca de três anos, o Governo Regional dos Açores decidiu adquirir o espaço. Negoceia com a Igreja e compra-o. No final de 2008, é pedido a Luís Menezes, director do Museu da Horta, que desenvolva um "programa museológico", tendo sido decidido, desde a primeira hora, que "não seria uma casa-museu tradicional". Menezes explica ao P2: "A casa teria um núcleo à volta da figura que povoou este espaço, mas pretendia-se ir mais além. Sem perder de vista os valores que Manuel de Arriaga cultivou, a ideia era desenvolver um itinerário museológico, captando as questões essenciais da contemporaneidade. É necessário acrescentar que tudo isto começou a ser discutido no âmbito das comemorações do I Centenário da I República, sem as quais talvez nada tivesse a mesma relevância", salvaguarda.

Jorge Paulus Bruno, director regional de Cultura, assume abertamente que este projecto, um investimento que ultrapassou os dois milhões de euros, é uma aposta do Governo: "Os Açores tinham de participar nas celebrações do Centenário da República e assim aconteceu, mas o facto de haver dois presidentes da República [o outro foi Teófilo Braga] originários da região não podia passar em claro sem um investimento relevante. Pensámos logo que poderia ser nesta casa que faríamos a grande homenagem a Manuel de Arriaga."

Ainda em 2009, começam os estudos preparatórios do projecto de reabilitação, a cargo da empresa RPAR Arquitectos (equipa integrada por Rui Pinto, Ana Robalo, Luís Cabral e Miguel Vilar). "Além da preservação do monumento, pretende-se que este edifício possa constituir-se como um centro interpretativo dos ideais republicanos", pode ler-se na memória descritiva do projecto. "Rejeitou-se o conceito estático da "casa-museu" em prol de um lugar de participação, polivalente e dinâmico."

A intervenção proposta visa a recuperação dos edifícios e a valorização paisagística das áreas exteriores, tendo sempre presente a preocupação de manter "os espaços numa perspectiva de memória enquanto referencial identitário". As antigas hortas deram lugar a uma área de passeio com estufa, prado e pomar. Na construção, é dada especial atenção à utilização de alguns materiais tradicionais - argamassas, em vez de betão armado ou cimento, vigamentos em madeira, soalhos também de madeira, telha regional da Graciosa, cantarias em pedra de basalto maciça, por exemplo. Tudo isso foi escrupulosamente respeitado, garante Rui Pinto, coexistindo com o recurso a "materiais e instalações com tecnologias de ponta" (climatização geral, caixilharias e sistemas de iluminação). O arquitecto conclui: "O que fizemos foi arquitectura contemporânea, mas não se nota que assim é."

Museu aberto

O designer Rui Filipe, natural de S. Miguel mas a viver nos últimos 20 anos na Alemanha, chega a Ponta Delgada nos finais de 2008. Não é um regresso definitivo, mas apenas uma estada temporária para proporcionar às suas filhas, nascidas na Alemanha, um contacto mais consistente com as raízes e a cultura portuguesas. Em Fevereiro de 2010, é convidado a desenvolver o projecto museológico da Casa Manuel Arriaga, quando o edifício estava praticamente reconstruído. "Eu já tinha visto iniciativas relacionadas com as comemorações da República, e, quando me falaram da Casa, fiquei muito entusiasmado", confessa ao P2. Quando se ergue um projecto de raiz, Rui Filipe defende que a intervenção museológica deve estar presente desde o início, para facilitar o diálogo e adequar as soluções a desenvolver. Não aconteceu assim neste caso, mas tudo acabou por correr bem. "Tive a sorte de a equipa de arquitectos ser muito cooperativa", explica.

Por convicção e conhecimento do que se faz noutros países, o designer defende a ideia de um museu como uma "coisa activa e participada" e confessa ficar irritado quando entra em espaços "sacralizados": "Eu gosto de museus acessíveis, estou habituado a exposições em que as pessoas mexem nas coisas e tiram fotografias. Porque não ir ao encontro dessa apetência?"

Por estas razões, só podia agradar-lhe a ideia de um espaço museológico diferente na Horta, assim apresentado por Luís Menezes:

"O plano básico desta exposição partia de uma concepção global articulada explicitamente pela captação possível dos domínios ideológico e cultural da época, introduzindo uma forte componente estética visual e interactiva que despertasse o interesse e a curiosidade dos diversos públicos para o tema da I República e para a figura de Manuel de Arriaga."

Esta intenção vinha ao encontro das preocupações do Governo da região em matéria cultural. A renovação progressiva dos oito museus da rede açoriana é uma das prioridades da acção política, diz Paulus Bruno. O director regional de Cultura explica que, nuns casos, a intervenção se tem traduzido na construção ou na remodelação estrutural dos edifícios. Noutros, acrescenta, "procuramos dotá-los com um discurso museológico adequado". A Casa Manuel de Arriaga é o exemplo mais recente e também, diz, "a aposta mais arriscada". Porquê? "É uma aposta, acima de tudo, na renovação da linguagem museológica que estamos a desenvolver nos Açores. A este nível, com o recurso a tecnologias multimédia, é novo e inovador na região e creio que será um dos casos nacionais mais actuais em termos de densidade de utilização de novas tecnologias."

O ponto de partida foi o próprio Arriaga, explica Rui Filipe. "Passei depois para as instituições políticas e a participação na cidadania. Aqui apercebi-me que Portugal tem um baixíssimo índice de associativismo, que é uma expressão da participação colectiva. Isso levou-me a introduzir na exposição uma área sobre o caso português, para as pessoas perceberem o contexto que permitiu que certas situações aparecessem naquele período histórico. A tentativa que fiz, não sei se bem-sucedida, foi de estabelecer uma linha contínua desde a vida e a biografia de Manuel de Arriaga no contexto da I República até aos dias de hoje, levando quem visita a exposição a interrogar-se: "E agora, o que devo eu fazer?""

Luís Menezes destaca um ponto que considera importante no projecto desenvolvido por Rui Filipe: "A forma pedagógica e didáctica de abordar e relevar a História através de meios interactivos, muitas vezes com humor, que, no fundo, desencadeiam a interrogação nas pessoas e as levam a problematizar os acontecimentos patentes na exposição."

Ao entrar na Casa Manuel Arriaga, o visitante é confrontado com a galeria de retratos do político republicano, instalada no espaçoso hall de recepção. Daí passa-se à área consagrada à biografia e contexto histórico da vida do primeiro Presidente da República: as suas raízes açorianas (nasceu na Horta em 1840), a família, a ida para a Universidade de Coimbra e a ligação à Geração de 70 em Lisboa (animada por outro açoriano, Antero de Quental), o envolvimento na causa republicana durante a monarquia, a intensa participação na vida política depois da implantação da República, culminando na sua eleição como Presidente da República em 24 de Agosto de 1911.

A segunda parte da exposição é dedicada ao tempo de Arriaga e ao funcionamento das instituições democráticas a partir do seu exemplo concreto. Seguem-se o módulo sobre a I República e o espaço onde se exibe um filme sobre a figura de Arriaga encomendado ao realizador açoriano Zeca Medeiros. Os Símbolos da República, A Democracia e a Sala da Cidadania são as restantes áreas da exposição, que utiliza equipamentos e tecnologias interactivas que os visitantes são convidados a explorar de forma simultaneamente lúdica e educativa.

Além da exposição permanente (estão previstas actualizações periódicas), o museu dispõe de uma sala de exposições temporárias - a primeira, também inaugurada hoje, é dedicada ao pintor alentejano Eduardo dos Santos Neves. Incluirá ainda um centro de consulta de arquivo digital centrado em Arriaga e nas questões da República, onde ficarão as imagens e outra documentação recolhidas para esta exposição.

Partir do zero

A construção da exposição começou praticamente do zero. Manuel de Arriaga é uma figura pouco estudada e a bibliografia disponível muito escassa. "Ele é sempre referenciado como tendo sido o primeiro Presidente da República portuguesa, e por aí se fica. Tudo o resto se desconhecia", diz Luís Menezes.

Por razões históricas, nunca foi objecto de grande atenção por parte dos investigadores. Um acontecimento político destruiu bastante a sua imagem de lutador republicano e terá contribuído para esse desinteresse: a escolha do general Pimenta de Castro para chefe do Governo, ficando associado à experiência ditatorial de Janeiro a Maio de 1915. Pouco depois, Arriaga demite-se e desaparece da cena política. Morre dois anos mais tarde. "Nessa altura, ele já se manifestava muito desgostoso com a conflitualidade interna existente, pois aquela não era a República que ele tinha idealizado", acrescenta o director do Museu da Horta.

Outra dificuldade de trabalho era relativa ao espólio, propriedade da família. "A falta de espólio aguçou o engenho aqui no Faial", comenta com humor Paulus Bruno ao referir-se ao trabalho desenvolvido. "O processo inicial foi complexo, pois os familiares resistiram sempre à exposição pública de uma figura que foi muitas vezes desacreditada, frequentemente aproveitada pela propaganda do Estado Novo para diminuir a I República", justifica Menezes.

A única referência de que dispunham inicialmente era o professor e investigador Sérgio Campos Matos, coordenador de um colóquio sobre Arriaga organizado em 2003 pelo Centro de História da Universidade de Lisboa e a Associação dos Antigos Alunos do Liceu da Horta. O contacto foi frutífero. "Campos Matos deu-nos ideias de como poderíamos ampliar a informação e aceder ao espólio, e as coisas começaram a compor-se", relata Rui Filipe.

Outra ajuda preciosa veio de Joana Gaspar de Freitas, autora de diversos trabalhos sobre Manuel de Arriaga e autora de uma fotobiografia sobre o político, publicada no mês passado pela Câmara Municipal da Horta.

Estas duas referências foram o ponto de partida para um trabalho sistemático de busca em arquivos por parte de Luís Menezes, que o levaram a sítios tão diversos como a Figueira da Foz, a Universidade de Coimbra, a Assembleia da República ou a África do Sul.

"A dada altura, com a exposição já delineada, tínhamos tanto material que sentimos a necessidade de começar a ver o que deixaríamos de fora", comenta Rui Filipe. "Há tanta coisa, que podemos pensar em fazer outras exposições temporárias."

Passados os ecos da inauguração, a Casa Manuel de Arriaga parte agora à procura dos seus públicos. "É seguramente um equipamento complementar dos estabelecimentos de ensino", afirma o director regional de Cultura. "O que se expõe nela permite leituras no âmbito de diversas disciplinas leccionadas nas escolas, desde os níveis mais baixos até ao secundário. É uma questão de os professores conhecerem bem os recursos oferecidos e fazerem a ponte com esses universos."

É também esse o entendimento do director do Museu da Horta: "Quando definimos o programa museológico, essa foi uma das questões fulcrais. O espaço teria de funcionar para os diversos públicos, tendo sido necessário introduzir os diferentes níveis de leitura. Para os públicos infanto-juvenis, os meios tecnológicos postos à disposição e a interactividade vão ser uma boa forma de eles se interessarem pela história e levá-los a problematizarem o mundo em que estão inseridos."

Má relação com o pai

Manuel de Arriaga saiu muito novo do Faial e a má relação com o seu pai, monárquico convicto, não permitiu uma ligação mais estreita à terra onde nasceu. Através deste museu, cumpre-se essa tão desejada reconciliação com os faialenses. Essa é a perspectiva de Paulus Bruno, para quem o Faial há muito homenageou Manuel de Arriaga quando o fez patrono da escola secundária local. Mas faltava "uma acção de dimensão substancial que conferisse dignidade e peso a uma iniciativa que colocasse Arriaga no mapa nacional e não apenas regional".

Para lá dos marcos biográficos de percurso, criteriosamente integrados na exposição, o que ficam os visitantes a saber de substancial sobre Manuel de Arriaga? "Na minha perspectiva, é a sua verticalidade, a sua ética como político e a sua forma de actuação, desprendida do poder. É isso que constitui a grande riqueza do itinerário museológico, que nos leva à discussão das questões essenciais da democracia e do seu valor nos tempos actuais", revela Menezes.

Rui Filipe, por seu lado, vê em Arriaga "um exemplo magnífico das pessoas que intervêm, participam e estão conscientes dos desafios do seu tempo": "Não só na vida política e institucional, mas também como estudante, escritor, advogado, deputado, Presidente da República ou na vida privada, foi sempre um homem muito atento ao que acontecia à sua volta."

Num dos seus trabalhos sobre o pensamento e o ideário do republicano açoriano, Joana Gaspar de Freitas sintetiza de forma feliz o sentido de uma vida singular:

"Manuel de Arriaga, poeta, republicano convicto, professor de Inglês no Liceu Central de Lisboa, advogado das camadas populares, deputado do povo, vereador da Câmara Municipal de Lisboa, procurador-geral da República, reitor da Universidade de Coimbra, Presidente da I República Portuguesa e, no fim do seu mandato, "criminoso político", apodado de ditador e traidor da pátria, foi figura singular e de relevo no seu tempo, não só pelos altos cargos para os quais foi escolhido pelos seus pares, mas sobretudo pela simpatia alcançada entre os simples, pela probidade reconhecida por amigos e adversários, pelo exemplo de rectidão moral e dedicação partidária que deixou às gerações republicanas que se lhe seguiram."

O P2 viajou a convite da Direcção Regional de Cultura dos Açores

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