Sampaio Garrido, o outro "Justo" português

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Numa Europa em crise profunda, este exemplo mostra que o realismo político não é incompatível com a ética e a moral

Dentro de dias, Carlos de Almeida Fonseca Sampaio Garrido, embaixador de Portugal em Budapeste entre 1939 e 1944 irá receber, a título póstumo, a medalha de "Justo entre as Nações" pela sua acção de protecção e salvamento de judeus húngaros. A distinção, decidida em 2 de Fevereiro de 2010, pelo Yad Vashem - Autoridade Nacional para a Memória dos Mártires e Heróis do Holocausto criada em 1953 pelo Estado de Israel -, será entregue à família pelo embaixador de Israel em Portugal. Até hoje, foram distinguidos 23.788 homens e mulheres de quarenta e cinco países cujos nomes estão gravados no Memorial dos Justos no Yad Vashem: eles lembram para todo o sempre a coragem da compaixão numa época em que grassava o medo e a indiferença, a denúncia e a colaboração. Simbolizam, também, a gratidão do povo judeu por aqueles que contribuíram para o seu salvamento.

Sampaio Garrido chegou a Budapeste em Outubro de 1939. Na Hungria propriamente dita e nos territórios anexados ao abrigo da aliança com a Alemanha nazi, viviam perto de 800 mil judeus. Mas, apesar da legislação antijudaica decretada pelo regente Miklos Horthy, a maioria atravessou esses anos de guerra em relativa segurança. No entanto, depois da derrota dos exércitos alemães em Estalinegrado, Horthy tentou retirar-se da aliança com a Alemanha. A resposta foi rápida e brutal: a 19 de Março de 1944, Hitler invadiu a Hungria e nomeou um novo Governo mais fiel chefiado por Dome Sztojay. A acompanhar as suas tropas veio Adolf Eichmann encarregado de aplicar a "Solução Final" na Hungria. As consequências não se fizeram esperar: confisco de bens e propriedades, proibição de posse de rádios e telefones, uso obrigatório da estrela amarela, encerramento em guetos e acima de tudo deportação, entre 15 de Maio e 9 de Julho, de perto de 450 mil judeus, na sua maioria para Auschwitz, onde mais de metade foi gaseada logo à chegada. "Uma operação massiva, sem paralelo nos anais da Shoah" considera Avraham Milgram, autor de Portugal, Salazar e os Judeus.

Na Hungria, operavam na época cinco representações diplomáticas de países neutrais que incluíam a Suécia, a Suíça, Portugal, Espanha e Turquia, para além da Cruz Vermelha e do Vaticano. Em consequência da invasão nazi da Hungria, os aliados levaram a cabo o bombardeamento de Budapeste, levando o Governo húngaro a ordenar às embaixadas dos países neutros que alugassem casas fora da cidade para se protegerem. Sampaio Garrido alugou uma vivenda em Galgagyörk, a 60 km da cidade, onde, sem informar Salazar, escondeu doze judeus entre os quais se encontravam cinco membros da família Gabor - parentes da actriz Zsa Zsa Gabor. Mas já antes tinha vindo a alertar sobre a perseguição aos judeus, tomando a iniciativa de os proteger antes mesmo da mobilização no mesmo sentido dos diplomatas dos países neutros e sem o apoio de Salazar. Em consequência dessa atitude, no dia 28 de Abril, às 5h da manhã, a residência oficial de Portugal em Galgagyörk foi assaltada pela Gestapo húngara: os hóspedes foram presos e levados para o posto da polícia central de Budapeste, assim como o próprio Garrido. Sem se intimidar, o diplomata resistiu corajosamente à acção da polícia e exigiu de imediato a libertação dos detidos, assim como um pedido de desculpas. Com base na sua actuação, Sampaio Garrido tornou-se persona non grata para o Governo húngaro, que exigiu a sua partida da Hungria. Em sua substituição, Salazar nomeou o encarregado de negócios Alberto Carlos de Liz-Teixeira Branquinho, que chegou a Budapeste em Junho de 1944.

Sampaio Garrido não voltou logo para Portugal. A 5 de Junho, parte para Berna, levando consigo a sua secretária judia e onde continuou a orientar o encarregado de negócios no apoio aos judeus, nomeadamente enviando-lhe listas com nomes para os quais pedia assistência e asilo na legação de Portugal. Sempre em relação com Garrido, Branquinho obteve de Salazar a autorização de atribuir passaportes portugueses a judeus húngaros, na condição de estes terem uma relação familiar, cultural ou económica com Portugal. Ao todo, foram concedidos por Portugal cerca de 1000 documentos de protecção, dos quais 700 passaportes provisórios sem indicação de nacionalidade portuguesa, conforme exigência de Salazar para que, mais tarde, a não pudessem reclamar.

Juntos, e cada um à sua maneira, Sampaio Garrido e Teixeira Branquinho foram sensíveis ao sofrimento dos judeus húngaros e souberam aproveitar com coragem e inteligência as considerações de realpolitik de Salazar que o levaram sobretudo na fase final a alinhar pela política dos países neutros, numa altura em que a vitória estava já claramente do lado dos aliados. Como refere Milgram, o objectivo de Salazar não era tanto ajudar os judeus, mas "ganhar pontos políticos com vista ao futuro". Mas os dois diplomatas souberam traduzir essas considerações tacticistas numa operação de salvamento que beneficiou mais de mil judeus húngaros. O título de "Justo entre as Nações" é largamente merecido por Sampaio Garrido e devia, em minha opinião, ser extensivo a Teixeira Branquinho.

A história nunca se repete da mesma maneira. Mas numa Europa em crise profunda onde, por todo lado, renascem os "verdadeiros patriotas", o exemplo destes dois homens mostra que o realismo político não é incompatível com a ética e a moral. Pelo contrário, sem estas não passa de tacticismo oportunista e rasteiro que hoje é infelizmente a norma. Investigadora em assuntos judaicos (esther.mucznik@netcabo.pt)

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