O açougueiro que quer pôr a cidade a ler

É difícil chegar a Brasília sem preconceitos. Uma cidade dividida em sectores, em que tudo tem o seu lugar, uma espécie de avião que nasce de um Plano-Piloto, com um Eixo Rodoviário e outro Monumental, uma Asa Norte, uma Asa Sul, e bairros identificados por letras. É uma ideia que agrada a quem gosta da ordem mas que pode ser perturbadora para quem está habituado a cidades que cresceram ao longo dos séculos, de forma muitas vezes caótica, em que as épocas se misturam e os nomes das ruas contam histórias. Confesso que pertenço ao segundo grupo.

Por isso, Brasília não é o tipo de cidade onde estivesse à espera de encontrar um Açougue Cultural - ou seja, um talho cultural. Aliás, o "único açougue cultural do mundo". Tinha visto uma referência num artigo, mas as pessoas com quem estava (brasileiros, sim, mas de São Paulo) nunca tinham ouvido falar no T-Bone. Enfiados numa carrinha, percorremos as ruas geometricamente desenhadas, as superquadras (SQS é Superquadra Sul, não há que enganar), passámos pelos edifícios de Oscar Niemeyer, a catedral de braços erguidos para o céu, os palácios elegantemente pousados sobre espelhos de água, e procurámos o açougue. A morada ajudava: SCLN 312 BI B Lj 27 Brasília.

Chegámos. À porta, sentado numa mesinha de metal, um rapaz carimbava livros usados. Lá dentro azáfama de talho, empregados de aventais brancos a cortar carne, embalagens de temperos em cima dos balcões frigoríficos. À esquerda, uma zona ligeiramente diferente: prateleiras na parede e livros. Pergunto pelo patrão, mas Luiz Amorim não está de momento.

Levam-me à parte de trás do talho e, passando pedaços de carne pendurada, chego às traseiras onde, ao ar livre, mais dois rapazes carimbam livros que vão tirando de grandes caixotes. Há revistas de banda desenhada, um exemplar de Comentários ao Código de Direito Civil, livros de química, romances. Cada um leva dois carimbos: o primeiro diz "este livro pertence ao Açougue Cultural T-Bone"; o segundo "o livro é de todos, devolva-o o mais rápido possível".

Foi neste açougue que Luiz Amorim, 49 anos, começou a trabalhar. Tinha 12 anos e há já cinco que trabalhava como vigilante e engraxador. Ao fim de 15 anos no talho, decidiu comprá-lo. "E aí veio a ideia de montar a biblioteca", conta no site do T-Bone.

Durante anos morou nos fundos da loja e lia para passar o tempo - ou melhor, tornou-se um leitor compulsivo desde que leu o primeiro livro, aos 18 anos (só aprendeu a ler aos 16). Era de filosofia, não entendeu nada, mas ficou fascinado.

Quando comprou a loja colocou uma estante com dez livros para emprestar. Aceitava doações e emprestava-os a quem os quisesse ler e os devolvesse. A ideia cresceu, o T-Bone chegou a ter mais de dez mil livros, e no final de 2002 Luiz abriu uma biblioteca comunitária. Além disso, criou a Noite Cultural T-Bone, uma vez por ano em que a rua do talho fecha para concertos e espectáculos.

Não contente ainda, quis espalhar livros pela cidade e criou a Parada Cultural, bibliotecas nas paragens de autocarro, com livros disponíveis para quem queira levar (ou deixar). Já existem 35 bibliotecas, e há cerca de mil empréstimos por dia.

No talho a estratégia é radical. "Quando alguém vem comprar a carne e os meninos dizem "vai levar meio quilo de Saramago e uns bifes de Machado de Assis?", isso é uma brincadeira, uma provocação", conta Luiz Amorim no site. "A ideia é provocar, constranger. A pessoa entra num açougue, ela é de classe média e não está lendo. Então o cara pensa assim: "Toda a vez que eu vou lá o açougueiro me enche o saco." Um dia acaba levando. E ainda é de graça."

O T-Bone não estava previsto no Plano-Piloto. Mas é a prova de que a régua e o esquadro não impediram que Brasília se tornasse, afinal, uma cidade como as outras, em que o povo fecha a rua e faz a festa. Hoje, o T-Bone festeja a inauguração de Brasília, "a realização de uma utopia corajosa e ousada [...], história muito parecida com a do Açougue Cultural".

Se quiser passar por lá, não tem que enganar: é na entrequadra 312/13 da Asa Norte.

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