Contra o pensamento balofo

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Há pensamento balofo a mais. Repetido. Impensado, uma contradição nos termos

Há pensamento balofo a mais. Repetido. Impensado, uma contradição nos termos. Que repete todos os rodriguinhos que por aí circulam. Uns a favor e outros contra. "A culpa é dos funcionários públicos", "a crise seria uma desgraça porque ficávamos como a Grécia", "não somos como a Grécia", "é preciso antes que tudo manter a estabilidade política", "a troika que se lixe", "não há políticas de crescimento", "a nossa carga fiscal ainda é baixa" (sim, há quem diga isto), "o nosso ajustamento está a correr melhor do que o esperado", "restaurámos a credibilidade de Portugal nos mercados", "o Governo tem um problema de comunicação", "estas políticas são inevitáveis", "não há alternativas", "ninguém apresenta alternativas", "as manifestações ameaçam fazer perder tudo o que o Governo conseguiu no último ano", "precisamos de mais tempo e de mais dinheiro", "enquanto a Europa não mudar, não podemos fazer nada", "só o federalismo e a cedência de soberania podem resolver o nosso problema", "não se muda de direcção a meio do caminho", "há muita coisa a correr bem", "é necessário baixar salários para sermos competitivos", "cortar nas despesas é cortar nas funções sociais do Estado", "estamos a fazer todos os esforços para cortar na despesa pública", "se este orçamento não passar, daí a uma semana não há dinheiro para pagar salários", "não há crise política", "o comunicado do CDS acabou com a crise política", "as medidas são boas, foram é mal explicadas", "vamos cumprir os números do défice custe o que custar", "não cumprimos este ano, mas a troika, para nos premiar por tentarmos, deu-nos mais um ano", "a recessão é inevitável", "desemprego é inevitável", "quando é que saímos da recessão? Não se pode saber", "o modelo não funcionou? Bem pelo contrário, funciona perfeitamente", etc.

Há uma regra simples: sempre que encontra uma "inevitabilidade", o pensamento soçobra. É assim o pensamento balofo em que estamos mergulhados até ao pescoço. Um pensamento de banalidades, que nunca as pensa, que as aceita como manifestações da verdade revelada, que as faz circular como se fossem incontestáveis. Que evita deixar o terreno do pântano, da estagnação, da apatia, da preguiça, da complacência, da subserviência aos poderosos e à moda, para ir para outras terras mais árduas e arriscadas, mas outras terras que também existem. Muitas vezes chegamos lá da pior maneira, por acaso e tarde de mais para evitar mais desgraças, mas, insisto, as terras estão lá. Mas sem risco não se chega lá. Os liberais, os amigos da liberdade, que prezam o risco, deviam dar o exemplo. No fundo, já não há muita coisa para perder.

Um país não é uma empresa.

Portugal não é uma empresa.

Portugal não é uma sociedade anónima, nem uma SA, nem uma SGPS.

Repita, se faz favor: um país não é uma empresa.

Repita de novo: um país não é uma empresa e tentar governar o país como se fosse uma empresa dá asneira.

Mesmo que a empresa seja a mais bem gerida do mundo.

Um país é um país. As regras são outras. Os métodos são outros. Os procedimentos são outros. As pessoas certas são outras.

Repita: as pessoas certas são outras.

As escolhas de pessoas devem obedecer a outros critérios. Porque um país não é uma empresa, não é uma burocracia, não é uma empresa de marketing, não é uma consultora, não é um think tank, não é um blogue dos "nossos", não é uma secção partidária, nem um "grupo geracional" vindo de uma "jota" qualquer a tomar o poder.

O modo como as coisas funcionam num país é outro.

O modo como as coisas não funcionam é outro.

A ciência é outra. O ruído é outro.

O sucesso tem regras diferentes. O fracasso tem regras diferentes.

Há coisas parecidas por analogia, mas não por homologia.

Repita, se faz favor: um país não é uma empresa.

Um povo não são os "meus colaboradores". Ou os "meus empregados". Ou "os meus trabalhadores". Ou o "pessoal". Ou os "meus funcionários". O povo não são "meus" coisa nenhuma.

Vocês é que são deles.

Um povo não é uma abstracção a não ser na retórica política má. Não é o que está nas ruas, como pensam a esquerda e Passos Coelho e Gaspar, irmanados pela mesma ideia simples. É mais do que aquele que se manifesta, mas também é o que se manifesta.

Uma regra é que para cada um que dá a cara e o corpo na rua, "manifestando-se", dizendo que existe e o que quer e o que não quer, há cem que não foram, mas concordam, poderiam estar lá. Não é uma estatística brilhante para o Governo.

Para evitar que todos percebam que é assim, e minimizar o efeito devastador de uma rua à solta e hostil, não basta tentar "engolir" as manifestações "boas" e ignorar as "más", é preciso fazer alguma coisa mais. Se o Governo acha que a maioria dos portugueses está com ele, tem que apelar à "boa rua" contra a "má rua". É um clássico. Aliás, Passos Coelho sugeriu-o há algum tempo (pouco) com um apelo à "maioria silenciosa" numa intervenção em que ninguém reparou, nem sequer a "maioria silenciosa". Será que enche o Terreiro do Paço como os comunistas da CGTP?

Reflexão para um governante peculiar: quando o "melhor povo do mundo" me chama "gatuno", talvez seja melhor pensar duas vezes. Ou muito mais vezes. Talvez o "melhor povo do mundo" não seja assim tão bom. Vamos cauterizá-lo com impostos em nome do patriotismo, a ver se ele melhora e se mostra outra vez "paciente".

Tem alguma ironia ver aqueles que elogiaram até aos limites o memorando da troika, que a consideraram o verdadeiro programa desejado para um governo ideal, que disseram que o "meu programa é o da troika", e até que o programa do PSD devia ser o da troika, que incorporaram o programa da troika no chamado pacto orçamental, de que já ninguém se lembra, agora andarem aí a dizer que o "desígnio nacional" é pôr a troika de novo fora de Portugal. Estamos mesmo a ver a genuinidade da reivindicação: "Troika fora de Portugal", antes os mercados do que a troika.

Não acreditem. Eles não querem ver a troika longe, nem nada que se pareça. Estão a aplicar apenas uma receita daquilo que algum assessor de "comunicação" lhes disse ser necessário para haver "política", depois de ouvir o professor Marcelo. "Arranjem um desígnio nacional para não ser só austeridade" - estou mesmo a ouvi-lo. E alguém no fundo da sala disse: "Que se lixe a troika".

O Orçamento do Estado viola as leis da Física e é da ordem da magia. Pode dizer no intróito que quer ir mais depressa do que a velocidade da luz. Dizer pode, ir não pode.

A melhor metáfora sobre o efeito do Orçamento deve-se a Bagão Félix: funciona como uma septicemia, infecta tudo. É melhor do que o "terramoto fiscal" (do mesmo autor), da "bomba atómica fiscal" (do PS), do "buraco negro" (de Manuela Ferreira Leite). Todas estas imagens se centram num acto singular de destruição, brutal e único, com tempo limitado. Estoura e depois reconstrói-se a partir dos escombros. Não é assim. Fica por muito tempo. Infecta tudo.

Bem-vinda seja a crise política. Os horrores futuros com que nos assustam são bem menores do que aqueles que temos já à solta.

A "crise" às claras, é melhor do que a "crise" às escuras. A crise aberta é melhor do que a crise larvar. Um dia a larva passa a outra coisa e a crise é muito pior. Há histórias terríveis do que as larvas podem fazer dentro dos corpos. É melhor não experimentar, nem ver o Alien. Para além disso, de um modo geral, ganham as larvas.

(Continua)

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