Elementos para pensar e actuar a nível do bullying

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A perda da noção do bem e do mal é algo que só pode ser mudado com o envolvimento da escola e dos professores

"Entre os maus tratos que afectam a saúde e o bem-estar de crianças e jovens, o bullying é o menos referido. Porém, esta forma de maltrato é a que atinge maiores indicies de prevalência (...) Numerosos estudos internacionais e nacionais têm ainda comprovado a existência de uma curva evolutiva, cuja parábola desenha a sua ascensão desde os primeiros anos de escolaridade, com um pico aos 14 anos e o seu decréscimo a partir dessa idade (...) Os vários estudos de cariz epidemiológico conferem grande evidência empírica ao facto de a maioria dos maus tratos ocorrerem nos recreios escolares. Local que predomina sobre as salas de aula, refeitórios, corredores, salas de estudos ou outros contextos, o que tem sido um dado importante para a intervenção (...) era importante que os adolescentes tivessem consciência de como os mecanismos de grupo interferem nos processos de vitimação e impedissem que atitudes e práticas de dessensibilização e falta de compromisso fossem geradoras de situações de maus tratos nos grupos de pares (...) nota-se maior incomodidade em aceitar que a vitimização é uma questão ética e moral para a escola. Reconhecê-lo pode ser vital para que, na adolescência, não se reduza a intervenção a recrutar defensores das vítimas e a desafiar a vitimização".

Estes curtos excertos de um pequeno mas denso texto de Ana Tomás de Almeida, inserido no recém-publicado livro Estudos em Homenagem a Rui Epifânio (Almedina, 2010) dão-nos alguma informação para pensarmos e procurarmos actuar a nível do bullying. Uma das questões que parecem resultar claras dos e estudos que se vão fazendo sobre esta matéria é a questão da indiferença ética e/ou moral dos agressores e dos espectadores que não sentem qualquer empatia com as vítimas. A perda da noção do bem e do mal, a insensibilidade ao sofrimento do Outro é algo que só pode ser mudado com o envolvimento da escola, nomeadamente dos professores.

E todos sabemos como, hoje em dia, os professores são verdadeiras vítimas também. Vítimas do sistema de ensino, que lhes exige muito mais do que a mera transmissão de conhecimentos, mas, ao mesmo tempo, os deixa sós e impreparados para lidar com as complexas situações geradas pelas massificadas comunidades escolares. Apesar destas e doutras dificuldades, neste campo, seria bom, por exemplo, que os professores estivessem mais presentes nos recreios escolares e que as escolas procurassem, nas comunidades em que se inserem, pessoas que soubessem, em conjunto com os professores e os alunos, falar do bem e do mal e da necessidade de nos sabermos ver no Outro.

Esta questão da empatia e da compreensão do sofrimento alheio esteve, esta semana, em foco com a publicitação de um programa da televisão francesa que recriou, em formato reality show, a chamada "experiência de Milgram", realizada em 1963 nos Estados Unidos.

Em termos genéricos, a experiência realizada pelo cientista Milgram consistiu no recrutamento de voluntários que accionavam uma máquina que dava choques eléctricos, cada vez mais fortes, sempre que um terceiro errava a resposta a perguntas que lhe eram feitas. Sessenta e cinco por cento dos voluntários, obedecendo a ordens de um pretenso cientista e apesar de verem o sofrimento crescente do interrogado, decorrente da crescente intensidade dos choques, chegaram ao ponto de "dar" choques eléctricos de 450 volts que, em princípio, matariam o interrogado.

A experiência procurava estudar a forma como as pessoas tendem a obedecer às autoridades, mas é também elucidativa da ausência de empatia com o sofrimento do Outro. Esclareça-se, para descanso de todos, que o terceiro interrogado era um actor que simulava os efeitos dos choques eléctricos e que a máquina, contrariamente ao que tinha sido dito aos voluntários e era sua convicção, não dava choques eléctricos.

A indiferença dos jovens perante o sofrimento humano e a incapacidade para distinguir o bem e o mal foi visível, entre nós, de uma forma particularmente angustiante, com o sinistro "assassínio", em 2006, de Gisberta, uma transexual do Porto. E, nesse caso, como em muitos outros, logo surgiram vozes que, dispensando qualquer reflexão, se limitaram a apelar ao encarceramento e à diminuição da idade da imputabilidade penal, de forma a fazer desaparecer no mundo prisional, o mais cedo possível, aqueles que, muitas vezes, foram privados de saber a diferença entre o bem e o mal.

Ora, como refere Leonor Furtado, num outro texto inserido na referida obra de homenagem a Rui Epifânio, "os comportamentos problemáticos de carácter agressivo dos jovens, em particular dos que entram em conflito com a lei, podem ser tipificados de três modos: como comportamentos indiciadores de distúrbio psíquico acentuado, para os quais não se encontra a resposta no Serviço Nacional de Saúde, em geral, e na saúde mental em particular; como comportamentos agressivos de carácter reactivo, que exigem o treino dos agentes em estratégias de intervenção na crise para que dos mesmos resulte um ganho educativo e terapêutico; e como comportamentos-limite na sua forma agressiva que, embora quantitativamente pouco expressivos, assumem tal gravidade que colocam em questão a lógica educativa de todo o sistema, havendo assim necessidade de procurar mecanismos legais alternativos".

A imensa capacidade de pensar e elaborar sobre as questões das crianças e dos jovens, em perigo ou perigosos, era uma das características de Rui Epifânio, um magistrado do Ministério Público, que morreu em 2005 e que era um mestre do Direito e da Vida. Este livro cheio de colaborações relevantes é uma boa homenagem e a certeza da continuação do seu exemplo e trabalho. Advogado (ftmota@netcabo.pt)

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