A cidade dos sonhos caiu na real

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A Catedral de Brasília, de Oscar Niemeyer, um dos edifícios-ícone da cidade EVARISTO SA/AFP

Pensada, desenhada e construída para ser um exemplo utópico de modernidade que inspirasse a mudança do resto do Brasil e o seu desenvolvimento, Brasília cumpre hoje 50 anos. Com o tempo, porém, a nova capital acabou por incorporar os problemas do resto do país e abrasileirou-se. Terá fracassado? Por Jorge Marmelo

Havia no início, na ideia de criar Brasília, algo de poético e utópico. Juscelino Kubitschek, o Presidente da República que ordenou o sonho, prometeu desenvolvimento harmonioso para o Brasil e "uma cidade bela e racional como um teorema, leve e airosa como uma flor". Hoje, 50 anos depois da fundação, a capital do Brasil é, talvez, só uma cidade como as outras. Quando se revê no espelho branco dos edifícios de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, o Brasil continua a parecer o país do futuro. Mas nem tudo correu tão perfeitamente como a utopia previra.

"Brasília falhou em tudo e, ao completar 50 anos, não tem de que se orgulhar. É uma utopia em ruínas", diz ao P2 o poeta e jornalista Alexandre Marino, nascido em Minas Gerais há 54 anos mas a viver na capital brasileira há 27. "Sofre de todos os males de metrópoles que o tempo arruinou aos poucos, em particular as cidades brasileiras: violência, trânsito caótico, péssimo transporte público, falta de moradia para todas as classes, desemprego, miséria, corrupção", enumera Marino.

Apesar da modernidade da arquitectura e "do arrojo de seus projectos com sabores socializantes", Brasília "representa hoje, em seu próprio espaço urbano e nas suas cidades satélites, as desigualdades típicas geradas pelo sistema capitalista na era moderna", acrescenta Sadi Dal Rosso, 62 anos, professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. "Apresenta uma taxa de desemprego de 14 por cento, superior às metrópoles do Sul e Sudeste. Igualmente a desigualdade de renda entre pobres e ricos é tão alta quanto nas grandes cidades do Norte e do Nordeste brasileiro. Os problemas que o projecto modernizador de Brasília pensava resolver foram recriados com a intensidade típica das propostas neoliberais", defende o sociólogo.

Em vez de ser o exemplo de modernidade que devia impulsionar a mudança do resto do país, Brasília terá, assim, assimilado os problemas do Brasil. Abrasileirou-se. Se isso é mau, depende. "Para mim, a ideia de que Brasília falhou não faz muito sentido, talvez porque eu seja um fruto dessa Brasília que estão falando que falhou", alega Patrícia Andrade-Nicola, uma bióloga de 35 anos natural da capital e uma assumida candanga (denominação pejorativa dada aos trabalhadores pobres que construíram a cidade e que acabou por se tornar o gentílico para todo aquele que nasce em Brasília), actualmente a terminar um doutoramento no Albert Einstein College of Medicine, em Nova Iorque.

"Temos uma qualidade de vida muito melhor do que no Rio de Janeiro ou São Paulo, apesar de os problemas estarem aumentando com o crescimento da cidade e o desenvolvimento das regiões próximas. Mas a violência não é tanta [como noutras cidades brasileiras] e temos um céu lindo. E o traço do arquitecto", diz a bióloga, recordando os versos de Linha do Equador, a canção de Caetano Veloso: "Céu de Brasília, traço do arquitecto/gosto tanto dela assim."

Victor Alegria, um português de 71 anos que chegou a Brasília há quase 47, fugido do Estado Novo, e que reclama a capital brasileira como uma segunda pátria, tem uma visão equidistante: reconhece os problemas da cidade, da violência e miséria da periferia à inadequação da cidade aos pedestres. "Quem não tem carro, sofre. Brasília é corpo, cabeça e rodas", diz. Mas, acrescenta, "tem possivelmente o melhor nível de vida do Brasil", "uma das melhores assistências médicas, boas moradias, muito lazer e bons restaurantes".

"Brasília não é fácil, é competitiva de mais. Tem feudos e nichos económicos e sociais. Tem misérias escondidas e riquezas inusitadas. Tem formalidades, preconceitos. Tem liberdades e descontracção", resume este homem nascido em Arouca que fundou a histórica livraria Divulgação/Leitura, no Porto, e depois criou a principal editora da capital brasileira, a Thesaurus, e organiza a feira do livro da cidade. Foi o primeiro e único português a ser considerado cidadão honorário da capital brasileira.

E do ermo nasceu a cidade

Saber se o projecto de Brasília falhou é, pois, uma questão de perspectiva. E de expectativa; de saber, enfim, se uma cidade humana alguma vez poderia ser tão perfeita como se julgou que Brasília seria, ou se é suficiente que seja apenas uma cidade bela cercada pelos problemas comuns das comunidades urbanas - igual às outras, portanto.

No princípio, como em toda a parte, "era o ermo", resume a Sinfonia da Alvorada de Vinicius de Moraes e Tom Jobim. Brasília era, na década de 1950, apenas uma enorme porção de terra desocupada no interior do Brasil, no estado de Goiás. A Constituição brasileira de 1946 previa, nas suas disposições transitórias, a criação de uma nova capital no planalto central e, a 4 de Abril de 1955, o então candidato a Presidente da República, Juscelino Kubitschek, fez um comício em cima de um camião em Jataí, uma pequena cidade de dez mil habitantes, no Sudoeste goiano, esquecido e pobre. Questionado sobre o assunto, Juscelino foi peremptório: "Se for eleito, construirei a nova capital e farei a mudança da sede do governo." Houve aplausos e mais aplausos.

Eleito no ano seguinte, Kubitschek apostou na transformação do Brasil numa nação desenvolvida, obedecendo ao lema "50 anos de desenvolvimento em cinco anos de mandato". Mandou construir barragens hidroeléctricas, estendeu a rede eléctrica, iniciou a abertura de estradas rasgando o país e ordenou que, do ermo, se fizesse Brasília. Ao concurso apresentou-se Lúcio Costa, um arquitecto formado no estrangeiro e adepto do modernismo. O seu anteprojecto contrariava algumas normas do concurso, mas convenceu o júri. Desenvolveu o Plano-Piloto e, contando com a colaboração e o traço de Oscar Niemeyer, planeou uma cidade utópica, ancha, racional, monumental e pensada para o triunfo do automóvel. E em apenas três anos, sem estradas de ligação com os principais centros industriais do país e apenas com a electricidade produzida por geradores, Brasília tomou forma: "Num cerrado deserto e exposta a um céu imenso, como pleno mar, a cidade criou a paisagem", escreveu Costa.

Quando a cidade foi formalmente inaugurada, a 21 de Abril de 1960, os primeiros edifícios de Brasília resplandeciam. Com um desenho urbanístico que imitava a forma de um avião (ou de uma cruz, para os menos laicos), impressionavam os edifícios modernistas desenhados por Niemeyer e a monumentalidade dos palácios na Praça dos Três Poderes, na Esplanada dos Ministérios, nos eixos Monumental e Rodoviário, nas avenidas e quarteirões (quadras) das Asas Norte e Sul, tudo ainda rodeado por amplos espaços de terra vermelha que o tempo transformou em relvados, parques arborizados e urbanizações geometricamente alinhadas.

Em 1960 estavam já construídas 3200 residências, escolas, hospital, espaços comerciais e de serviços, um centro de abastecimento alimentar, hotéis, restaurantes, jardim zoológico, igrejas, bancos e cinemas, tudo dotado de rede de água e esgotos, geração e distribuição de energia eléctrica. Havia ainda 15.000 telefones instalados, serviços de correio, estações de rádio e televisão, sucursais dos grandes jornais nacionais e um jornal de circulação local.

"A cidade era uma enorme chaga de terra vermelha, no verde-castanho calcinado do cerrado. E o lago Paranoá reflectia o azul do céu", diz Victor Alegria ao recordar aquele dia de 1963 em que aterrou pela primeira vez na nova capital. Mais de três anos após a inauguração, o exilado português arrepiou-se: "Que coisa estranha essa cidade de barro vermelho... Espaço e mais espaço. Estranhos esqueletos de cimento cinza-claro que destoavam das centenas de casas de madeira, da Asa Norte, numa verdadeira cena de Faroeste plantada neste planalto."

Viva a imprudência!

"Se Brasília foi uma imprudência, viva a imprudência!", declarou Juscelino Kubitschek ainda em 1959, durante um congresso internacional de críticos de arte que decorreu na cidade em construção. Acreditava-se, então, que Brasília permitiria equilibrar o Brasil, contribuindo decisivamente para o seu desenvolvimento harmonioso, até hoje adiado. A cidade inventada, porém, acabou por copiar o país ao seu redor. "Tornou-se uma caricatura viva", diz Alexandre Marino, o poeta.

Classificada e protegida pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), a cidade desenhada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer ficou, quando concluída, como que congelada, maquetizada, com 450 quilómetros quadrados, ocupando o centro de uma área de 5800 quilómetros quadrados administrativamente autónoma, o distrito federal, situado no coração de Goiás. Brasília, a cidade, tem 200 mil habitantes. Mas a gigantesca maquete de cimento armado está hoje rodeada por um conjunto de cidades-satélite onde vivem já 2,4 milhões de pessoas. E o planeamento geométrico e racional da capital não parece, sequer, ter contaminado estes seus vizinhos próximos, quanto mais o resto do Brasil.

"As regiões ao redor não param de crescer, e de forma desordenada, alimentadas por uma especulação imobiliária descontrolada e pelo mito de que Brasília era um Eldorado", nota Marino, para quem muitos dos problemas de que a cidade padece poderiam ter sido previstos, e resolvidos, "ainda na prancheta" dos arquitectos. "O primeiro erro foi não pensar o projecto de ocupação de todo o quadrilátero do distrito federal", explica Alexandre Marino.

"Quem não tem dinheiro é expulso para as cidades-satélite ou condomínios irregulares. As cidades do entorno incham e algumas são vítimas de um crescimento desordenado que traz consigo desníveis sociais e a violência", confirma Victor Alegria.

"Um dos objectivos da transferência da capital, e o que para mim fazia mais sentido, era trazer desenvolvimento ao interior do país. Ainda falta muita coisa para ser feita, mas acho que Brasília não falhou nisso", contrapõe Patrícia Andrade-Nicola. "Sem Brasília na região central do Brasil, muita gente do Nordeste e do resto do Centro-Oeste ficaria sem assistência médica. O sistema educativo em Brasília também é bem melhor do que o da maioria dos outros estados brasileiros. Temos uma das melhores universidades públicas federais, um monte de artistas, educadores, atletas e personalidades que surgiram dessa mistura da cultura dos vários estados integrada naquele quadradinho que antes era no meio do nada", argumenta a bióloga.

No reverso da medalha, Alexandre Marino acrescenta que "todos os equipamentos públicos do sector cultural, quase todos localizados na pequena área central classificada pela UNESCO, estão abandonados". E continua: "Obras importantes de artistas do Brasil e do exterior [internacionais], que compõem o acervo do Museu de Arte de Brasília, estão empacotadas para se protegerem de goteiras e do mofo. O Cine Brasília, onde se realiza um dos mais tradicionais festivais de cinema do país, o Espaço Cultural 508 Sul, a Concha Acústica, o Memorial JK, o Teatro Nacional, a Catedral Metropolitana e o Palácio do Planalto [sede do governo federal] envelheceram sem manutenção. Os três últimos estão em obras, que não ficarão prontas na data de comemoração dos 50 anos."

À incúria não serão estranhos, também, o modelo de governo escolhido, a proverbial inépcia dos governantes e os problemas políticos que o distrito federal tem enfrentado, que culminaram, em Fevereiro, na detenção do governador, José Roberto Arruda, acusado de corrupção. O vice-governador demitiu-se poucos dias depois e Brasília comemorará 50 anos administrada pelo terceiro governador num curto espaço de tempo (Rogério Rosso, do PMDB, eleito na semana passada). Fernando Rodrigues, um colunista do influente jornal Folha de S. Paulo, causou polémica quando escreveu que "Brasília fracassou" e reclamou a integração do distrito federal no estado de Goiás, passando a obedecer às mesmas regras das outras cidades brasileiras.

"Escândalos e políticos roubando há em cada município da federação e é engraçado ouvir pessoas de outras partes do Brasil reclamando de Brasília e da corrupção de Brasília, esquecendo-se de que são eles que elegem os ladrões para o congresso nacional", responde Patrícia Andrade-Nicola. "Esquecem que, em 50 anos, Brasília construiu uma identidade própria e diferente das cidades goianas das redondezas."

Sadi Dal Rosso, porém, acrescenta ainda dois outros aspectos em que o projecto de Brasília se revelou perverso. Ao concretizar a "Marcha para o Oeste" e a ocupação do interior do país, a nova capital transformou a região no principal produtor e exportador brasileiro - na área da agropecuária, da exploração de minérios, de álcool e de madeiras -, provocando a "ocupação desenfreada da terra por meio de fazendas", o desmatamento, "a revivificação da escravatura", "a expulsão e o extermínio de indígenas", nota o sociólogo. É o "arcaico" desmentindo "a modernidade que Brasília quis corporizar", comenta.

Por outro lado, Sadi Dal Rosso considera que a própria arquitectura monumental da cidade tende, pela sua grandiosidade, a "engolir" os pequenos movimentos sociais que ali se manifestem. "Brasília, pela sua monumentalidade, é afeita às grandes reuniões de massas humanas, típicas dos regimes centralizadores; mas sua monumentalidade vai bem com processos revolucionários de massa, com expressões de sindicatos de trabalhadores e servidores públicos, de movimentos de trabalhadores sem terra, sem tecto e outros grupos sociais importantes", diz, enunciando aquilo que considera ser "uma contradição".

Contraditória (ou não) sob o céu do planalto, a cidade continua compondo a paisagem com as elipses incríveis que Niemeyer desenhou. Talvez não seja, como o arquitecto quis, "uma cidade de homens felizes", sabedores do "valor das coisas puras". Mas, se a arquitectura é, como escreveu Goethe, "música petrificada", Brasília é, definitivamente, uma sinfonia como a que Vinicius e Jobim escreveram, espécie de ode ao cimento armado: "Ah, as empenas brancas!/como penas brancas.../Ah, as grandes estruturas!/tão leves, tão puras..."

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