Verão

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Os raros momentos de felicidade das crianças são quando imaginam o que vão fazer nas férias quando forem crescidos

1. Os veraneantes andam como pinguins. Bamboleiam-se de um lado para o outro, deixando cair o peso do corpo ora numa perna ora na outra, lentamente, indolentemente, por baixo do chapéu de palha. Deve ser do calor. Deambulam mais do que andam. Mesmo quando vão, andam como se passeassem. Avançam em ziguezagues para a esquerda e para a direita mesmo quando querem ir em frente, como se navegassem à bolina. Talvez não queiram seguir em frente. Pode ser uma declaração de princípios, uma maneira de dizer que, durante estes quinze dias, durante esta semana, aqui à beira-mar, são livres de andar por onde lhes apetece e que, se seguem em frente, bem podiam virar à esquerda ou à direita, parar ou até, suprema rebeldia, voltar para trás. Era só quererem. Claro que não é bem assim, porque a rotina das férias é tão férrea como a dos dias de trabalho na cidade, mas gostam de sonhar que podem fazer deste dia o que quiserem e que, hoje, são donos dos seus destinos. Daí o passo gingão, despreocupado. Mas também pode ser daquela combinação de suor, sal, sol, areia e o roçar do nylon dos calções de banho, que provoca aquelas assaduras no interior das pernas que obriga a sábias combinações de creme solar Nivea e de Halibut. Quem sabe?

2. George Carlin, famoso, genial e falecido humorista americano, dizia que, quando vamos na estrada, todos os que conduzem mais devagar do que nós são idiotas e todos os que conduzem mais depressa que nós são loucos. Não é só na estrada. Também é difícil cruzarmo-nos com gente que nos pareça cordata na praia. Só se estiver longe, sozinho e se só interromper a leitura do seu livro para fazer uma sesta. Estendal de toalhas, cadeiras e chapéus de sol, bolas de futebol, de voleibol, raquetas e frisbees, cães e filhos, discussões familiares, tudo se conjuga para nos convencer de que estamos ali a mais. Há quem se ache no direito natural a ocupar toda a praia e espalhe imperialmente os seus pertences pelo areal e nos olhe de forma sobranceira enquanto exibe as etiquetas dos seus óculos de sol e pólos e bermudas e sacos e toalhas, numa profusão de heráldica de centro comercial. Mas também há os que se aproximam levados pelo sentimento comunitarista que diz que, se estamos todos na mesma praia, devemos tratar-nos como vizinhos ou parentes e nos pedem para vigiar o bebé ou a carteira enquanto vão ao banho só um bocadinho. Que a extensão democratizada dos areais não permita colocar suficiente areia entre nós e os loucos e os idiotas é uma das tristezas do Verão.

3. A razão por que há mais birras, caprichos e amuos por parte das crianças e adolescentes durante as férias que durante o resto do ano devia ser objecto de estudo por parte dos pedopsicólogos e similares. Talvez já tenha sido e eu não tenha dado por isso. É impossível encontrar uma família em férias onde as crianças estejam satisfeitas com a escolha da praia, do sítio onde se planta o chapéu de sol, do fato de banho, do boné, do lugar onde se toma banho, do que se vai comer, do que se vai fazer a seguir, de onde se vai passear à noite ou do que quer que seja. Penso que é da amplitude do leque da escolha. Depois de um ano de rotinas, de horários para levantar e comer e estudar e de ementas repetidas semanalmente, também as crianças sonham com um Verão de liberdade e de vontades satisfeitas, sem compromissos nem negociações, com pais benevolentes e sorridentes quando não ridentes e, como os adultos bem sabem, isso não existe senão nalguns anúncios da televisão.

A verdade é que a liberdade é sempre uma decepção e as crianças ainda não o sabem. É este choque entre as expectativas ilimitadas e a realidade sempre aquém do desejo que gera a frustração estival típica das crianças. É diferente, mas é um bocado como conhecer aquele escritor que sempre admirámos e constatar que cheira mal da boca.

Por que razão não se hão-de comer gelados de todos os sabores em vez de escolher só um e ficar na praia até ser noite escura? Porque é que a água está fria e tem algas e a bandeira está vermelha e a senhora romena já não tem bolas de Berlim com creme e porque é que eu não posso jantar só batatas fritas? Porquê? E porque é que este ano ainda não alugámos uma casa com piscina? E porque é que estamos sempre a comer peixe? E porque é que, depois destes dias de praia, em vez de voltarmos para casa, não vamos fazer um cruzeiro? E porque é que não podemos pelo menos jantar fora todos os dias, como toda a gente faz? Porque é que eu não posso comprar absolutamente tudo aquilo que me apetece? E porque é que eu não posso ir passear à vila sozinha com as minhas amigas e porque é que não me deixas comprar aquele biquíni com lantejoulas?

Os raros momentos de felicidade absoluta das crianças durante o Verão são quando imaginam tudo o que vão fazer nas férias quando forem crescidos, quando a sua liberdade for total e absoluta e quando os pais já não mandarem neles. Nem desconfiam que vão ter de aturar os filhos deles.

A infelicidade do Verão não tem fim. O Verão, felizmente, sim.

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